terça-feira, 30 de agosto de 2022

Uma azinheira em Monsanto

(Este post resultou de uma investigação-criação para o festival Pedras’22 do c.e.m-centro em movimento)

Todo o conhecimento cósmico é um ponto de vida (e não apenas um ponto de vista), toda a verdade é o mundo no espaço de mediação do vivente. Nunca se poderá conhecer o mundo enquanto tal sem passar pela mediação de um vivente. Emanuele Coccia (A vida das plantas, 2018)

Vegetar é crescer em contiguidade com o mundo, coabitar lugares, aderir e fazer espaços, engajar-nos com aquilo que nos circunda – ou, antes, nos atravessa. Criar raiz e lançar sementes. In: Vozes Vegetais, J. Cabral de Oliveira et al. (2021)

De há uns anos a esta parte tenho reflectido sobre o papel que a nossa relação com o mundo-mais-do-que-humano (a que chamamos muitas vezes ‘natureza’) desempenha nas visões que construímos sobre o mundo que habitamos e no modo como gerimos as sociedades em que vivemos (ver p.ex. aqui ou aqui). Muitos outros se têm debruçado sobre esta temática, desde filósofos a naturalistas e activistas, e já invoquei por diversas vezes as suas vozes ou os seus escritos (ver p.ex. aqui ou aqui). Tenho levado algumas dessas reflexões para a minha colaboração com o c.e.m-centro em movimento, em particular para as ‘conversas transpensar’ que decorreram às 2ªs-feiras à tarde entre Outubro de 2021 e Junho de 2022. Em paralelo, iniciei no final de Abril uma série de incursões no Parque Florestal de Monsanto com a intenção de desenvolver uma proposta para o festival Pedras’22. Aquele parque florestal é um excelente exemplo de simpoiese (tema de post anterior) na medida em que o que nos é dado ali a apreciar e vivenciar no presente é o resultado de um processo de cocriação entre humanos e plantas. De facto, a maioria das árvores de grande porte que ali encontramos resultaram de um processo de reflorestação que se iniciou no final da década de 1930 (ver p.ex. aqui e aqui). O processo prolongou-se até ao final dos anos 1940 e partir daí seguiram-se décadas de gestão florestal activa com novas plantações (essencialmente espécies autóctones), mas também de renovação natural, acentuando as características de bosque mediterrânico que conferem ao parque um carácter de floresta silvestre.


Nas minhas deambulações na zona sul de Monsanto, cruzei-me com uma azinheira na orla de uma zona florestada que me cativou pela forma acolhedora da sua copa, fazendo lembrar um caramanchão (passei aliás a designá-la por “azinheira-caramanchão”). Esse encontro activou em mim algumas ligações mentais-sensoriais que remeteram para as estruturas (‘bowers’) construídas pelas chamadas ‘aves-jardineiro’ - tradução possível para a palavra inglesa ‘bowerbird’, que designa um grupo de aves da Papuásia e Austrália (ver p.ex. aqui ou aqui). Tinha-me cruzado com aquelas estruturas ao investigar para um post que escrevi sobre a hipótese do músico e filósofo norteamericano David Rothenberg em relação à criatividade dos animais não-humanos - que ele resumiu na expressão “survival of the beautiful”. Desta vez, não me interessou tanto a discussão em volta da validade dos atributos de artistas ou arquitectos que são conferidos àquelas aves, mas mais à sua actividade de recolectoras ou colecionadoras de objectos que encontram nas florestas onde habitam. Durante várias semanas visitei regularmente aquela azinheira singular e permaneci em estado de escuta demorada sob a sua copa. Em cada visita deixei-me levar pelo impulso de recolher e trazer para ali diferentes objectos que fui encontrando nas imediações, alguns deles assumidamente inspirados nos que são escolhidos pelas aves-jardineiro. As acções de selecionar e compor os diferentes objectos que fui recolhendo – flores, líquenes, pinhas, ramos, pedras, cascas de pinheiro, hastes de gramíneas, sementes - levaram-me, por um lado, a reflectir sobre as qualidades que motivavam as minhas próprias preferências e, por outro, a experimentar o puro gozo desse mesmo exercício. Foram a alegria e o deleite desses gestos que me fizeram ali voltar e demorar, alimentando o desejo de cada (re)encontro.



Durante aquele processo realizei diversas caminhadas nas imediações da azinheira-caramanchão que me deram a oportunidade de apreciar as diferentes qualidades das diversas zonas em seu redor e as suas subtis nuances. Descobri por exemplo que já existiam outros vestígios de intervenção humana (criativa) naquele espaço (ver fotos abaixo), acrescentando-lhe uma outra camada de simpoiese sob a forma de estruturas, a que podemos atribuir a designação de ‘land art’.



