quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Respigos de Verão (2)

L'été, les glaneuses (1853) J.F. Millet
Esta é a segunda leva dos Respigos de Verão (estação que se prolongou até à data da publicação deste post!). Podem conferir a primeira aqui. Os temas são desta vez mais variados – especulação imobiliária, lucros dos bancos, turistificação e demonização do activismo ambiental –, tendo por base notícias e artigos que fui respigando nos últimos meses. Faço ainda um destaque a um ensaio sobre o território da Arrábida e a sua relação com o pensamento animista, numa reflexão sobre o ambiente e a sustentabilidade da vida.


O tema da habitação e do imobiliário, em particular na cidade de Lisboa, tem andado no radar dos media e da opinião pública há vários meses e culminou com diversas manifestações no final de Setembro. O aspecto que me interessa neste tema é a relação com ‘os mercados’ e a especulação imobiliária. Era evidente, pelo menos desde 2022 (com ‘o fim da pandemia’), que a bolha imobiliária estava a inchar a olhos vistos – tanto em Portugal como noutros países europeus – e havia quem apostasse que iria rebentar em breve – ver p.ex. aqui ou aqui. Quem procura casa para arrendar em Lisboa, quem já teve de sair da cidade por não conseguir pagar as rendas ou quem tem empréstimos e começa a fazer contas à vida com a subida constante dos juros, sentiu na pele os efeitos de um mercado especulativo em rédea solta (ver p.ex. aqui). O governo português, tarde e a más horas, quis remediar a situação com o pacote ‘Mais Habitação’. As críticas choveram de todos os lados, em particular dos partidos da oposição, e ‘os mercados’ (neste caso, os especuladores imobiliários), quais frágeis donzelas, ficaram nervosos – ver p.ex. aqui. Vale a pena destacar alguns trechos desta ‘notícia’ para se perceber os disparates que se escrevem e dizem: “Imobiliário está a cair há um ano e teme novo choque com o Mais Habitação (…) Os operadores do sector imobiliário foram rápidos a reagir à apresentação do Mais Habitação, logo em Fevereiro, com avisos sobre o abalo que a confiança dos investidores iria sofrer. [minha ‘tradução’: o ‘sector’ temia afinal a perda dos seus lucros chorudos] Hoje, garantem que esse impacto já se sente e que os investidores estão mesmo «mais nervosos e desconfiados».” No mesmo artigo, diagnostica-se o problema: “A diminuição do rendimento das famílias por via da inflação, o aumento dos juros, a subida dos custos de construção e o desequilíbrio entre oferta e procura já pesam sobre o mercado há vários meses; mas constata-se (com um tom de bizarra admiração) que: “enquanto o número de vendas está a cair de forma acentuada desde o ano passado, os preços não dão tréguas e continuam a aumentar sem sinais de que venham a interromper as subidas em breve, embora cresçam a um ritmo menos acelerado do que aquele que se verificou no passado recente.” Só faltou mencionar quem beneficia afinal com esta situação: os fundos imobiliários e investidores, os mediadores (imobiliárias) e, é claro, os bancos. A ameaça dos incumprimentos nos créditos à habitação voltou a pairar, mas as reacções e medidas tomadas são no mínimo desconexas: por um lado, o Banco de Portugal reduziu a taxa de stress aplicada aos empréstimos à habitação para facilitar o crédito (ver aqui) e os bancos dão incentivos (‘borlas’, segundo este artigo) para angariar novos empréstimos na compra de habitação; por outro lado, teme-se o aumento do endividamento e os incumprimentos (ver aqui) e, pelo sim, pelo não, os bancos resolveram quintuplicar(!) as suas reservas para cobrir imparidades e prevenir o risco de incumprimentos no pagamento dos créditos (ver aqui). Parece que a bolha é mesmo para estoirar - mais uma vez!... E não é só por cá, noutros países europeus, os sinais de alarme também soaram (ver p.ex. aqui) e as mensagens de que não há motivo para preocupação (p.ex. aqui) surgem ao mesmo tempo que alguns governos se preparam para intervir (ver p.ex. aqui). Em Lisboa, foi agora aprovada a Carta Municipal da Habitação, apesar das críticas do BE – ver aqui.


