quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Retomar o fio à meada

Depois de mais de 6 meses de ausência, retomo a escrita neste ‘blog’ para assinalar o final do ano 2020, que deixará muitas e variadas recordações – algumas boas, mas muitas outras, certamente, menos boas. E também saudar o novo ano 2021, que nos chega ensombrado de várias incertezas e inquietações. Embora as vicissitudes porque passámos em 2020 tenham levado muita gente a considerá-lo como um ‘ano para esquecer’ (ver p.ex. aqui ou aqui), eu, pelo contrário, considero que será um ano que dificilmente esquecerei. Creio mesmo que deveríamos tirar muitas ilações de tudo o que aconteceu se quisermos de facto mudar um rumo colectivo que há já demasiado tempo se dirige para um futuro pouco promissor.

O tema da pandemia da Covid-19 atravessou inevitavelmente os meus ‘posts’ do ano passado e estou a preparar outros que não fugirão à regra. Embora o seu impacto não tenha sido igual em todo o mundo e em todas as pessoas, a pandemia gerou debates acalorados, mas também muitas divisões e ainda mais perplexidades. Infelizmente, muitas das suas consequências mais profundas estão ainda para vir: sanitárias (agravamento de doenças não-respiratórias), económicas (desemprego, falências de pequenos negócios e empresas), sociais (aumento das desigualdades e da pobreza), ambientais (impactos negativos que poderão suplantar impactos positivos iniciais) ou psicológicas (impactos do isolamento e da ansiedade). A imagem que escolhi para ilustrar este ‘post’ chegou-me no início de Janeiro e pretende introduzir uma nota de ironia (ou, talvez para alguns, de humor negro) que me pareceu adequada para assinalar este momento de transição para aquilo que alguns já chamam a ‘era pós-covid’.

Para não fugir às habituais resoluções que acompanham esta transição do calendário, espero em 2021 retomar as escritas neste ‘blog’ com maior regularidade. Na verdade, as oportunidades para respigar nunca cessaram e continuei o meu trabalho de pesquisa nos bastidores. Conto recomeçar a partilhá-lo aqui muito em breve. Por agora, deixo uma lista de ligações para fontes de opinião e de informação sobre a pandemia que estão em contra-corrente com as narrativas oficiais e mediáticas dominantes (no final deste 'post'). Não sou ‘negacionista’ da pandemia (o vírus e a epidemia que provocou são reais e preocupantes), mas ponho em causa aquilo que considero os contornos mais sinistros e nefastos dos tempos que atravessámos: por um lado, a miopia, desproporção e insensatez das medidas de mitigação adoptadas por muitos governos (exagerando o risco e distorcendo as evidências científicas muito para lá do aceitável), e por outro, as campanhas de medo, de histerismo e de autêntica desinformação e manipulação alimentadas pelos media convencionais – em particular, a permanente (e chocante!) descontextualização dos dados sobre a pandemia e a (quase) ausência de debate aberto e de pluralismo na sua discussão. Em conjunto, estes dois aspectos transformaram uma crise sanitária numa crise social de proporções inimagináveis, cujos contornos extremamente gravosos levaram a que a apelidassem de pandemia autoritária ou de ‘scamdemic’. Prefiro pensar nela como sindemia, termo invocado pelo editor da revista científica ‘The Lancet’ para enfatizar o seu carácter sistémico (aqui), em particular a sua dimensão social, alertando para que qualquer solução puramente biomédica contra a Covid-19 irá falhar e defendendo a necessidade dos governos elaborarem políticas e programas para reverter as profundas disparidades sociais, caso contrário as nossas sociedades nunca estarão verdadeiramente protegidas contra qualquer epidemia de igual envergadura (ver também aqui ou aqui).

Fontes de informação alternativa sobre a pandemia:

Em português:

Plataforma Cidadania XXI: http://www.cidadaniaxxi.eu/ https://www.facebook.com/plataformacidadaniaXXI/

Pedro A. Vieira: https://noscornosdacovid.blogspot.com/  

Raquel Varela: https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/  

Lourdes Cerol Bandeira: https://lourdescerolbandeira.eu/  

Casa das Aranhas: https://casadasaranhas.com/  

Noutras línguas:

Canadá: https://muchadoaboutcorona.ca/

Reino Unido: https://off-guardian.org/the-coronavirus-pandemic/

https://www.contagionlive.com/disease-specific-topics/coronavirus

https://covileaks.co.uk/

https://lockdownsceptics.org/

https://inproportion2.talkigy.com/

Suiça: https://swprs.org/facts-about-covid-19/

Irlanda: https://thefatemperor.com/blog/

França: https://covidinfos.net/

Bélgica: https://www.kairospresse.be/

Itália: https://www.quodlibet.it/una-voce-giorgio-agamben 

México: https://kacevedow.wixsite.com/vidyaysatya/

terça-feira, 30 de junho de 2020

Turismo (e 'economia') über alles

A pandemia da Covid-19 ainda está para durar, pelo menos a acreditar na narrativa que os media continuam a debitar sobre as pessoas - e Portugal passou mesmo do 'bom aluno' para país 'no vermelho':
https://visao.sapo.pt/atualidade/sociedade/2020-06-18-covid-19-portugal-entre-os-paises-a-vermelho-que-precisam-de-entrar-em-acao/ https://sol.sapo.pt/artigo/699702/lisboa-com-sinal-vermelho
https://www.jn.pt/nacional/portugal-e-o-segundo-pais-da-ue-com-mais-novos-casos-nos-ultimos-14-dias-12303019.html
Segundo esta última notícia: "Nas últimas semanas, a maioria dos novos casos têm surgido na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde as autoridades de saúde adotaram uma estratégia de 'testagem massiva'." Não admira que os 'novos casos' continuem a aumentar!... Claro que faltaria explicar que pessoas contraem afinal o vírus e se têm sintomas ou se são internadas...
Em compensação, a 'economia' vai retomando e na segunda metade de Junho tivemos a notícia da reabertura dos centros comerciais, ocasião que teve até direito à benção de D. Marcelo (que foi alegadamente testemunhar o 'processo de normalização') e a uma saudação com palmas pelos trabalhadores de um famoso grande armazém, equipados com máscaras a condizer com o lema da campanha de reabertura - 'Consigo voltamos a sorrir':
https://www.noticiasaominuto.com/pais/1509405/lisboa-aplausos-na-abertura-de-centros-comerciais-e-visita-de-marcelo


