Líquenes e musgos (Parque Florestal de Monsanto) |
No one acts
alone / Nothing is connected to everything; everything is connected to
something (Nenhum vivente age sozinho / Nada está conectado a tudo; tudo está
conectado a algo), Donna Haraway
(…) “life”
is an idea. We find it useful to think of some things as alive and others as
inanimate, but this division exists only in our heads. Ferris
Jabr
Our view of
life as a continuum of variably structured collaborative systems leaves open
the possibility that a variety of forms of organized matter – from chemical
systems to ecosystems – might be usefully understood as living entities. John Dupré & Maureen O’Malley
The non-dual nature of simultaneously surrendering and leaping makes my head spin and my heart race in the most delicious way. The tension and beauty of this radically entangled freedom is that I don’t act and make meaning (and die) alone – I make-with in community, in sympoiesis. Cheryl Hsu
Simpoiese é uma palavra e um conceito proposto pela filósofa Donna Haraway no seu livro “Staying with the trouble” (2016), que significa fazer/criar-com ou em-conjunto, para enfatizar a interdependência radical que caracteriza a vida e todos os viventes (é possível aceder ao texto completo do capítulo sobre simpoiese nesta ligação). Para Haraway, é também um ensejo para frisar que as interligações e interacções que se estabelecem entre os seres vivos são extensíveis ao meio geofísico onde vivem e têm um claro paralelo com as relações presentes nas sociedades humanas. Segundo a autora: “[sympoiesis] is a word proper to complex, dynamic, responsive, situated, historical systems. It is a word for worlding-with, in company”. Aquele conceito tem ainda um carácter político na medida em que a relação que criamos com o mundo e as narrativas que usamos para descrevê-lo são parte fundamental da direção em que queremos levá-lo: “It matters what thoughts think thoughts. It matters what knowledges know knowledges. It matters what worlds world worlds. It matters what stories tell stories”.
A noção de individualidade e de separação dos membros de uma comunidade natural (ou de uma sociedade) é claramente uma invenção e ilusão humanas, pois sabemos não só que todos os indivíduos interagem e dependem entre si, mas também que cada indivíduo (animal ou planta) é uma comunidade de células próprias e de muitos outros micróbios que com ele convivem – ou seja, todos os seres vivos são na verdade holobiontes (ver p.ex. aqui). Mesmo no caso dos micróbios unicelulares (em que cada indivíduo é constituído por uma única célula), como muitas bactérias e protozoários, os indivíduos não são solitários e interagem com outros indivíduos da mesma espécie, com outras espécies e com o entorno em que estão inseridos. Isto tem como consequência que cada organismo, em maior ou menor medida, conduz a transformações do meio onde se insere – neste sentido, todo o vivente é criador de cultura e de mundo (ver p.ex. Mente e matéria ou a vida das plantas de Emanuele Coccia). Além disso, aquelas interacções levaram a que o próprio processo evolutivo (que é muitas vezes reduzido à sua componente genética por via das modificações por mutação ou por trocas genéticas) seja na verdade sempre uma co-evolução. Um exemplo deste processo ubíquo é o de certas orquídeas silvestres cujas flores mimetizam a forma das fêmeas dos insectos que as polinizam (ver p.ex. aqui). Haraway, no seu livro “Staying with the trouble”, dá precisamente como exemplo de simpoiese a orquídea Ophris apifera (erva-abelha) cuja abelha polinizadora se extinguiu (pelo menos numa parte da sua área geográfica natural), constituindo a sua flor a única imagem que temos do que seria a forma daquele insecto – exemplo que ilustra com o ‘cartoon’ criado por Randall Munroe, reproduzido abaixo (mas ver também aqui).
A possibilidade das nossas sociedades, ditas ‘desenvolvidas’, se voltarem a relacionar de forma equilibrada com o mundo-mais-do-que-humano, depende agora duma mudança de paradigma que nos afaste da noção de excepcionalismo humano e que nos permita transformar o nosso próprio papel de meros gestores e dominadores da vida para o de cuidadores e guardiões, guiados por práticas de reciprocidade e de empatia. Como aliás sempre o fizeram e continuam a fazer vários povos indígenas, cujas cosmovisões e estruturas sociais, que integram a natureza (ou seja, o mundo-além-do-humano) na sua vida quotidiana, as nossas sociedades têm desvalorizado ou ignorado como primitivas (ver p.ex. aqui). Pior do que isso, esses povos foram sujeitos a processos brutais de aculturação, expropriação e genocídio em nome da prosperidade económica de uma parte privilegiada da humanidade. A colonização dos humanos por outros humanos reproduz as atitudes de domesticação, dominação e mercadorização das outras formas de vida que ameaçam agora a nossa própria sobrevivência - ver p.ex. o meu 'post' anterior.
