sábado, 11 de dezembro de 2021

Sobrevivência do (mais) belo

The sight of a feather in a peacock's tail, whenever I gaze at it, makes me sick!Charles Darwin, carta para Asa Gray (1860)
On the whole, birds appear to be the most aesthetic of all animals, excepting of course man, and they have nearly the same taste for the beautiful as we have.Charles Darwin, The Descent of Man (1871)
Only when Darwin’s aesthetic view of evolution is restored to the biological and cultural mainstream will we have a science capable of explaining the diversity of beauty in nature.Richard O. Prum, The evolution of beauty (2017)
I believe our understanding of nature increases if we spend more time wondering about all this useless beauty.David Rothenberg, Survival of the beautiful (2011)

O título deste post é uma tentativa de integrar duas traduções possíveis para o título do livro ‘Survival of the beautiful’ (2011) do músico e filósofo norte-americano David Rothenberg (ver p.ex. aqui ou aqui). Por sua vez, o título escolhido por Rothenberg é uma referência à frase ‘Survival of the fittest’ (sobrevivência do mais apto) que é frequentemente usada para descrever o processo de selecção natural, proposto originalmente por Charles Darwin e Alfred Wallace no séc. XIX para explicar a evolução biológica (formação de novas espécies). Segundo essa proposta, as características que são mantidas nas diferentes espécies ao longo da evolução são aquelas que resultam numa vantagem adaptativa, garantindo o sucesso reprodutivo e a sobrevivência das populações em que essas características surgem (ler p.ex. aqui). No entanto, Rothenberg, assim como outros investigadores, incluindo alguns biólogos, apesar de concordar que a selecção natural é um dos motores da evolução, considera que não é o único. Aliás o próprio Darwin propôs um segundo processo, que designou por selecção sexual, para explicar o aparecimento de certas características que não têm uma vantagem adaptativa aparente, como a variedade de cantos ou de cores e formas das plumagens das aves que exibem dimorfismo sexual (ler p.ex. aqui).

    No seu livro ‘The descent of man’ Darwin escreve: “(…)nos insectos, anfíbios e aves, em que os machos durante a época de acasalamento produzem incessantemente notas musicais ou meros sons rítmicos, devemos acreditar que as fêmeas são capazes de apreciá-las e, portanto, de ficar excitadas ou encantadas; de outro modo, os esforços incessantes dos machos e as estruturas complexas, muitas vezes possuídas exclusivamente por eles, seriam inúteis.” Este processo pressupõe uma capacidade inata de reconhecer estruturas ou sons complexos nos animais não humanos, além de uma capacidade de apreciação estética por um dos géneros, em geral as fêmeas. No mesmo livro, Darwin escreve: “Coragem, combatividade, perseverança, força e tamanho do corpo, armas de todos os tipos, órgãos musicais, tanto vocais quanto instrumentais, cores brilhantes e apêndices ornamentais, foram indirectamente ganhos por um ou outro sexo, através do exercício de escolha, a influência do amor e do ciúme, e a apreciação do belo…”. Numa entrevista sobre o seu livro, Rothenberg afirma: “Temos tendência a pensar que a evolução significa a sobrevivência do mais apto, mas isso é apenas uma parte da história. Charles Darwin comentou que a cauda do pavão ‘o deixava indisposto’, porque ele não conseguia explicar a sua existência apenas com base na selecção natural. Ele teve que conceber o processo de selecção sexual, que postula que algumas características sobrevivem apenas porque um dos sexos as escolhe no parceiro, apenas porque gosta delas. É assim que temos a sobrevivência do curioso, do belo, do extremo, do bizarro e do aparentemente inútil na natureza.”

    Um dos exemplos que Rothenberg refere é o dos pássaros-jardineiro (‘bowerbirds’) que constroem elaborados caramanchões (‘bowers’) com ramos, folhagem, flores, bagas, cogumelos ou outros objectos que recolhem na floresta para cortejar as fêmeas (ler p.ex. aqui). Sobre estas sublimes estruturas, Rothenberg escreve: “E se os pássaros-jardineiro atraíssem, acasalassem e procriassem para a propagação dos caramanchões, não dos descendentes? Veja-se o processo como um exemplo de seleção estética... [Aquelas] não são estruturas para se viver, mas sim para as fêmeas admirarem. São feitas para serem uma coisa – belas.”

    Esta linha de pensamento já era patente num livro anterior de Rothenberg – ‘Why birds sing’ (2005) – onde ele sugere que o canto das aves tem um papel não utilitário, para além daqueles que lhes são atribuídos pela generalidade dos biólogos – atrair parceiros, repelir potenciais competidores ou demarcar o seu território –, e que não é dissemelhante da função da música para os seres humanos: dar prazer aos que a executam ou a quem a ouve (ver p.ex. aqui ou aqui, ou excertos de programa da BBC baseado no livro: aqui e aqui). Escreve a autor: “Por que cantam as aves? Pelas mesmas razões que nós o fazemos - porque podemos. Porque gostamos de habitar o puro reino do som. Mas também porque somos impelidos a cantar - é o modo como fomos engendrados para explorar as formas puras do som. Celebramos essa capacidade nas nossas principais tarefas, que nos definem a nós mesmos, defendendo o nosso território, convocando aqueles que amamos. Mas a forma é algo mais do que mera função.” As suas teses são rejeitadas por muitos biólogos (ver p.ex. aqui ou aqui), mas outros têm dedicado atenção ao assunto e concluem que existe não só qualidade musical no canto das aves, mas também capacidade criativa nalgumas espécies (ver p.ex. aqui ou aqui). Um outro músico que partilha das teses de Rothenberg é David Byrne, que no seu livro ‘How music works’ (2012) afirma: “O carácter adaptativo da criatividade não se limita a músicos e compositores (ou a artistas de outras áreas). Ele estende-se ao mundo natural também. David Attenborough e outros afirmaram que os cantos das aves evoluíram para se adequar ao ambiente. (…) a evolução e adaptação musical é um fenómeno interespecífico. E presumivelmente, como dizem alguns, as aves gostam de cantar, mesmo que, tal como nós, mudem as suas melodias com o passar do tempo. O prazer de fazer música prevalecerá, independentemente do contexto e da forma que emerge que lhe confira uma melhor adaptação.”

