quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Mais aeroportos, mais turistas e mais emissões de CO2? Só a brincar!

(adaptação e actualização de post publicado no Google+ em Nov 2018)
O actual governo está empenhado em alargar os aeroportos Humberto Delgado (Lisboa) e Sá Carneiro (Porto) e em promover a construção de um novo aeroporto na actual Base Aérea nº6 do Montijo. Tudo para alimentar a monocultura turística das duas maiores cidades nacionais e um alegado dinamismo económico, mas que está a ter impactos desastrosos em termos de especulação imobiliária e expulsão de habitantes dos centros históricos, para além de impactos ambientais mal conhecidos. Seguem links para dois artigos e um post que fazem um bom ponto da situação:
O PM Costa tem defendido o projecto de forma assertiva, como é seu hábito, invocando o ‘consenso nacional’ e usando a narrativa falaciosa da irreversibilidade e da inevitabilidade:
Excerto: “Depois de o país se ter dilacerado décadas em estudos e em alternativas sobre o local, não podemos agora perder tempo e, acima de tudo, não podemos dar tempo para que o consenso nacional se esgote mais uma vez. Por isso, temos de decidir, temos de avançar e temos de fazer.
O presidente executivo da multinacional ‘Vinci Airports’, que é proprietária da ANA Aeroportos e tem a concessão do novo aeroporto, também não se tem poupado a esforços na sua promoção, usando narrativas semelhantes e acenando com um projecto modernaço:
O outro ‘cheerleader’ da empreitada é o autarca local do Montijo (PS):

A falaciosa inevitabilidade do novo aeroporto serve pois para atender a outra alegada inevitabilidade – a do aumento do tráfego aéreo devido à procura turística –, podendo o actual número de mais de 26 milhões de passageiros anuais vir a duplicar com o novo aeroporto do Montijo em operação. Esta suposta inevitabilidade choca de forma condenável e vergonhosa com a necessidade urgente de suspender a utilização de combustíveis fósseis devido ao gravíssimo problema da mudança climática, esse sim aparentemente já inevitável. Choca também gritantemente com as promessas de descarbonização das economias por parte dos governos europeus, incluindo o português.
Quanto ao suposto ‘consenso nacional’, trata-se de outra falácia pois existe de facto contestação, quer por parte da ONGA Zero, que apresentou queixa formal à CE exigindo a realização de uma avaliação ambiental estratégica, quer por parte da Plataforma Cívica BA6-Não que junta associações, organizações e líderes políticos locais da margem sul, tem promovido acções de divulgação e contestação, e lançou uma petição pública, quer por parte do colectivo Climáximo. Mais recentemente, surgiu uma outra petição que contesta a ampliação do aeroporto Humberto Delgado, invocando questões de saúde pública e de sustentabilidade ambiental e social.
Para além das questões ambientais invocadas pela Zero e os impactos negativos para as populações locais e para a Reserva Natural do Estuário do Tejo enfatizados pela Plataforma Cívica BA6-Não, a prossecução de projectos que promovem o transporte aéreo altamente poluente e que aumentarão ainda mais a pegada ecológica de todo um território, deve ser claramente repudiada. Foi com um enfoque mais dirigido para esta questão de fundo que surgiu uma carta aberta ao PM subscrita por membros da Rede para o Decrescimento, que foi convertida num comunicado de imprensa e numa petição pública, a qual convido a assinar: http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=trafegoaereo-nao  
Surgiu mais recentemente uma plataforma de colectivos (Aterra) que defende a redução do tráfego aéreo e uma forma de mobilidade que respeite os limites do planeta, e cujo lema é ‘Mais aviões? Só a brincar!’. Esta plataforma (em que se integram a Rede para o Decrescimento e a Climáximo) partilha da visão da plataforma internacional ‘Stay Grounded’, que põe em causa o aumento global do tráfego aéreo e das infraestruturas aeroportuárias, e tem promovido acções de contestação em eventos públicos - ver aqui e aqui. É possível aceder à declaração “13 Passos por um Sistema de Transporte Justo e por uma Redução Rápida da Aviação” através do link: http://aterra.info/?page_id=38
Entretanto foi divulgado e está em Consulta Pública até 19 de Setembro o ‘Estudo de Impacto Ambiental’ (EIA) do aeroporto do Montijo solicitado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) à ANA:
A informação recolhida na consulta pública ajudará à tomada de decisão sobre a avaliação de impacte ambiental, um instrumento que ausculta as preocupações e prováveis consequências ambientais do novo aeroporto. A APA irá emitir então a Declaração de Impacte Ambiental, um parecer que aprova ou chumba o projecto.
Este post tem links para o portal Participa e sugestão de texto para participação na Consulta Pública que pode ser adaptado.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Crise climática e desenvolvimento sustentável