Mas uma das grandes preocupações do momento é o muito desejado (por alguns!) regresso dos turistas, atendendo às quebras dramáticas nos números de visitantes e nas receitas do sector nos meses de Abril e Maio:
O que não se explica é como seria possível sustentar um aumento constante do número de visitantes, que chegou quase aos 27 milhões no ano passado, num sector que já representa quase 9% do PIB e 20% das exportações totais!...
O governo liderado por António Costa (verdadeiro 'cheerleader' da retoma económica) e os governos locais continuam a promover o turismo como monocultura, deixando sectores inteiros da economia a afogar-se - cultura, artes, pequeno comércio, feiras, bares, etc:
Segundo a lógica imbatível do PM: "Temos de proteger a nossa saúde, mas temos também de proteger os rendimentos, o emprego e as empresas e de fazer viver estes territórios, que fazem de Portugal o melhor destino do mundo e que dependem muito de haver ou não haver turistas"!...
Segundo as campanhas repetidas à exasutão, fazer turismo é bom para a economia e 'desopila':
https://www.publico.pt/2020/06/16/local/noticia/turismo-lisboa-convida-portugueses-desopilar-promocoes-1920787 


E claro que Portugal até tem estado nos 'tops' dos destinos 'mais seguros':
https://www.publico.pt/2020/06/05/fugas/noticia/madeira-acores-alentejo-algarve-top-destinos-seguros-europa-1919553
https://www.sabado.pt/dinheiro/detalhe/portugal-foi-o-primeiro-pais-europeu-a-receber-o-selo-safe-travels
A estratégia é elogiada neste artigo que insiste na narrativa de que, por sermos 'alunos' exemplares e termos muitos prémios, vai tudo correr bem e podemos continuar a fazer a mesma coisa - só temos de passar 'um ano de caminho de pedras': https://visao.sapo.pt/opiniao/ponto-de-vista/covidiario/2020-04-17-o-turismo-foi-a-nossa-tabua-de-salvacao-para-a-crise-mas-agora-a-tabua-esta-esburacada/
Segundo a autora: "Ao achatarmos a maldita curva de forma eficiente, ganhámos pontos para a nossa imagem internacional como País seguro, ordenado e capaz de enfrentar uma crise sanitária."
O expediente para trazer turistas ao país passa por tentar criar 'pontes aéreas', mesmo com países com taxas elevadas de infectados e mortos, como o Reino Unido (mas que pode estar em risco):
Passa também por persistentes campanhas de 'marketing' para tentar convencer os mais hesitantes e inseguros:
https://www.noticiasaominuto.com/economia/1495140/saudades-de-viajar-voos-da-tap-irresistiveis-para-as-ferias-de-verao
Uma das medidas emblemáticas da 'nova normalidade' será a reabertura às 00h do dia 1 de Julho das fronteiras entre Portugal e Espanha, com direito a cerimónia protocolar que contará com a presença dos chefes de Estado e de governo dos dois países, a fazer lembrar cerimónias de outros tempos...
Esperemos que não se esqueçam das máscaras e das distâncias regulamentares...

quarta-feira, 20 de maio de 2020

O regresso da droga legal

Quem me conhece sabe que não morro de amores pelo futebol. Na verdade, é mais do que isso: tenho-lhe um 'ódiozinho de estimação'. E não é apenas pelo efeito estupidificante e alienante que ele exerce sobre as pessoas (conhecidas como 'adeptos' ou 'fãs') - basta lembrar que é o tema preferido de muitos homens (maioritariamente), que lhe dedicam horas de conversas empolgadas (e banais). O mesmo acontece nas TVs, onde ocupa tempos infindos de programação, inclusive nos serviços noticiosos, em detrimento de qualquer outro desporto e sem que ninguém se pareça incomodar ou questionar (ver p.ex. aqui ou aqui). A outra razão da minha rejeição do futebol tem a ver com a máquina de fazer dinheiro em que se tornou e que o converteu num antro de corrupção e de tráfico de influências, devido às inegáveis promiscuidades com o mundo da política (ver p.ex. aqui ou aqui). Basta lembrar o recente escândalo que ficou conhecido por 'Football Leaks' (ver aqui ou aqui).



Vem isto a propósito das notícias recentes nos media nacionais e internacionais sobre o regresso do futebol, que também tinha ficado suspenso em consequência da pandemia da Covid-19 (ver p.ex. aqui ou aqui). Na verdade, para além da 'reabertura da economia', o governo já vinha anunciando que iria autorizar a retoma do "desporto-rei" (ver aqui ou aqui). Só que os adeptos terão de permanecer em casa, não podendo rumar aos estádios, e a realização dos jogos, mesmo sem público, terá de respeitar diversas medidas sanitárias - também aqui se fala de uma "nova normalidade" (ver p.ex. aqui). Mesmo assim, as perspectivas de "matar a fome de bola" (expressão usada pela directora executiva da FPF, segundo esta breve notícia) estão mais próximas de se tornar realidade. E como não há fome que não dê em fartura, prometem jogos todos os dias da semana para saciar os adeptos mais desnutridos, muitos dos quais já deviam estar a sofrer de síndrome de abstinência. Como escreveu José Pacheco Pereira num artigo de opinião no Público em 2018: "Há muitas coisas que ajudam a estupidificar o país. Mas, nos dias de hoje, a mais eficaz é o futebol. (…) O futebol é a coisa mais parecida com a máfia que existe em Portugal — ou melhor, é a nossa máfia lusitana. Eles produzem a cocaína, muitas vezes em sentido literal, mas a rede de distribuição é a comunicação social. (…) O futebol é um estimulante, com efeitos anestésicos, utilizado fundamentalmente como uma droga recreativa, muito útil quando há pouco pão, para que haja muito circo." Na situação actual, é também um pretexto para esquecer as amarguras do coronavírus, pelo menos durante duas horas, como defende um futebolista galego do Real Madrid (ver aqui).