Não há dúvida de que os bancos são um dos beneficiários desta situação, com os seus lucros a aumentarem - num momento de crise inflacionária –, com umas ‘ajudinhas’ do Banco Central Europeu, que tem vindo a subir as taxas de juro de referência (alegadamente, para conter a inflação). E quem fez as contas foi o próprio Banco de Portugal – ver p.ex. aqui ou aqui. Segundo o primeiro artigo: “Lucros dos bancos em Portugal dispararam 50% no ano passado, para 2,97 mil milhões de euros. Foi o melhor resultado desde a crise financeira global de 2007, de acordo com os cálculos do Banco de Portugal. Este resultado foi alcançado graças ao aumento da margem financeira… (…) Em 2022, os resultados aceleraram devido à subida das taxas de juro do Banco Central Europeu (BCE), que possibilitou aos bancos aumentarem a margem financeira em 1,38 mil milhões de euros para 7,5 mil milhões, o valor mais elevado desde 2011.” Essa situação foi confirmada em Julho com a divulgação dos resultados dos diferentes bancos portugueses, que originou uma catadupa de notícias publicadas em dias consecutivos: ver aqui, aqui, aqui e aqui. A esquerda estrebuchou, denunciando, com razão, a imoralidade e a injustiça – ver aqui e aqui. Neste último artigo de opinião do dirigente do BE João Soeiro, o autor escreve: “Desde janeiro do ano passado, a prestação da casa já subiu mais de 70%. A banca, que recebeu dos contribuintes mais de 26 mil milhões de euros entre 2012 e 2020, já lucrou dois mil milhões a mais nos últimos meses. É escandaloso e imoral. (…) Num semestre, a banca já ganhou mais do que todas as receitas que teve há um ano. Ao mesmo tempo que mantém baixas remunerações nos depósitos, beneficia enormemente com a subida das taxas de juros nos créditos, à boleia das decisões do Banco Central Europeu. O disparo da Euribor atinge diretamente 1,4 milhões de famílias com empréstimos com taxa variável (mais de 90%).” No entanto, a reivindicação mais veemente do BE continua a ser uma subida dos salários e dos impostos aos ricos – pode parecer justo, mas a mudança estrutural necessária deveria ser muito mais profunda e arrojada (e, quanto a mim, não se deve limitar a “derrotar o capitalismo”). Por seu lado, os partidos do Centrão (PS e PSD), não se deixaram comover por aqueles números e nem se atrevem a ‘hostilizar’ os bancos. As críticas à política do BCE vieram também de sectores mais moderados, apelidando-a de ‘leviandade social’ – ver p.ex. aqui ou aqui. No primeiro artigo de opinião, João Rodrigues dos Santos escreve: “A receita [do BCE] para salvar a Zona Euro assenta na política monetária e na subida das taxas de juro. Com juros mais altos, os bancos elevam os seus lucros. Na prática, os cidadãos com créditos à habitação contraídos pagam mais por cada euro recebido por empréstimo. O dinheiro nos cofres da banca aumenta. (…) há muito tempo que o limite da política monetária contracionista foi ultrapassado. Num ano, as prestações mensais sobem centenas de euros. É um ataque cruel às famílias, que as despedaça.” Neste mesmo artigo, o autor estende a sua crítica a empresas de outros sectores, em particular as energéticas: “Há uma harmonia conjuntural à escala global que contribui para o período excecional que Bancos e energéticas estão a atravessar. O processo não é complexo. Compreende-se com relativa facilidade. Primeiro, a conduta disruptiva e errática de um proeminente decisor mundial alarma os mercados. Estes últimos dão-se bem com a agitação. Por isso, não enjeitam a boleia. Num segundo momento, o ambiente de ansiedade generalizada e de muita incerteza cria o enquadramento perfeito para práticas especulatórias de preços. (…) Tudo se conjuga de forma harmoniosa para que as empresas produtoras e distribuidoras de energia acumulem lucros estratosféricos. (…) Mesmo que a origem das atuais dificuldades estivesse relacionada com variáveis estritamente económicas, continuaria a ser sempre moralmente obrigatório estabelecer um limite para o sofrimento humano. E tudo isto a ocorrer num quadro de aumento muito significativo dos lucros da banca. Um dos pensamentos mais elementares em economia consiste em reconhecer que os recursos disponíveis são sempre os mesmos e que apenas vão mudando de mãos. Para alguns terem mais, outros terão de ter menos, necessariamente. Energéticas e bancos aumentam agora os seus lucros de forma desmedida. Ao invés, as famílias veem os seus parcos recursos trucidados.” A isto devia chamar-se oportunismo predatório!

