quarta-feira, 1 de abril de 2020

O vírus apocalíptico


A palavra apocalipse sugere comummente cenários de calamidade e de ‘fim do mundo’. No entanto, a palavra grega original significa revelação (literalmente, remover o véu) e, por exemplo, no contexto bíblico é usada com esse mesmo sentido – o Livro do Apocalipse é também chamado o Livro da Revelação. E é neste sentido que eu a invoco aqui, para alegar que esta pandemia da Covid-19 e o microscópico vírus que a causa vieram, não só tornar visíveis uma série de realidades sociais e económicas que permaneciam invisíveis para muitas pessoas, mas também mostrar possíveis caminhos para lidar com elas. Esta mesma acepção foi invocada por John Naughton num artigo recente onde cita o historiador Frank Snowden (autor de ‘Epidemics and Society’) que defende que as epidemias funcionam como um espelho para os seres humanos, revelando não só a sua relação com a vida e a morte, mas também aquelas que estabelecemos uns com os outros.
Uma das realidades evidenciadas pelo novo coronavírus e a epidemia que originou é a facilidade e velocidade com que a transmissão pessoa a pessoa se propaga – por um lado, nas grandes cidades superpovoadas, como aconteceu no seu início na cidade chinesa de Wuhan e acontece agora um pouco por todo o mundo, e, por outro, na sua dispersão por diferentes países, dada a movimentação permanente de pessoas entre destinos globais, facilitada pela acessibilidade e abundância de voos internacionais. Estes dois factos estão, por sua vez, directamente ligados a duas características do modelo de desenvolvimento dominante nas sociedades modernas: por um lado, a urbanização crescente que levou milhões de pessoas a migrarem dos ambientes rurais para as cidades, e por outro, a globalização e desregulação associada aos modelos económicos baseados no crescimento e no consumo que geraram uma mobilidade de pessoas e bens entre países inaudita e promoveram uma indústria turística massificada alimentada pela competição feroz entre companhias aéreas, em particular as ‘low cost’. Estes modos de vida em sociedade e de organizar a economia devem ser repensados pois estão a revelar as suas limitações e fragilidades, quer em termos do bem-estar que proporcionam, quer em termos de sustentabilidade.
Outra revelação operada pela pandemia é o facto das nossas sociedades desenvolvidas não estarem afinal preparadas para lidar com um fenómeno que não é novo (o número de epidemias tem vindo a crescer nas últimas décadas, em particular o das zoonóticas – transmitidas a partir de animais) e cuja probabilidade de acontecer é considerável. Os avisos tinham sido lançados e havia simulações e relatórios com propostas de planos de acção e medidas estratégicas (ver p.ex. aqui ou aqui). Apesar disso, a coordenação internacional funcionou apenas parcialmente e o tipo e ‘timing’ das medidas tomadas tem sido desigual em diferentes países (ver p.ex. aqui). Por um lado, os sistemas de saúde têm limites de carga que dependem dos modelos de gestão de risco, mas também das políticas públicas de saúde de cada país. A coordenação internacional é importante, mas está também dependente das iniciativas de cada país, do grau de transparência na troca de informações e da fiabilidade destas (ver p.ex. aqui). Tem vindo igualmente a tornar-se claro que as políticas de contenção de despesa pública e de austeridade em vários países fragilizaram os seus sistemas de saúde (ver p.ex. aqui).
Um outro aspecto que se está a tornar evidente prende-se com os impactos económicos e sociais das medidas de contenção e mitigação da epidemia, que levaram inúmeros países a decretar confinamentos generalizados dos seus cidadãos, provocando a interrupção brusca de uma série de actividades económicas não essenciais, mas das quais dependiam as performances das economias de cada país (ver p.ex. aqui). O turismo massificado foi apenas uma delas. Por outro lado, o abrandamento da actividade económica está a ter impactos positivos a nível ambiental e mostra a ligação directa entre o actual metabolismo económico excessivo e a crise ecológica (como referi num post anterior). Mas aquela interrupção está a causar repercussões económicas negativas, em maior ou menor grau (fala-se já de uma eventual recessão ou depressão económica), que afectam desde os pequenos negócios locais, às pequenas e médias empresas, a grandes empresas nacionais e multinacionais (excepto as empresas alimentares e as plataformas digitais), às empresas ligadas ao turismo (aviação, hotelaria, restauração, etc.), até aos mercados financeiros (ver p.ex. aqui). Aquelas repercussões são uma clara demonstração da insustentabilidade e fragilidade do sistema económico global. As respostas dos diferentes governos à ameaça duma recessão têm sido menos desiguais e vão desde os ‘bail outs’ pelos bancos centrais, a pacotes de ajuda financeira a empresas e famílias, com maior ou menor sensibilidade social (ver p.ex. aqui). Um outro impacto negativo está a ocorrer ao nível da perda de empregos, de rendimentos do trabalho e de protecção social, cuja intensidade varia de país para país, mas que afectam sempre em maior escala as faixas da população mais desfavorecidas. A possibilidade de fortes rupturas sociais está no horizonte (ver p.ex. aqui).