No entanto, o principal foco da minha atenção e curiosidade durante as caminhadas dirigiu-se às plantas, apreciando a diversidade e distribuição de árvores e arbustos, bem como das herbáceas e como estas vão variando e se vão sucedendo ao longo das semanas e meses, na transição da Primavera para o Verão. Num grande prado em declive suave junto ao Pólo Universitário da Ajuda, pude assistir à fascinante e prodigiosa sucessão das herbáceas, com as suas flores mais ou menos vistosas - os diversos tipos de malmequeres, as malvas, as soagens, as tanchagens, as chicórias, os verbascos, ou os vários cardos. O corrupio de variados insectos – em particular, abelhas e escaravelhos de diferentes tipos e tamanhos, atraídos pelas flores - era igualmente notável. O outro grupo de herbáceas muito abundante e diverso naquele prado, ainda que mais discreto, é o das gramíneas. A diversidade de formas das suas sementes, que convidam a um olhar apurado e demorado, assim como a flexibilidade das suas hastes, ondulando ao sabor do vento, são especialmente deslumbrantes (ver este post que escrevi para o blogue do Pedras’22). Igualmente deslumbrante foi a constatação da criatividade que se expressa na diversidade de soluções (flores e sementes) para as mesmas funções de reprodução e dispersão. Várias vezes me deixei ficar - o corpo suspenso em momentos esquecidos de pura contemplação e êxtase - perante tamanha preciosidade e tão profunda sabedoria.



Recordo aqui o fenómeno de ‘cegueira botânica’, a que aludi num post que escrevi em 2021. A expressão traduz uma incapacidade ou insensibilidade de notar ou reconhecer a diversidade do mundo vegetal à nossa volta - extensível a outros componentes do mundo-mais-do-que-humano, como os líquenes (ver também post sobre líquenes e musgos que escrevi para o blogue do Pedras’22). As minhas demoras em Monsanto impeliram-me a reflectir novamente sobre o que impedirá muitas pessoas de ver e de se deslumbrar com a variedade de cores, formas, texturas e movimentos, que as diferentes plantas exibem e como esses mesmos atributos vão variando ao longo de um dia, ou de vários dias, semanas ou meses. Desconfio que tenha a ver com uma disponibilidade e uma demora que permitem que se vá estabelecendo uma intimidade entre cada um/a de nós e esses outros seres, transformando progressivamente uma eventual indiferença ou estranheza em curiosidade e deslumbramento crescentes. Trata-se portanto de aprofundar uma relação, um estar-com que não precisa de para-quês ou de comos, que se contenta com a magia dessa co-presença e que intui as diversas agências dos outros seres viventes no co-fazer do mundo. Invoco aqui o livro ‘A vida das plantas’ do filósofo Emanuele Coccia (citado no início deste post) onde o seu autor discorre sobre o desprezo a que as plantas foram votadas ao longo da história da filosofia, defendendo a necessidade de resgatar uma filosofia da natureza cosmológica e argumentando demoradamente sobre a relevância das plantas como ‘agentes culturais’, no sentido de criadoras-construtoras do mundo.



Sabemos que o que vemos do mundo é apenas uma fracção de uma realidade complexa e com múltiplas camadas, que é filtrada pelos nossos sentidos, mas também pelas nossas práticas desses sentidos, que são, por sua vez, influenciadas pelo nosso contexto cultural e social, pela nossa história de vida e visão do mundo. Mas por mais que a nossa percepção da realidade externa seja limitada ou condicionada isso não nos desresponsabiliza como agentes de fazer mundo. Como sugere a citação do livro ‘Vozes Vegetais’ no início deste post, podemos sempre participar num com-viver que aprofunda e cuida do entre-corpos, recusando e resistindo às histórias de separação e de excepcionalismo que, na sua miopia ou cegueira, semeiam destruição e injustiça. Precisamos por isso de resgatar os espaços e o tempo que nos restituam a capacidade de ver, de sentir, de empatizar – numa palavra, de nos reencantarmos - com o mundo-mais-do-que-humano, do qual somos parte integrante. E que melhor exemplo de mediação nesse processo que o da azinheira-caramanchão - ou outra planta (ou ser não-humano) que elejamos para ser noss@ companheir@?


Nota 1: o texto deste post teve por base os seguintes posts que escrevi para o blogue do Pedras’22: https://pedras22.wordpress.com/2022/06/03/demora-sob-a-azinheira-caramanchao-1/ ; https://pedras22.wordpress.com/2022/06/07/demora-sob-a-azinheira-caramanchao-2/; https://pedras22.wordpress.com/2022/06/17/demora-sob-a-azinheira-caramanchao-4-cegueira-botanica/

Nota 2: o processo de investigação-criação culminou com um evento para o festival Pedras’22 (Tarde no campo, 28 Jun), preparado em colaboração com a historiadora Teresa Castro e que incluiu um piquenique no pinhal, uma caminhada e uma conversa à sombra da azinheira-caramanchão – ver este post do blogue do festival.

Fotos: Álvaro e Marcin (ver fotos adicionais disponíveis nos posts citados na Nota 1)