Bartoon (Público, 30 Julho 2023)

Os lucros excessivos das grandes corporações multinacionais foram revelados num novo relatório da Oxfam e Action Aid, publicado em Julho, onde foram divulgados os lucros recorde em 2021 e 2022 de mais de 700 grandes empresas internacionais (energia, alimentação, financeiras e farmacêuticas) e que defende a aplicação duma taxa de imposto de 50 a 90% sobre lucros excessivos (‘windfall tax’). Numa notícia no site do BE pode ler-se: “Mais de um quinto destes lucros «caídos do céu» (windfall profits), cerca de 219 mil milhões de euros por ano, foi parar às contas das 45 empresas do setor energético que figuram na lista da Forbes das duas mil maiores empresas. O aumento dos lucros da energia fez aparecer 96 bilionários no setor, com uma fortuna conjunta de quase 400 mil milhões de euros, mais 46 mil milhões do que em abril do ano passado. No setor alimentar e de bebidas, calcula-se que 18 empresas tenham faturado um lucro excessivo de quase 13 mil milhões de euros por ano em 2021 e 2022, à boleia do aumento de mais de 14% dos preços dos bens alimentares no ano passado. No setor da distribuição e supermercados, as 42 maiores redes lucraram mais 25 mil milhões por ano do que o que seria devido. A indústria farmacêutica também aproveitou a onda, com as 28 empresas de topo a apresentarem lucros excessivos de mais de 43 mil milhões anuais. (…) Há poucas semanas, um estudo do FMI veio confirmar que os lucros das empresas foram responsáveis por pelo menos metade da inflação registada na União Europeia nos últimos dois anos. A mesma conclusão tinha sido tirada por economistas da Reserva Federal em relação aos EUA em 2021.” Ainda assim algumas empresas do sector energético/petrolífero lamentavam o facto dos lucros de 2023 não estarem a corresponder às suas expectativas, como foi o caso da Shell que não conseguiu lucrar tanto no 2º trimestre de 2023 quanto previa – apenas 4,5 mil milhões de euros, em vez de 5,2! – ver p.ex. aqui. Nesta notícia pode ler-se: “Depois dos resultados históricos registados em 2022, os lucros da Shell caíram 56% no segundo trimestre do ano, à boleia da redução dos preços do petróleo e do gás, obrigando a empresa a desacelerar seu programa de recompra de acções. (…) Os resultados do segundo trimestre comparam ao lucro trimestral recorde de 11,5 mil milhões de dólares (10,4 mil milhões de euros) no ano anterior e de 9,65 mil milhões (8,7 mil milhões de euros) no primeiro trimestre de 2023. (…) Estes resultados foram divulgados num momento em que, segundo a Reuters, milhões de famílias britânicas lutam para pagar as contas de energia e depois de o regulador Ofgem ter alertado as empresas para evitarem pagamentos excessivos aos seus accionistas.” Imoralidade? Injustiça? “Who cares”?...