    Um biólogo que tem investigado e defendido o carácter subjectivo e arbitrário da apreciação estética em animais não humanos proposto por Darwin é o zoólogo norte-americano Richard O. Prum, em particular no seu livro ‘The evolution of beauty’ (2017). Prum sustenta que, contrariamente à maioria dos biólogos evolucionistas contemporâneos que atribuem à seleção natural a origem das formas e estruturas biológicas, fenómenos como a selecção sexual resultam de processos arbitrários que envolvem a avaliação cognitiva e neuronal de sinais sensoriais, conduzindo a soluções menos adaptativas e mais diversas (e belas), processo que ele apelida de evolução estética. Para além dos atributos que definem o dimorfismo sexual nas aves, Prum dá o exemplo da marcada diferença de diversidade nas estruturas das raízes das plantas quando comparada com a das flores (ver aqui): no primeiro caso (raízes), a forma é determinada principalmente por mecanismos de natureza adaptativa, que conduziram a soluções menos diversas mas optimizadas para a função (absorção de nutrientes); já no segundo caso (flores), embora existam características comuns derivadas da função (reprodução), a diversidade de formas é também determinada por um processo de coevolução entre a planta e a espécie polinizadora (insecto ou outro animal) que interagem cognitivamente. Prum afirma que: “a evolução estética é uma propriedade emergente que resulta duma escolha baseada na avaliação sensorial e cognitiva de sinais (visuais, sonoros), e atinge a sua maior complexidade através da coevolução desse sinal e da sua avaliação.”

    Dois outros autores que reflectiram igualmente sobre as origens da forma e da beleza, propondo hipóteses mais ousadas (e também menos consensuais) foram Gregory Bateson e Brian Goodwin. Mas como este post já vai longo, deixo essas propostas para uma segunda incursão ao tema. Por agora gostaria de salientar que existe uma tendência dominante na biologia, mas também na sociedade em geral, que atribui o sucesso evolutivo às soluções utilitárias ou economicistas. Essa visão de matriz racional, materialista e mecanicista parece-me claramente redutora por excluir as dimensões subjectivas e qualitativas facilmente experienciáveis (e portanto incontornáveis) da natureza das coisas e dos seres vivos em particular. Estas dimensões estão na base do conceito de estética ecológica desenvolvido por Bateson (ver p.ex. aqui ou aqui). Os exemplos que citei ilustram bem o contraste e confronto entre formas distintas de ver-conhecer o mundo, que acabam por reflectir-se necessariamente no modo de agir sobre ele. A visão dominante resulta em grande medida, a meu ver, de uma noção de excepcionalismo humano preponderante na cultura ocidental e que se manifesta de forma evidente, não só no pensamento biológico, como também no paradigma socioeconómico dominante. Este último foi não só influenciado pelo racionalismo cartesiano e o mecanicismo newtoniano, como resulta de uma visão utilitarista e produtivista do mundo que despreza valores subjectivos como a colaboração, a empatia ou a criatividade (não-utilitária/não-mercantil).

    A sensibilidade e apreciação estética são excelentes exemplos de capacidades que transcendem e precedem os seres humanos, oferecendo-nos uma visão de um mundo-além-do-humano pleno de qualidades, de intersubjectividades e de reciprocidades. A beleza inútil de que fala Rothenberg é afinal uma qualidade emergente de demorados processos naturais de interacção e co-evolução, acessível e apreciável pelos seres vivos sensíveis e que é fonte de encantamento, de alegria e de prazer.

    Deixo para fechar duas citações. A primeira é de Ferris Jabr, num artigo sobre as origens da beleza animal (que cita o trabalho de Richard Prum): “O que apelidamos de beleza não é simplesmente uma única coisa, nem totalmente intencional nem totalmente aleatória, nem apenas uma propriedade nem um sentimento. A beleza é um diálogo entre o que percebe e o que é percebido. A beleza é a resposta do mundo à audácia de uma flor. É a maneira como uma abelha se lança sobre as pétalas de um ranúnculo; é o cuidado com que um pássaro-jardineiro seleciona uma flor de hibisco; é o impulso de recriar nenúfares usando óleo sobre tela; é o impulso de colocar rosas sobre um túmulo.”

    A segunda é do livro já citado de David Byrne: “Parece que a criatividade, seja o canto das aves, a pintura ou a composição musical, é tão adaptativa quanto qualquer outra coisa. O génio – o emergir de um trabalho verdadeiramente notável e memorável – parece surgir quando uma coisa é perfeitamente adequada ao seu contexto. Quando algo funciona, parece-nos não apenas ser uma adaptação inteligente, mas também ressoa emocionalmente. Quando a coisa certa está no lugar certo, isso toca-nos de alguma forma.”

Nota: como ilustração adicional deste post criei duas listas de reprodução com vídeos do Youtube (com o título 'Survival of the beautiful'), uma com exemplos de atributos visuais em aves (aqui) e a outra com exemplos de atributos sonoros (aqui); recomendo ainda o visionamento duma montagem de imagens de seres marinhos (nomeadamente cefalópodes e cnidários) com música do compositor estónio Arvo Pärt (aqui).