O culminar do excepcionalismo humano cultivado por uma parte
da humanidade é a auto-designada era do Antropoceno,
em que o próprio ser humano se torna força geológica, atribuindo-se também a si
próprio o papel de salvador da catástrofe por si causada (ver p.ex. aqui ou aqui).
Vários autores têm criticado ou recusado aquela designação, não só pelo
evidente antropocentrismo que lhe está associado, mas também por insinuar que o
‘antropos’ é uma entidade universal e homogénea, escamoteando assim a natureza
socioeconómica e cultural dos processos que estão na base dos problemas e os
diferentes graus de responsabilidade de diferentes povos, comunidades e
instituições naqueles processos (ver p.ex. aqui
ou aqui). É no fundo
a própria visão dominante de mundo e de vida que está em causa, na medida em
que se baseia numa separação dos seres humanos do restante mundo vivo e
não-vivo. As vozes críticas e as visões alternativas de divers@s filósof@s,
ecologistas polític@s, antropólog@s, ecofeministas, activistas, etc. defendem
que apenas uma religação radical com o mundo-mais-do-que-humano, envolvendo uma
escuta activa e uma atenção reparadora, nos pode afastar do rumo ecocida e
suicida em que nos encontramos. Uma dessas vozes é precisamente a de Donna
Haraway que propôs a designação de Chthuluceno
para uma nova época de sustentabilidade regenerativa caracterizada pela
simpoiese (ver p.ex. aqui). Haraway
propõe assumir as relações colaborativas e empenhadas entre seres terranos
(incorporados na própria terra) como narrativa e como modo de vida, numa
tentativa de recriar e resgatar o(s) comum(ns) e de, simultaneamente, (re)ligar
artes, ciências, tecnologias e pensamento. A autora afirma: “Maybe, but only maybe, and only with intense
commitment and collaborative work and play with other terrans, flourishing for
rich multispecies assemblages that include people will be possible. I am
calling all this the Chthulucene—past, present, and to come.”
Praia das Avencas |
Concluo com as palavras do escritor e biólogo Mia Couto e do filósofo político camaronês Achille Mbembe, em entrevistas ao jornal Público (aqui e aqui):
"Na
minha concepção não existe uma árvore em si mesma, existe uma árvore em relação
às pessoas, e o mesmo para os bichos. Portanto, como a ecologia nos sugere,
temos de encontrar a verdade das coisas não por via de essências, mas por via
de relações. E é isso que a literatura também nos diz, as pessoas são o que são
porque são parte de uma rede." Mia Couto
"Partilhamos a Terra com outras entidades, que são todas vivas, não há entidades mortas porque mesmo as entidades mortas referem-se de algum modo a uma capacidade de agir, embora um agir de maneira diferente das entidades vivas. Tudo é capaz de agir, capaz de ser mobilizado em modalidades de acção diferentes. E, portanto, por princípio, a capacidade de agir é partilhada com os antepassados, com a Natureza, com a atmosfera, com as forças naturais, as tempestades, etc. Assim, se se quiser viver bem e por muito tempo é necessário aprender a coexistir com tudo, orgânico, o natural, o humano, não-humano." Achille Mbembe
Nota final: este texto é uma versão ampliada de um ‘post’ que escrevi para o blog do festival Pedras22 (promovido pelo c.e.m-centro em movimento): https://pedras22.wordpress.com/2022/06/23/transpensares-a-vida-como-simpoiese/
Ligações para textos de outros autores que abordam o conceito de simpoiese:
Fazendo nós: fazer-com no Antropoceno, Vitor Chiodi (2017): http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/fazendo-nos-fazer-com-no-antropoceno/
Sympoiesis,
Gavin Lamb (2020): https://medium.com/thewildones/sympoiesis-an-environmental-keyword-for-new-nature-writers-f1aba5cb9592
The
sympoiesis of life life-ing, Cheryl Hsu (2021): https://cherylhsu.ca/post/2021-01-20-life-lifeing/
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