Quanto ao tema da turistificação, referi-me aos impactos da crise climática na procura turística na 1ª parte deste post e tinha já reflectido amplamente sobre o turismo de massa e os seus impactos num post que escrevi em 2017. Desde então, o fenómeno tem-se intensificado, apesar do abrandamento que se observou durante os dois primeiros anos da pandemia – ver p.ex. os seguintes documentários curtos: Crowded Out: The Story of Overtourism (Responsible Travel, 2018) e Overtourism plagues Europe (ARTE, 2023). Muitas das notícias publicadas este Verão sobre a evolução recente do turismo em Portugal, anunciaram em tom optimista e eufórico os recordes nas receitas e nos números de turistas – ver p.ex. aqui, aqui ou aqui. No entanto, os efeitos nefastos da enchente turística são evidentes, não só nas duas grandes cidades (Lisboa e Porto), como também p.ex. nas ilhas da Madeira e Açores – ver aqui e aqui. Para além dos impactos ambientais, têm vindo a ser discutidos mais regularmente os impactos sociais e económicos negativos da ‘monocultura’ turística - como no artigo sobre a Madeira citado atrás ou neste outro que mostra como os imigrantes que trabalham no sector são triturados pela máquina que alimentam. Numa conversa com três economistas publicada no site da Renascença (aqui), foi questionado o papel do turismo como ‘motor da economia’ ou ‘bóia de salvação’. Transcrevo alguns excertos: “Cerca de 22,3 milhões de turistas (não-residentes) pisaram solo nacional no ano passado, número que contrasta com os 14 milhões de 2012. Em cerca de uma década, a contribuição do setor do turismo para o PIB nacional passou de pouco significativa – 3,4% em 2013 – para um elemento central: uma fatia de 12,2% do PIB em 2022. (...) Na opinião de Vera Gouveia Barros, economista e autora do livro ‘Turismo em Portugal’ (ed. FFMS), o turismo tem alguns desafios próprios: «horários de trabalho exigentes», «sazonalidade» e «instabilidade de vínculos laborais». O maior, em todo o caso, está nos salários. «O setor não está bem», frisa. Que é como quem diz: paga mal. (…) segundo a ‘Agenda Profissões do Turismo: 2023-2026’, apresentada pelo Governo em abril deste ano, a remuneração média nos setores do alojamento, restauração e similares é 34% inferior à remuneração média do total da economia. Em média, os trabalhadores do turismo ganham 938 euros brutos por mês e apenas 60% tem contrato permanente. (…) diz o economista Alexandre Abreu. «Neste momento, Portugal está com turismo a mais. Nomeadamente, face às práticas de regulação do setor, que permitem o tipo de efeitos nocivos que são conhecidos sobre o setor da habitação ou disponibilidade hídrica.» Para o economista, «o alastramento praticamente desregrado do Alojamento Local é um dos fatores que contribui para o aumento fortíssimo dos preços da habitação que praticamente duplicou na última década.» Nos últimos dez anos, os preços das casas aumentaram quase 75%, de acordo com o INE.” Ainda assim, há um tom de lamúria quando se noticia o ‘abrandamento do crescimento’ das receitas – ver p.ex. aqui: “Os dados do INE revelam ainda que, entre janeiro e julho deste ano, os proveitos totais ascendem a mais de 3,2 mil milhões de euros, superando o total de proveitos gerados em 2020 e 2021 em conjunto e quase dois terços dos proveitos registados em todo o ano de 2022. No entanto, desde fevereiro que os proveitos têm apresentado um abrandamento da taxa de crescimento homóloga, passando de 97,2% em janeiro deste ano para apenas 10,6% em julho. Esta desaceleração é acompanhada pela subida dos preços das estadias, que atingiram valores recorde.”