As recentes declarações de emergência climática (ver p.ex. aqui ou aqui) não estão infelizmente a ser acompanhadas de acção política mais vigorosa por parte dos governos – veja-se o caso do Reino Unido comentado neste artigo no‘The Guardian’:
“(...) the latest report to parliament of the government’s Committee on Climate Change makes it clear that the government’s commitment to mitigating the effects of the climate emergency is still very much at the stage of announcing speed limits: targets and exhortations without any enforcement or real effects on behaviour.”
Mesmo após diversos apelos do Secretário-Geral da ONU, a própria União Europeia não conseguiu chegar a acordo sobre os esforços de mitigação da mudança climática na recente reunião de líderes em Bona:
Também nos grandes media internacionais a crise climática não tem merecido o lugar de destaque que uma verdadeira emergência justificaria e o espaço mediático continua a ser dominado por variadíssimos ‘fait-divers’ que distraem a maioria da população, havendo mesmo quem apelide as declarações de emergência climática de ‘farsa mediática’: https://guilhotina.info/2019/06/21/emergencia-climatica-farsa-mediatica/
Não admira que os movimentos de cidadania internacionais que pugnam por acção urgente e eficaz para mitigar a crise climática não abrandem as suas acções de contestação:
Fridays For Future - Global Climate Strike (20-27 Set): https://globalclimatestrike.net/

Chamo a atenção para a entrevista ao Público do geógrafo alemão Wolfgang Cramer (esteve em Lisboa para o Congresso da Federação Europeia de Ecologia, tendo-se deslocado de comboio desde França onde é director do Instituto Mediterrânico de Biodiversidade e Ecologia): https://www.publico.pt/2019/08/01/ciencia/entrevista/quantidade-emissoes-gases-estufa-permitimos-aviacao-absurda-1881906 (pdf aqui)
Nesta entrevista Cramer destaca a contribuição da aviação para as emissões de CO2 e a necessidade de reduzir as viagens aéreas e estimular o transporte ferroviário, apostando p.ex. em redes de alta velocidade. Cramer afirma: “Votem em partidos que não construam aeroportos. As pessoas não devem acreditar no argumento que a economia está a beneficiar. É uma mentira.” Fala ainda da importância de mudar (promoção de práticas agrícolas biodiversas) e relocalizar a produção agro-alimentar, de práticas agro-florestais que previnam os incêndios florestais e de gestão urbana sustentável que não dependa apenas de novas tecnologias.

O congresso citado acima teve como tema a “A incorporação da ecologia nos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável”. No entanto, diversos autores e académicos têm posto em causa não só a validade e aplicabilidade dos ODS e da Agenda 2030 das Nações Unidas, como também têm destacado a sua incompatibilidade intrínseca (ver referências no final*) – p.ex. propõe-se mitigar a pobreza (ODS#1) e as alterações climáticas (ODS#13) promovendo simultaneamente o crescimento económico (ODS#8). Chamo a atenção para este artigo de opinião recente do sociólogo moçambicano Elísio Macamo em que faz uma análise crítica dos ODS, pondo em causa a exequibilidade das metas almejadas e a sua aplicabilidade em África: https://www.publico.pt/2019/08/01/mundo/opiniao/africa-rejeitasse-objectivos-desenvolvimento-sustentavel-1881616 (pdf aqui). Macamo questiona: “É a África que precisa deles ou a burocracia internacional do desenvolvimento e da caridade remunerada que precisa de uma África que precise dos ODS?” e afirma: “Ao invés de lograr o desenvolvimento através da deliberação e da confrontação de projectos alternativos, os ODS sufocam o debate premiando aqueles que com eles concordam” e que “o maior problema consistiu na fraca capacidade africana de gerir os efeitos das soluções.” Põe também em causa a prossecução de fins em detrimento da discussão sobre os meios para os atingir. “A África, hoje, não é pobre por ser pobre. É pobre porque é objecto de intervenção institucional para acabar com a pobreza.” E questiona ainda o conceito de pobreza e a necessidade de ser combatida: “Porque nunca nos passou pela cabeça que seja a riqueza o problema? A pobreza é o problema não porque o seja realmente, mas sim porque o sistema económico que gere o mundo assim a torna. (…) é fácil explicar porque a África devia rejeitar os ODS. Eles definem fins que definham o espaço político, impedindo uma discussão sobre os meios. Hoje, a pobreza é activamente produzida pelo modo dominante de gestão do mundo. (…) É suspeito querer resolver um problema criado por uma certa estrutura sem mexer nessa estrutura. Não é a África que é um problema, mas sim o mundo. Logo, no centro dos ODS deveria estar o funcionamento desse mundo.”

A resolução das crises social e ecológica (onde se inclui a crise climática) requer a sua integração num contexto mais alargado que inclua as dimensões económica, política e cultural. Só uma abordagem sistémica nos poderá permitir lidar com problemas sistémicos que estão intimamente ligados ao modelo sócio-económico global. O conceito de ‘desenvolvimento sustentável’ não rompe com o paradigma civilizacional dominante e como tal não creio que seja a saída que procuramos. É por isso que me revejo nas propostas do decrescimento que tenho vindo aqui a divulgar: https://respigadordanet.blogspot.com/search/label/Decrescimento


* Ver p.ex.:
https://politheor.net/fragmented-incoherent-chaotic-global-goals-need-better-orchestration/