sábado, 16 de maio de 2020

Manual de instruções para a "nova normalidade"

O país acaba de entrar na 2ª fase de desconfinamento, mas continua em 'estado de calamidade' que se prolonga até fim de Maio. Estas designações soam algo contraditórias e o próprio governo parece estar a navegar à vista. O nosso 'grande timoneiro' Costa, sempre determinado, já veio apelar aos portugueses para agora saírem à rua para ajudar o comércio, que naturalmente ficou em dificuldades (não foi bem um "vão às compras", mas quase). Fez-me lembrar um célebre apelo do presidente Bush, após os ataques do 11 de Setembro, para os seus compatriotas irem às compras ou à Disneyland para ajudar a economia e vencer o medo... (Mas isto deve ser a minha mente tortuosa que faz associações bizarrasl...) Depois de semanas de campanha de medo, levada a cabo por autoridades e media, o Secretário de Estado da Saúde veio agora dizer que o medo não deve paralisar os portugueses!... Seja como for, esta nova fase envolve vários preceitos, que surgiram no final da semana passada sob a forma de manuais produzidos pela DGS.
Primeiro, temos o manual da DGS para o dia-a-dia (são mais de 30 páginas, embora tenha muita 'palha'), cujo lema é: TODOS SOMOS AGENTES DE SAÚDE PÚBLICA! Com tanta higienização, tanta máscara descartada e tanto plástico, quem vai ganhar serão certamente a saúde das pessoas e do ambiente!... Não resisto a destacar a nota que inseriram sobre o uso obrigatório de máscara em estabelecimentos comerciais: "Esta obrigatoriedade é dispensada quando, em função da natureza das atividades, o seu uso seja impraticável." Presume-se que estarão a referir-se a cafés, pastelarias e restaurantes - que têm as suas regras próprias (ver mais abaixo), para podermos beber ou a comer (sem máscara!) sem sermos importunados pelo corona... E é também digna de destaque esta ilustração da página 4 do manual - nela vemos os tais 'agentes de saúde de pública' a 'combater' o vírus:
Depois temos o guia para as idas às praias - que só 'reabrem' no dia 6 de Junho. São 78(!!) regras muito precisas e sensatas que dão mesmo vontade de ir a banhos... Parece que estou a ver os burocratas da APA nos seus gabinetes a pensaram em cada pormenor e a elaborar a regra apropriada! Será que o corona sabe nadar? E gostará de sol e água salgada?... Entre as várias ideias para evitar os congestionamentos nas praias, a do semáforo pareceu-me genial! E até já há uma proposta concreta criada por uma startup que poderá ser adquirida pelas autarquias... Devido à necessidade de distanciamento, há mesmo quem já tenha desenhado compartimentos em 'plexiglass' para as praias. E alguns autarcas voluntariosos tomaram a dianteira e começaram a 'desinfectar' as praias' (hipoclorito=lixívia), mesmo antes de saírem os manuais da DGS (que desaconselha o seu uso).
Mas temos mais: haverá também regras para museus, eventos desportivos, lares e igrejas (católicas) - nestas últimas, as missas serão de máscara, com comunhão em silêncio(!?), sem abraço da paz e com distanciamento... De notar a discriminação dos desportos 'menores' em relação ao futebol ('desporto rei'): a 'bola' começa a 1 Junho (sem público!) e os outros - andebol, voleibol, basquetebol e hóquei em patins - já não são retomados esta época.

Depois, temos o 'manual de instruções' para as escolas. Deve ser muito agradável (e dar muito jeito) dar e assistir a aulas de máscara... E depois temos o distanciamento físico e a higienização permanente, inclusive das salas entre cada aula. A foto ilustra o processo de desinfecção prévia das salas de aula por militares devidamente 'fardados' - sim, porque as salas deviam estar muito contaminadas durante as várias semanas em que as escolas estiveram fechadas...
E temos então as regras para a restauração e hotelariaSem ementas, sem buffets, sem 'adornos' (excepto talheres, prato e copo), nem temperos, nem travessas, e pagamento contactless (sem dinheiro). Adorei este detalhe da prosa do artigo (e há mais pérolas): "Sentados, mãos previamente higienizadas com solução antisséptica de base alcoólica, máscara em repouso (teremos de entrar no restaurante de máscara no rosto), depara-se-nos uma novidade, ou melhor, um ajuste a uma realidade em todos os restaurantes..."
Numa outra notícia, os detalhes sobre as orientações da DGS são complementados com as medidas adoptadas em outros países. Em Espanha o detalhe e extensão das medidas é semelhante. Nesta notícia gostei em especial da escolha da foto das senhoras sentadas com um ar alegre, máscaras no rosto, frente aos seus copos de vinho e à embalagem de gel desifectante...
Deixei o melhor para o fim - o futuro das viagens e do turismo internacional - com variadas restrições e medidas inovadoras, como passaportes de saúde e certificados Clean&Safe:
https://www.theportugalnews.com/news/clean-and-safe-seal-launched-to-bring-confidence-to-tourism-sector/53923
https://www.bbc.com/news/world-52450038
https://www.theguardian.com/politics/2020/may/03/coronavirus-health-passports-for-uk-possible-in-months
https://www.theguardian.com/world/2020/apr/26/greece-preparing-new-tourism-rules-in-wake-of-coronavirus
Num comentário a um dos artigos do Guardian, alguém resumia da seguinte forma: "Future tourism: completely anti-septic, everything desinfected with PPE (Personal Protective Equipment), throw away cutlery, everyone in a protective bubble! Great for the environment and sounds fun!"