Bartoon (Público, 11 Setembro 2023)

Finalmente, regresso ao tema da crise ambiental e climática (abordado na 1ª parte deste post, bem como em vários outros anteriores – ver aqui) para destacar um tópico preocupante que tem dominado uma parte do debate público: as sucessivas (e crescentes) acusações de ecoterrorismo e de radicalismo de que têm sido alvo várias iniciativas activistas de diferentes movimentos ambientalistas europeus (e também em Portugal). Note-se que tinha já aflorado o assunto este ano no post dos Respigos de Março. Um artigo de fundo da Euronews e da Reuters faz um relato exaustivo das recentes invectivas, possivelmente coordenadas, das autoridades da Alemanha, França e Reino Unido, contra diversas organizações e colectivos ambientalistas que promoveram iniciativas de acção directa nesses países em 2022 e 2023. Transcrevo alguns excertos: “Os bloqueios de estradas nas principais autoestradas britânicas provocaram o caos no trânsito, os protestos em instalações petrolíferas na Alemanha interromperam o abastecimento e, em França, milhares de ativistas e a polícia entraram em confronto por causa da utilização da água, deixando dezenas de feridos. (…) Determinados a impedir que estes protestos se reforcem ainda mais, os estados alemães e as autoridades nacionais francesas estão a invocar poderes legais frequentemente utilizados contra o crime organizado e os grupos extremistas para colocar escutas telefónicas e seguir os ativistas, segundo a Reuters, com base em conversas com quatro procuradores, a polícia de ambos os países e mais de uma dúzia de manifestantes. (…) As autoridades estatais na Alemanha estão a utilizar a detenção preventiva para impedir as pessoas de protestar, incluindo a detenção de pelo menos uma pessoa durante 30 dias sem acusação. Esta medida é permitida pela lei da Baviera, segundo os procuradores consultados pela Reuters. Os legisladores aprovaram novas leis de vigilância e detenção em França, em julho, e no Reino Unido, em maio. A Grã-Bretanha está a tornar ilegal trancar-se ou colar-se a uma propriedade. França utilizou uma unidade antiterrorismo para interrogar alguns ativistas do clima, confirmou a polícia à Reuters. Os governos britânico e da Alemanha afirmaram que a resposta aos protestos tinha por objetivo evitar ações criminosas prejudiciais. O Governo francês não quis comentar, mas já afirmou anteriormente que o Estado deve ser capaz de combater aquilo a que chama «radicalização».” Um dos movimentos destacado nesta notícia é 'Les Soulèvements de la Terre' (SLT, a que me referi no meu post de Março citado acima), que o governo francês pretendeu ilegalizar com acusações de ecoterrorismo, após uma sucessão de tentativas de demonização daquele colectivo ambientalista por parte do poder político e dos media em França – ver aqui ou aqui. Felizmente, gerou-se um coro de indignação e um movimento de solidariedade para com o SLT entre intelectuais, artistas e activistas franceses, que culminou com um apelo internacional contra a sua dissolução lançado em Julho – ver aqui ou aqui. O SLT recorreu da sentença e o Conselho de Estado suspendeu a dissolução em Agosto – ver aqui. Por cá, não se ouviu falar desta situação nos media nacionais dominantes (nem mesmo no jornal Público, que tem dedicado tanta atenção à crise climática, como destaquei no post anterior), que aparentam ter-se tornado aliados dos poderes instalados que preferem o conformismo. 