Mas estes dois últimos aspectos estão também ligados ou foram intensificados pelo tipo de opções políticas adoptadas por muitas democracias ocidentais, que se basearam por sua vez em modelos económicos ditos neoliberais e mercantilistas, que sacrificaram o bem comum, o bem-estar social e a sustentabilidade ambiental no altar dos lucros (das grandes corporações ou das instituições financeiras) e das disciplinas orçamentais. Como referi atrás, os próprios serviços de saúde públicos ficaram fragilizados e com meios reduzidos por cortes orçamentais promovidos pela aplicação de políticas neoliberais economicistas ou austeritárias.
Um outro aspecto revelador da pandemia da Covid-19 é a forma como lidamos com a nossa própria mortalidade e o medo que ela gera, empolado pela excessiva cobertura mediática. Aqui revela-se, como em quase todas as situações de excepção, o melhor e o pior da condição humana. Por um lado, as reacções egoístas da defesa individual, com açambarcamento de alimentos, bens de consumo ou de protecção, e por outro, as atitudes altruístas de inúmeras pessoas no apoio mútuo e na dedicação incondicional dos profissionais de saúde e de outros trabalhadores de áreas essenciais. Mas o medo – do vírus ameaçador, da doença, da morte, do outro (que nos pode contaminar) – tem sido o sentimento predominante (já aludido num post anterior, em que citei textos de José Gil e Manuel Loff). Esse sentimento tem sido exacerbado pela narrativa bélica que invadiu quase todos os discursos públicos, desde a OMS (que apelidou o vírus de ‘inimigo público #1’), aos políticos e governantes de quase todos os países, até aos media e às redes sociais (ver p.ex. aqui). Essa narrativa é contraproducente, pouco clarificadora e não promove as respostas mais construtivas. A atribuição de uma intenção perversa ao vírus é uma projecção moralista e antropomórfica completamente irracional e despropositada. É uma clara demonstração da nossa ignorância sobre a natureza e da forma disfuncional como nos relacionamos com ela (ver p.ex. aqui). Não admira pois que estejamos a atravessar uma crise ecológica sem precedentes. Por outro lado e como alerta Carlota Houart (estudante de mestrado no CES/Univ. Coimbra) num post recente, aquela narrativa também influencia a forma como respondemos à pandemia e como poderemos viver no pós-pandemia. Houart defende que o vírus nos pode servir de guia, tentando perceber o que podemos aprender com ele, reflexão que é partilhada por José Tolentino de Mendonça num outro artigo recente. Para além da necessidade de adoptar estratégias de decrescimento económico nos países mais ricos para mitigar a crise climática e ecológica, as respostas à Covid-19 estão a mostrar como as pessoas se conseguem mobilizar colectivamente e mudar os seus hábitos quotidianos para enfrentar uma ameaça à sua própria segurança. Resta saber se conseguiremos prolongar essas mudanças e transpô-las para níveis mais profundos de mudança estrutural e política como resposta a essa outra ameaça existencial que é a crise ecológica global (ver também aqui). Tanto Houart como Tolentino de Mendonça, defendem ainda que na resposta à pandemia tem sido a ética do cuidado, da solidariedade e do apoio mútuo a proporcionar as respostas mais adequadas e não as narrativas da confrontação e do medo, e que aquelas são igualmente válidas para uma resposta eficaz à emergência climática e ecológica. Aquela autora chama ainda a atenção para as ligações, com bases científicas, entre a destruição ambiental e a origem de epidemias zoonóticas, como a actual pandemia (ver p.ex. aqui ou aqui). Conclui que “não podemos esperar que a Humanidade seja realmente saudável num planeta doente” e que “é fundamental transformarmos a narrativa em torno do coronavírus, distanciando-nos daquela que se baseia no medo, na guerra ou no ódio, e escolhendo pelo contrário aquela que se baseia no amor, na solidariedade, na comunidade, na confiança e na regeneração. Podemos não saber como esta crise irá evoluir nem o que o futuro nos reserva, mas sabemos intuitivamente que o caminho da partilha, da compreensão e do cuidado é o melhor…”


Termino com uma citação de um excelente artigo de opinião da professora de filosofia italiana Elettra Stimilli: “(…) no interior das casas onde estamos reclusos, obrigados a racionar as relações sociais, podemos cuidar colectivamente dos nossos medos, transformá-los e fazer ouvir, finalmente, as nossas vozes.” Esperemos pois que as revelações proporcionadas por esta pandemia nos ajudem a tomar consciência da insustentabilidade dos modos de vida de muitos, assim como do sistema sócio-económico dominante que afinal beneficia poucos, e a perceber a necessidade de mudarmos de rumo e de promover mudanças radicais. Mas será igualmente indispensável que o distanciamento social imposto pelas medidas adoptadas por sucessivos governos não seja substituído por uma euforia consumista e alienante que nos iniba de voltarmos a reunir-nos para encontrarmos colectivamente os caminhos de coragem e de perseverança para um futuro mais justo e sustentável que sabemos ser possível, mas que não será alcançado se voltarmos simplesmente àquilo que tomávamos por normalidade.

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