Para aliviar um pouco o tom - deixo uma ideia 'genial' de um café na Alemanha para garantir o distanciamento físico entre os seus clientes. Talvez se tenham inspirado nuns chapéus para as crianças usados com a mesma finalidade numa escola na China.
Vai ser sem dúvida um 'novo' mundo e uma 'nova normalidade' - que não me soam nada admiráveis!... E não, não me parece que "vamos ficar todos bem", se continuarmos a tratar os cidadãos como crianças irresponsáveis que têm de obedecer aos seus governantes que, numa atitute paternalista e castradora, lhes retiram o livro arbítrio e querem regulamentar cada actividade e cada gesto que fazem. E principalmente, se retomarmos uma suposta 'normalidade' que não trará certamente um futuro saudável e sustentável para todos (ver p.ex. aqui).

terça-feira, 12 de maio de 2020

Estado de calamidade

É difícil fugir ao tema que nos assombra há várias semanas e que ameaça estar para durar. Mas há razões de sobra para eu voltar a trazê-lo aqui - mesmo que não sejam as mais evidentes. Desta vez invoco-o devido a duas campanhas publicitárias recentes na região de Lisboa.
A primeira foi levada a cabo pela TVI para promover um dos seus programas emblemáticos, o ignóbil 'Big Brother', que aquele canal televiso decidiu retomar no final de Abril, com o estado de emergência ainda em vigor devido à pandemia da Covid-19. Nem sequer me vou referir à natureza escabrosa e imbecil do programa, mas apenas a um outdoor que surgiu mais recentemente para o publicitar, contendo a seguinte frase: "A TVI decreta estado de entretenimento"! Parece que para as mentes perversas da gente do departamento de marketing não há limites para a desfaçatez que consiste na apropriação de uma situação de restrição das liberdades individuais para promover ou vender seja o que for. Neste caso, com o requinte de malvadez de tratar-se de publicitar um programa que vai buscar o seu nome à novela orwelliana que denunciava exactamente as formas mais brutais de controlo social! Já não há sombra de pudor, nem deontologia, que nos valha - e somos compelidos a aceitar (e consumir) tudo o que nos atiram para cima. Talvez seja até pura ignorância - muita gente nem saberá quem foi o Orwell, quanto mais o Big Brother!...

A outra campanha foi lançada também no final de Abril pelo movimento 'Mais Cascais', afecto ao actual executivo camarário deste município, e que também envolveu outdoors com o lema dessa mesma campanha: "Não tenha medo de ter medo". A controvérsia não se fez esperar, como o comprovam os comentários nos posts da página do movimento no Facebook, e já mereceu algumas críticas, embora apenas a nível local - ver p.ex. aqui ou aqui. Já me referi ao sentimento do medo relacionado com a actual pandemia num post anterior. Deixo aqui apenas a ligação para uma já famosa intervenção pública do escritor Mia Couto, numa conferência sobre segurança no Estoril há quase dez anos, intitulada 'Murar o medo', onde afirma que "há quem tenha medo que o medo não acabe", e que continua extremamente actual, quando governos de todo o mundo estão a usar o medo - desta vez de um vírus - para exercer um poder totalitário sobre os seus cidadãos. Encontramo-nos, sem dúvida, em pleno estado de calamidade.

sábado, 2 de maio de 2020

Documentários e vídeos em tempos de pandemia

Aproveitando o início da fase de desconfinamento nesta travessia da pandemia da Covid-19, proponho o visionamento de três documentários e dois vídeos curtos. Não estando directamente relacionados com a pandemia, qualquer dos três documentários propõe reflexões sobre os nossos modos de ver e de agir sobre o mundo, que nos podem ajudar a orientar a forma como lidamos com um processo que, desejavelmente, não seja um mero 'regresso à normalidade' (tema dos meus dois posts anteriores).
O primeiro ('The Twelve', realizado por Lucy Martens & Olivier Girard) foi lançado em 2019 e dá voz a doze anciãos (líderes espirituais ou xamãs) de povos/comunidades indígenas de diversos pontos do globo, que partilham, não só as suas visões do mundo que são colocadas em diálogo ou contraponto com as visões hegemónicas da civilização global, mas também as suas propostas para lidar com as disfuncionalidades das sociedades modernas:
https://vimeo.com/374476997 (1h15; c/ legendas PT)
O segundo ('Planet of the Humans', realizado por Jeff Gibbs) foi divulgado no Dia da Terra (que se celebrou no dia 22 Abril*) e apresenta uma visão crítica da agenda ambientalista de promoção da transição energética e das energias 'verdes' ou 'limpas': https://youtu.be/Zk11vI-7czE (1h40) 
O filme foi produzido pelo realizador Michael Moore, cujos documentários geram frequentemente controvérsia. E este novo filme não foge à regra: tendo gerado críticas muito duras, quer da parte de vários ambientalistas, quer de comentadores da esquerda política: ver p.ex. aqui. Apesar de conter incorrecções e distorções mais ou menos graves de alguns aspectos relacionados com as fragilidades das tecnologias solares e eólicas, o documentário põe claramente um dedo na ferida ao defender que a transição para as energias renováveis não é compativel com os actuais níveis de vida e de consumo na maioira dos países ditos desenvolvidos ou industrializados. Para críticas mais moderadas e equilibradas ver aqui ou aqui. O realizador, ele próprio um activista das questões ambientais, terá porventura falhado numa defesa clara da necessidade de uma transição rápida para as energias renováveis (valendo-lhe inclusivamente elogios de sectores conservadores), mas está a conseguir gerar um debate em torno de algumas propostas da agenda do chamado 'Green New Deal' que devem de facto ser postas em causa, como aliás o têm feito numerosos decrescentistas - ver p.ex. aqui ou aqui.