Num artigo de opinião, António Guerreiro denunciou o recurso crescente à palavra ‘ecoterrorista’ para rotular não só os activistas climáticos mais radicais, como também os intelectuais que se solidarizam com as suas acções. Transcrevo alguns excertos: “O antropólogo francês Philippe Descola, um dos representantes mais prestigiados da sua disciplina, a nível internacional, professor emérito do Collège de France [esteve em Maio na Culturgest, onde proferiu uma conferência], foi recentemente incluído pelo governo francês numa lista de suspeitos e indesejáveis cúmplices dos «ecoterroristas», por ter apoiado publicamente o movimento chamado Les Soulèvements de la Terre, que já conta com mais de cem mil signatários. A figura do “ecoterrorista” está em fase adiantada de construção pelo poder político (que já conseguiu introduzi-la no léxico da nossa época), com a colaboração de sectores importantes da opinião publicada nos media. (…) As máquinas predatórias de energia, dos recursos naturais e do espaço público, ao serviço de prazeres gratuitos, essas, nem por sombras se considera que elas relevam de um sistema, de uma maneira terrorista de habitar o planeta. Negá-lo, reivindicar os prazeres mesquinhos e privados como se não houvesse uma catástrofe ecológica em curso, é ser cúmplice de um crime de massa. Mas para esses actos não se aplica a noção de terrorismo nem sequer de delinquência.” Guerreiro denuncia o carácter destrutivo das alegadas ‘soluções verdes’ para os problemas da transição energética e da falta de água, citando os exemplos nacionais dos projectos de mineração do lítio no Norte do país e da dessalinização da água do mar no Algarve: “A água dessalinizada (tal como a extracção do lítio em Trás-os-Montes) seria uma boa coisa se não servisse para alimentar os delírios da tecnoengenharia e preservar o sistema de predação necrófila, ou seja, para ampliar tudo aquilo que provocou o estado de catástrofe...” E conclui: “Colocar o foco, como está a acontecer, nas alterações climáticas e investir tudo nos meios para prosseguir os mesmos fins, os de uma máquina exterminadora – isso sim, é obstinação terrorista.” As acusações de (eco)terrorismo ressurgiram novamente em Portugal na sequência de diversas acções directas recentes de activistas climáticos – ver p.ex. aqui ou aqui. Neste outro artigo de opinião, Manuel Soares (Presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses) afirma de forma demagógica e despudorada: “Ainda que possa soar exagerado, se virmos bem, há semelhanças perturbadoras entre as acções radicais dos grupos de activistas climáticos e os atentados das organizações terroristas. Em ambos os casos, trata-se de grupos organizados de pessoas unidas por uma ideologia comum, que planeiam e executam acções subversivas ilegais, em nome de um bem maior que eles próprios definem, para, sob violência e coacção, forçar mudanças políticas e sociais, fora dos mecanismos da democracia e do civismo. Claro que não é a mesma coisa uma miúda partir a montra de um edifício público, à martelada, pela calada da manhã, para aparecer a dizer umas coisas nas televisões; ou um bombista suicida fazer-se explodir à hora de ponta para rebentar com o prédio e matar pessoas. Mas o princípio é exactamente o mesmo: as minhas razões, indiscutíveis e superiores às tuas, dão-me o direito de te coagir violentamente a pensares e fazeres o que eu digo que está certo.” Mas mais adiante parece desdizer-se: “Como disse o Papa Francisco há dias, as acções dos grupos radicais do activismo climático são a resposta a um vazio da sociedade inteira, que não exerce uma sã pressão sobre os governos.” Esta afirmação refere-se a uma passagem da exortação apostólica ‘Laudate Deum’, dedicada à crise climática e publicada na 1ª semana de Outubro – ver p.ex. aqui. Apesar de algumas posições mais extremadas, têm também surgido manifestações de solidariedade na opinião pública e da parte de diversos colectivos – ver p.ex. aqui ou aqui. Num programa da série Em Nome da Lei, a Renascença convidou activistas ambientais e duas juristas para comentar as recentes acções directas, a partir da pergunta: “Se o protesto não tiver nenhuma dimensão ou consequência, serve para alguma coisa?” – ver aqui. As respostas foram, como seria de esperar, diversas, mas apenas uma das juristas defendeu a razoabilidade e legitimidade daquelas acções. Transcrevo excertos da notícia sobre a conversa: “A professora de Direito Penal Inês Ferreira Leite defende que para resolver as alterações climáticas são precisas mudanças radicais da sociedade, e que não é imaginável que isso possa acontecer de uma forma passiva. (…) conclui fazendo um apelo. «Nós falhámos. E não é vergonha nenhuma admitir isso, com humildade. Eu já vivi a minha vida quase toda», lembra. «Com sorte terei mais 25 anos de vida. Fiz tudo o que queria. Tive uma vida ótima. Fui muito feliz. Mas tenho de assumir que os esforços que eu fiz, e foram muitos, ao longo da minha vida para que as coisas melhorassem, não resultaram. Eu fui sempre razoável. Fui sempre de compromissos. De negociação. Não funcionou. Falhou a democracia de modelo ocidental. Está a falhar o capitalismo. Está a falhar a globalização. Está tudo a falhar. Nós falhámos. E, portanto, em vez de continuarmos a penalizar as gerações mais novas que herdam o fardo pesado que lhes deixamos, nós temos é de ter um bocadinho de humildade e tentar conhecer e perceber melhor as pessoas mais novas. E ver como é que as podemos ajudar.»


Termino com um destaque para um ensaio de M. Lima (Caracóis guardiões e peregrinações interditas, relatos da Arrábida a partir de pequenos encantos e novas ameaças) publicado no Jornal Mapa em Agosto, onde a autora discorre sobre o território da Arrábida - a expansão das pedreiras e da Secil, os caracóis endémicos e as peregrinações à capela de São Luís -, entrecruzando as suas observações com o pensamento de John Halstead, Michael Hadfield, Donna Haraway e Davi Kopenawa. É uma bela reflexão que recomendo e da qual transcrevo alguns excertos: “Viver dentro do Parque Natural da Arrábida renovou a minha sensação de reverência por este ecossistema. Sinto-o como um espaço sagrado, réstia de algo puro e equilibrado que deve ser mantido – contra todas as ofensivas. Isso leva-me a dedicar um pouco mais do meu tempo ao estudo dessas duas entidades, «Fauna» e «Flora», cruzando-as com leituras sobre mitos e tradições populares. Fico sob o efeito de uma espécie de encantamento com os novos detalhes que descubro a ler ou a passear. E, para cada novo encanto, descubro também a presença de uma ameaça de extinção, pairando como uma maldição. (…) John Halstead consegue resumir as interrogações principais que surgem quando não queremos escapar ao nosso entrelaçamento mútuo. Pássaros e cobras. Caracóis e espíritos. Cientistas e turistas. Humanos e não humanos. Mortos e vivos. Nós humanos temos de fazer mais do que só observar. Temos a capacidade de proteger e tomar por sagrado este entrelaçamento [‘entaglement’], a teia da vida, de modo a evitar uma grande catástrofe. (…) Estarei a sentir que os caracóis são espelhos vivos (ou já inanimados, como os ecos que encontrei) de espíritos ancestrais? Ficou aberta a possibilidade de ler os relatos de Kopenawa de um modo diferente e de entender que estes pequenos seres antigos são veículos de compreensão para um animismo comprometido; e que também podem ser os guardiões da justiça climática multiespécie, que defenda os direitos de moluscos, pessoas e espíritos, como propõe Donna Haraway. (…) As várias peregrinações e festividades da zona, muitas delas remanescentes de tradições pagãs, encontram na propriedade privada [Herdade da Comenda] um impedimento à sua realização – templos, caminhos e parques que antes eram de todas, estão agora fechados e condenados ao turismo, à agricultura intensiva ou ao abandono. (…) A pequena peregrinação a S. Luís confronta-nos com o conjunto de ameaças que já sabíamos pairar sobre a região, mas mostra-nos ainda uma outra: o afastamento das populações locais dos seus espaços naturais ajuda a insensibilizar para o esventramento. Longe da vista, longe do coração. Se por um lado não nos permitem ver o cancro a crescer, por outro, ao vedar o acesso aos espaços de lazer, desligam-nos da Natureza e dos seus ritmos…. Sobram os lazeres artificiais, os ritmos acelerados, o cimento e o alcatrão. Dificulta-se a sobrevivência dos círios e das procissões que, segundo o que eu própria estou a experienciar, podem ser momentos de reflexão sobre a interdependência de tudo e espaços simbólicos de ritualização da vida, ou seja, alívios contra as dores de viver num mundo encantado e amaldiçoado. Sonhos de travar o grande desenvolvimento em nome de espíritos, caracóis e procissões. É assim tão absurdo querer tapar os gigantes buracos das cimenteiras para salvar frágeis caracóis? Impedir que os espaços comuns possam ser privatizados porque queremos peregrinar até eles e «pedir» pelas espécies em vias de extinção?