O terceiro ('Fairytales of Growth', realizado por Pierre Smith Khanna) é um documentário acabado de lançar este ano, que promove e discute exactamente  as propostas do movimento do Decrescimento:
https://youtu.be/dQ4cpOKmde8 (47’)
Baseado em entrevistas e depoimentos de vários investigadores e activistas decrescentistas, mas também de outros activistas, em particular dos movimentos juvenis pelo clima, o documentário parte da ligação entre o modelo económico e a crise ambiental para dar a conhecer as lutas e propostas de economia solidária e justiça social que visam contribuir para (re)construir uma sociedade justa e sustentável.

Finalmente, os dois vídeos curtos transmitem mensagens semelhantes sobre a actual situação pandémica e os seus impactos, incitando as pessoas a reflectir sobre que tipo de vida e de futuro querem para si e para as suas comunidades:
- 'Lettera dal coronavirus' (#ascolta), por Darinka Montico:
https://youtu.be/a2gdztJU1zY (3’40) (é possível activar leg. PT ou noutras línguas)
- 'What we might learn from Covid-19' (O que podemos aprender com a Covid-19),  por Kristin Flyntz (Sustainable Human): https://youtu.be/XELczQ3JWQY (5’20)
Para complementar estes visionamentos, volto a recomendar a leitura do magnífico 'O Monólogo do Vírus', texto que mencionei num post anterior.
Bons visionamentos.

* No Dia do Ambiente do ano passado tinha proposto o visionamento de outros dois documentários extraordinários ('Terra' e 'Semente'), que vale sempre a pena ver ou rever - links para os filmes aqui.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Anuncia-se a reabertura da economia!

Depois ter proibido a Páscoa e da novela em torno do cancelamento ou não das comemorações do 25 de Abril, o Costa (juntando-se a outros grandes líderes mundiais*) vai mandar reabrir a economia:
https://rr.sapo.pt/2020/04/22/economia/costa-vai-anunciar-reabertura-da-economia-mas-temos-de-estar-preparados-para-recuar/noticia/190281/
https://sicnoticias.pt/especiais/coronavirus/2020-04-17-Governo-esta-a-preparar-a-reabertura-da-economia
Como se ela tivesse fechado - tipo a época da caça ou a época balnear - e agora precisasse de ser reaberta... Será com alguma pompa e circunstância? Alguma festa com celebridades e futebolistas? Haverá corta-fitas? Parece afinal que não, que será tudo com contenção, moderação e o sacrossanto 'distanciamento social', não vá o corona estragar a festa.
Mas espera lá - então os portugueses não têm estado todos obedientemente teletrabalhando no recato das suas casinhas? Tudo afanosamente frente aos teclados e ecrans, 'zoomando' aulas, reuniões, workshops, webinars e até concertos e peças de teatro? E não há ainda todos aqueles heróis trabalhando arduamente nos hospitais, nos campos, nos supermercados, nas obras - porque muitos desses escapam à miopia social, excepção feita às palminhas ao cair da noite - e não há teletrabalho que lhes valha? Sim, mas essa é a economia dos bens essenciais e das verdadeiras necessidades!... E não é, pelos vistos, a tal 'economia' que irá ser reaberta**. Essa será a economia do consumismo e do espectáculo, das viagens e dos festivais, dos shoppings e dos futebóis, dos turistas e 'city users', dos empreendorismos e startups, do excesso e do desperdício. Aliás o Costa já veio tranquilizar os 'líderes' do sector turístico (que, dizem-nos, estava a crescer a dois dígitos!...) onde irá continuar a apostar desde que se recupere a confiança - algo que a ele não lhe falta, quando afirma que "o turismo em Portugal vai voltar a ser de ouro".*** Lá está - finalmente o 'regresso à normalidade'! Como se não houvesse amanhã! Sim, porque aquela coisa de haver uns chatos duns cientistas e duns jovens irritantes a dizerem que o clima já não é o que era, que as florestas e os animais estão a desaparecer e que os solos já não aguentam mais culturas intensivas e fertilizantes químicos, tudo por causa de inúmeras actividades económicas insustentáveis, isso é conversa de gente que quer travar a 'economia', fazer colapsar 'os mercados' e interromper as 'cadeias de criação de valor'. Sim, porque essa tal outra 'economia' precisa de crescer para sempre, caso contrário os bancos vão à falência, os mercados ficam 'zangados' ou 'mal dispostos' e os senhores bilionários deixam de acumular mais uns zeros nas suas contas bancárias, e aí não haverá economias para ninguém!... Ou será que isto é apenas um conto de fadas, uma história da carochinha para entreter adultos infantilizados e intoxicados pelos media, o marketing e as redes sociais?
Já escrevi várias vezes sobre estes tópicos - aqui, aqui, aqui ou aqui - por isso dispenso-me de mais explicações.
Temos uma escolha - sempre a tivemos - perceber que há uma oportunidade para mudar algumas coisas na vossa vida individual e colectiva, ou ceder aos oportunismos daqueles que não querem mudar coisa nenhuma.


* Parece que houve para aí uns 'líderes' que não queriam que a economia tivesse fechado e agora querem reabri-la à força toda...
** Para se perceber melhor o que os 'economistas' entendem por uma reabertura como deve ser, leia-se esta prosa aprimorada de economês neoclássico que apresenta o plano para a retoma de um grande arauto da narrativa do 'establishment':
(repare-se no pormenor da notícia ser patrocinada pela Santa Casa - mas claro que isso é apenas má-lingua da minha parte!)
*** O Turismo de Portugal, essa agência de viagens e de imobiliário patrimonial paga com dinheiros públicos, já preparou uma linda campanha para a retoma (é espantoso como as equipas de marketing nunca perdem a criatividade mesmo durante uma pandemia):

terça-feira, 7 de abril de 2020

Voltar à normalidade!?

Esta é uma das frases mais repetidas nestes tempos de pandemia e de um mundo em suspenso. É compreensível - ninguém quer continuar a viver num confinamento ou num 'distanciamento social' forçados, e é natural que as pessoas queiram retomar as suas actividades pessoais, laborais e sociais. Mas será que queremos de facto regressar à 'normalidade'? Queremos apenas livrar-nos do vírus e voltar a ligar as máquinas da 'economia' que nos dizem ser o motor do nosso bem-estar? Mas de que economia é que estamos a falar? Aquela que se tornou global e é dominada pelas corporações multinacionais e pela finança desregulada, tendo gerado uma colossal desigualdade social e uma catastrófica destruição ambiental? Ou uma outra que nos garantisse os bens essenciais e relacionais, e gerisse os bens comuns de forma equilibrada, justa e sustentável? (ver p.ex. aqui)
Neste tempo de incertezas e de sofrimento para muitos, é importante encontrar algum tempo e tranquilidade para pensar e clarificar ideias. É esse o meu propósito com os escritos recentes neste blog, assim como o de muitas outras pessoas e colectivos, que, por esse mundo fora, vão partilhando reflexões, propostas, experiências ou práticas.


Destaco um curto texto anónimo - 'O monólogo do vírus' - publicado num site editorial (original aqui: #234 da revista 'lundi matin') que dedica uma secção (Pandemia Crítica) à reflexão sobre a situação actual, disponibilizando textos de diversos autores em português (originais e traduções). Escrito na primeira pessoa, o texto faz uma análise lúcida do paradigma socioeconómico, apelando à sua renúncia e à adopção de uma ética baseada na suficiência, na atenção e no cuidado.
Excertos do texto:"Que pena que apenas reconheçam no universo aquilo que se vos assemelha. Mas, acima de tudo, parem de dizer que sou eu quem vos está a matar. Não estão a morrer por causa do que estou a fazer aos vossos tecidos, mas porque deixaram de cuidar dos vossos semelhantes. (...) Apenas os sistemas são ’vulneráveis’. O resto vive e morre. Só há vulnerabilidade para aquilo que aspira o controle, para a sua própria extensão e perfeição. (...) São livres de não acreditar em mim, mas eu vim desligar a máquina cujo travão de emergência vocês não encontram. Eu vim suspender a operação da qual vocês são reféns. Eu vim expor a aberração da ’normalidade’. (...) Sem mim, por quanto mais tempo fariam passar como necessárias todas estas coisas aparentemente inquestionáveis, cuja suspensão é imediatamente decretada? A globalização, as competições, o tráfego aéreo, as restrições orçamentais, as eleições, o espectáculo das competições desportivas, a Disneylândia, os ginásios, a maioria das lojas, o parlamento, o encarceramento escolar, as aglomerações de massas, a maior parte dos trabalhos de escritório, toda essa sociabilidade inebriada que é apenas o contrário da angustiada solidão das mónadas metropolitanas. (...) Agradeçam-me a mim o teste da verdade que vão passar nas próximas semanas: vão finalmente viver a vossa própria vida, sem os milhares de subterfúgios que, mal ou bem, sustentam o insustentável. (...) Mas este espaço que se abre diante de vós, graças a mim, não é um espaço delimitado, é uma imensa abertura. Eu vim para vos perturbar. Nada vos garante que o não-mundo de antes vai voltar. (...)  Ou vocês aproveitam o tempo que vos estou a dar agora para imaginar o mundo do depois, a partir das lições do colapso a que estamos a assistir, ou ele será completamente radicalizado. O desastre pára quando pára a economia. A economia é o desastre. Esta era a tese antes do mês passado. Agora é um facto. (...) É uma civilização, e não vocês, que eu venho enterrar. Aqueles que querem viver terão de criar novos hábitos para si próprios. (...) Cuidem dos vossos amigos e dos vossos amores. Repensem com eles, soberanamente, uma forma de vida justa. Criem aglomerados de vida boa, expandam-nos e eu não terei poder sobre vocês."

No mesmo site encontrei um outro texto de Bruno Latour ('Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise') que projecta os cenários pós-pandemia para pôr em causa a globalização económica produtivista. Latour sugere que os cidadãos devem aproveitar a oportunidade da suspensão provisória do sistema económico global para pensar que componentes desse sistema querem ver retomados e quais querem interromper, propondo um exercício baesado numa sequência de seis perguntas.
Excertos do texto: "(...) Se tudo pára, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo contrário, acelerado. Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de ano. À exigência do bom senso: 'Retomemos a produção o mais rápido possível', temos de responder com um grito: 'De modo nenhum!'. A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes. (...) O que o vírus consegue com a humilde circulação boca a boca de perdigotos – a suspensão da economia mundial – nós começamos a poder imaginar que os nossos pequenos e insignificantes gestos, acoplados uns aos outros, conseguirão: suspender o sistema produtivo. Ao nos colocarmos esse tipo de questão, cada um de nós começa a imaginar 'gestos barreira', mas não apenas contra o vírus: contra cada elemento de um modo de produção que não queremos que seja retomado. (...) Não se trata mais de retomar ou de transformar um sistema de produção, mas de abandonar a produção como o único princípio de relação com o mundo."


O mesmo tema é abordado por Vitor Belanciano num novo artigo de opinião no jornal Público: 'Não queremos voltar à normalidade'. O cronista defende a necessidade de questionar uma 'normalidade' que levou ao desinvestimento no serviço público de saúde, à desvalorização do trabalho, à sobrevalorização do sector financeiro, à aposta num leque limitado de actividades económicas como o turismo, à dependência do crescimento económico permanente e à fragilização da democracia. 
Excerto: "Voltar à normalidade. É a frase que todos repetem. Mas a que normalidade? A dos pequenos rituais quotidianos ou a que arruinou sistemas de saúde, de habitação, de segurança social e o ambiente? Vivemos tempos simultâneos. Por um lado, a resposta imediata e a tragédia, com famílias enlutadas que nem conseguem enterrar os mortos, e um número incalculável de pessoas que se confronta com o desemprego. E por outro, reflectir o futuro imediato, para que não voltemos ao que nos trouxe aqui e conjecturar outros rumos."
Para além das reflexões publicadas na secção 'Pandemia Crítica' da 'n-1 edições' que citei acima, recomendo ainda uma colectânea de textos de diversos filósofos contemporâneos, publicados entre 26 de Fevereiro e 28 de Março, coligida pela editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio) e denominada 'Sopa de Wuhan (pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemias)', onde se reunem nomes como Giorgio Agamben, Slavoj ŽiŽek, Jean Luc Nancy, Judith Butler, Alain Badiou, David Harvey ou Byung-Chul Han.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

O vírus apocalíptico


A palavra apocalipse sugere comummente cenários de calamidade e de ‘fim do mundo’. No entanto, a palavra grega original significa revelação (literalmente, remover o véu) e, por exemplo, no contexto bíblico é usada com esse mesmo sentido – o Livro do Apocalipse é também chamado o Livro da Revelação. E é neste sentido que eu a invoco aqui, para alegar que esta pandemia da Covid-19 e o microscópico vírus que a causa vieram, não só tornar visíveis uma série de realidades sociais e económicas que permaneciam invisíveis para muitas pessoas, mas também mostrar possíveis caminhos para lidar com elas. Esta mesma acepção foi invocada por John Naughton num artigo recente onde cita o historiador Frank Snowden (autor de ‘Epidemics and Society’) que defende que as epidemias funcionam como um espelho para os seres humanos, revelando não só a sua relação com a vida e a morte, mas também aquelas que estabelecemos uns com os outros.
Uma das realidades evidenciadas pelo novo coronavírus e a epidemia que originou é a facilidade e velocidade com que a transmissão pessoa a pessoa se propaga – por um lado, nas grandes cidades superpovoadas, como aconteceu no seu início na cidade chinesa de Wuhan e acontece agora um pouco por todo o mundo, e, por outro, na sua dispersão por diferentes países, dada a movimentação permanente de pessoas entre destinos globais, facilitada pela acessibilidade e abundância de voos internacionais. Estes dois factos estão, por sua vez, directamente ligados a duas características do modelo de desenvolvimento dominante nas sociedades modernas: por um lado, a urbanização crescente que levou milhões de pessoas a migrarem dos ambientes rurais para as cidades, e por outro, a globalização e desregulação associada aos modelos económicos baseados no crescimento e no consumo que geraram uma mobilidade de pessoas e bens entre países inaudita e promoveram uma indústria turística massificada alimentada pela competição feroz entre companhias aéreas, em particular as ‘low cost’. Estes modos de vida em sociedade e de organizar a economia devem ser repensados pois estão a revelar as suas limitações e fragilidades, quer em termos do bem-estar que proporcionam, quer em termos de sustentabilidade.
Outra revelação operada pela pandemia é o facto das nossas sociedades desenvolvidas não estarem afinal preparadas para lidar com um fenómeno que não é novo (o número de epidemias tem vindo a crescer nas últimas décadas, em particular o das zoonóticas – transmitidas a partir de animais) e cuja probabilidade de acontecer é considerável. Os avisos tinham sido lançados e havia simulações e relatórios com propostas de planos de acção e medidas estratégicas (ver p.ex. aqui ou aqui). Apesar disso, a coordenação internacional funcionou apenas parcialmente e o tipo e ‘timing’ das medidas tomadas tem sido desigual em diferentes países (ver p.ex. aqui). Por um lado, os sistemas de saúde têm limites de carga que dependem dos modelos de gestão de risco, mas também das políticas públicas de saúde de cada país. A coordenação internacional é importante, mas está também dependente das iniciativas de cada país, do grau de transparência na troca de informações e da fiabilidade destas (ver p.ex. aqui). Tem vindo igualmente a tornar-se claro que as políticas de contenção de despesa pública e de austeridade em vários países fragilizaram os seus sistemas de saúde (ver p.ex. aqui).
Um outro aspecto que se está a tornar evidente prende-se com os impactos económicos e sociais das medidas de contenção e mitigação da epidemia, que levaram inúmeros países a decretar confinamentos generalizados dos seus cidadãos, provocando a interrupção brusca de uma série de actividades económicas não essenciais, mas das quais dependiam as performances das economias de cada país (ver p.ex. aqui). O turismo massificado foi apenas uma delas. Por outro lado, o abrandamento da actividade económica está a ter impactos positivos a nível ambiental e mostra a ligação directa entre o actual metabolismo económico excessivo e a crise ecológica (como referi num post anterior). Mas aquela interrupção está a causar repercussões económicas negativas, em maior ou menor grau (fala-se já de uma eventual recessão ou depressão económica), que afectam desde os pequenos negócios locais, às pequenas e médias empresas, a grandes empresas nacionais e multinacionais (excepto as empresas alimentares e as plataformas digitais), às empresas ligadas ao turismo (aviação, hotelaria, restauração, etc.), até aos mercados financeiros (ver p.ex. aqui). Aquelas repercussões são uma clara demonstração da insustentabilidade e fragilidade do sistema económico global. As respostas dos diferentes governos à ameaça duma recessão têm sido menos desiguais e vão desde os ‘bail outs’ pelos bancos centrais, a pacotes de ajuda financeira a empresas e famílias, com maior ou menor sensibilidade social (ver p.ex. aqui). Um outro impacto negativo está a ocorrer ao nível da perda de empregos, de rendimentos do trabalho e de protecção social, cuja intensidade varia de país para país, mas que afectam sempre em maior escala as faixas da população mais desfavorecidas. A possibilidade de fortes rupturas sociais está no horizonte (ver p.ex. aqui).

Mas estes dois últimos aspectos estão também ligados ou foram intensificados pelo tipo de opções políticas adoptadas por muitas democracias ocidentais, que se basearam por sua vez em modelos económicos ditos neoliberais e mercantilistas, que sacrificaram o bem comum, o bem-estar social e a sustentabilidade ambiental no altar dos lucros (das grandes corporações ou das instituições financeiras) e das disciplinas orçamentais. Como referi atrás, os próprios serviços de saúde públicos ficaram fragilizados e com meios reduzidos por cortes orçamentais promovidos pela aplicação de políticas neoliberais economicistas ou austeritárias.
Um outro aspecto revelador da pandemia da Covid-19 é a forma como lidamos com a nossa própria mortalidade e o medo que ela gera, empolado pela excessiva cobertura mediática. Aqui revela-se, como em quase todas as situações de excepção, o melhor e o pior da condição humana. Por um lado, as reacções egoístas da defesa individual, com açambarcamento de alimentos, bens de consumo ou de protecção, e por outro, as atitudes altruístas de inúmeras pessoas no apoio mútuo e na dedicação incondicional dos profissionais de saúde e de outros trabalhadores de áreas essenciais. Mas o medo – do vírus ameaçador, da doença, da morte, do outro (que nos pode contaminar) – tem sido o sentimento predominante (já aludido num post anterior, em que citei textos de José Gil e Manuel Loff). Esse sentimento tem sido exacerbado pela narrativa bélica que invadiu quase todos os discursos públicos, desde a OMS (que apelidou o vírus de ‘inimigo público #1’), aos políticos e governantes de quase todos os países, até aos media e às redes sociais (ver p.ex. aqui). Essa narrativa é contraproducente, pouco clarificadora e não promove as respostas mais construtivas. A atribuição de uma intenção perversa ao vírus é uma projecção moralista e antropomórfica completamente irracional e despropositada. É uma clara demonstração da nossa ignorância sobre a natureza e da forma disfuncional como nos relacionamos com ela (ver p.ex. aqui). Não admira pois que estejamos a atravessar uma crise ecológica sem precedentes. Por outro lado e como alerta Carlota Houart (estudante de mestrado no CES/Univ. Coimbra) num post recente, aquela narrativa também influencia a forma como respondemos à pandemia e como poderemos viver no pós-pandemia. Houart defende que o vírus nos pode servir de guia, tentando perceber o que podemos aprender com ele, reflexão que é partilhada por José Tolentino de Mendonça num outro artigo recente. Para além da necessidade de adoptar estratégias de decrescimento económico nos países mais ricos para mitigar a crise climática e ecológica, as respostas à Covid-19 estão a mostrar como as pessoas se conseguem mobilizar colectivamente e mudar os seus hábitos quotidianos para enfrentar uma ameaça à sua própria segurança. Resta saber se conseguiremos prolongar essas mudanças e transpô-las para níveis mais profundos de mudança estrutural e política como resposta a essa outra ameaça existencial que é a crise ecológica global (ver também aqui). Tanto Houart como Tolentino de Mendonça, defendem ainda que na resposta à pandemia tem sido a ética do cuidado, da solidariedade e do apoio mútuo a proporcionar as respostas mais adequadas e não as narrativas da confrontação e do medo, e que aquelas são igualmente válidas para uma resposta eficaz à emergência climática e ecológica. Aquela autora chama ainda a atenção para as ligações, com bases científicas, entre a destruição ambiental e a origem de epidemias zoonóticas, como a actual pandemia (ver p.ex. aqui ou aqui). Conclui que “não podemos esperar que a Humanidade seja realmente saudável num planeta doente” e que “é fundamental transformarmos a narrativa em torno do coronavírus, distanciando-nos daquela que se baseia no medo, na guerra ou no ódio, e escolhendo pelo contrário aquela que se baseia no amor, na solidariedade, na comunidade, na confiança e na regeneração. Podemos não saber como esta crise irá evoluir nem o que o futuro nos reserva, mas sabemos intuitivamente que o caminho da partilha, da compreensão e do cuidado é o melhor…”


Termino com uma citação de um excelente artigo de opinião da professora de filosofia italiana Elettra Stimilli: “(…) no interior das casas onde estamos reclusos, obrigados a racionar as relações sociais, podemos cuidar colectivamente dos nossos medos, transformá-los e fazer ouvir, finalmente, as nossas vozes.” Esperemos pois que as revelações proporcionadas por esta pandemia nos ajudem a tomar consciência da insustentabilidade dos modos de vida de muitos, assim como do sistema sócio-económico dominante que afinal beneficia poucos, e a perceber a necessidade de mudarmos de rumo e de promover mudanças radicais. Mas será igualmente indispensável que o distanciamento social imposto pelas medidas adoptadas por sucessivos governos não seja substituído por uma euforia consumista e alienante que nos iniba de voltarmos a reunir-nos para encontrarmos colectivamente os caminhos de coragem e de perseverança para um futuro mais justo e sustentável que sabemos ser possível, mas que não será alcançado se voltarmos simplesmente àquilo que tomávamos por normalidade.