quinta-feira, 30 de setembro de 2021

A verdade da mentira: as narrativas mediáticas sobre o Afeganistão

Vinte anos depois do 11 de Setembro, a humilhação americana prova que uma invasão militar e uma guerra para impor o “nosso modo de vida” acabou a fortalecer os fundamentalistas. Que a Administração americana tenha sido apanhada de surpresa é um atestado de ignorância relativamente ao terreno que ocuparam durante 20 anos. Ana Sá Lopes

The vast majority of the money the US spent on that country in the subsequent 20 years was to pay for the bombs they dropped on it. The money spent on building the place up was tiny in comparison. And much of it was lost to corruption. Juan Cole

America’s corporate media are ringing with recriminations over the humiliating U.S. military defeat in Afghanistan. But very little of the criticism goes to the root of the problem, which was the original decision to militarily invade and occupy Afghanistan in the first place. Medea Benjamin and Nicolas J.S. Davies

A retirada americana do Afeganistão em Agosto, depois de 20 anos de ocupação militar, teve cobertura mediática global e foi inicialmente noticiada como uma humilhação para os EUA, com inevitáveis comparações com a retirada desastrosa do Vietnam em 1975 (ver p.ex. aqui ou aqui). Segundo a primeira notícia, “Depois de biliões de dólares e mais de 2 mil mortos entre os soldados norte-americanos, bem como as mortes de dezenas de milhares de civis afegãos, Biden considerou que os Estados Unidos tinham poucas hipóteses de transformar uma nação em grande parte tribal e subdesenvolvida.” O presidente terá afirmado: “A ideia de podermos usar as nossas forças armadas para resolver todos os problemas internos que existem no mundo não está dentro das nossas capacidades”. Depois de décadas em que esse tem sido o pretexto usado pelos EUA para justificar a sua política externa militarista e imperialista, aquela afirmação é no mínimo hipócrita. Biden terá ainda deixado a pergunta: “A questão é a seguinte: está em jogo o interesse vital da América ou o interesse próprio de um dos nossos aliados?”. No editorial de Ana Sá Lopes, a autora apelida de patética a afirmação de ‘missão cumprida’ por parte do secretário de Estado americano, Antony Blinken, lembrando que o presidente afegão fugiu do país um dia após o presidente Biden o ter instado a governá-lo.

Mas muito rapidamente a narrativa mediática mudou o seu foco para a tomada de Kabul pelos Taliban, para as imagens do aparente desespero de milhares de afegãos a tentarem fugir da capital e para a instauração de uma nova cruzada fundamentalista pelas forças que tomaram o poder, em particular contra as mulheres. A campanha de demonização da nova tomada do poder pelos Taliban pelos media foi denunciada por Patrick Martin, num artigo de opinião onde escreve: “all of the tropes employed by the corporate media to ‘sell’ to world public opinion the invasion and occupation of Afghanistan in 2001, no matter how moth-eaten and worn out, are being revived. This serves two purposes: to paper over the war crimes carried out by the US in the past and to prepare public opinion for an intensification of imperialist pressure on the war-ravaged population.”

Esta aparente tentativa de desviar a atenção da incapacidade (ou incompetência) dos militares americanos em cumprirem de facto a sua missão e de branquear a destruição e sofrimento que causaram naquele território com o pretexto da alegada 'Guerra ao Terror', não impediu que vários artigos denunciassem a corrupção interna que deu milhões de dólares dos contribuintes americanos a ganhar ao denominado complexo militar-industrial, que inclui as diversas empresas de armamento e de material militar – ver artigos de Juan Cole, de Chris Hedges e de Medea Benjamin & Nicolas J.S. Davies. Neste último artigo, os autores denunciam também as tentativas de silenciar as vozes que, durante anos, reclamaram a paz e a retirada das tropas americanas do Afeganistão. A hipocrisia dos aliados europeus, que apoiaram activamente a 'Guerra ao Terror', também não passou desapercebida – ver p.ex. aqui ou aqui –, mas o mais chocante foram os anos sucessivos de mentiras do próprio governo americano sobre a ocupação do Afeganistão, ecoadas pelos media dominantes, denunciados p.ex. num artigo recente do jornalista Glenn Greenwald.

As tentativas de abafar ou censurar as opiniões que criticam ou condenam a actuação das sucessivas Administrações norte-americanas tiveram um novo episódio com o anúncio recente da prisão preventiva de um oficial dos fuzileiros navais (U.S. Marine Lt Col Stuart Scheller) por ter publicado vídeos seus no Facebook onde faz afirmações alegadamente danosas para as chefias militares sobre a retirada do Afeganistão – ver p.ex aqui. Esta notícia serve de mote a um vídeo recente do comediante britânico Russell Brand, onde denuncia as reiteradas tentativas dos poderes instalados de silenciar quem os põe em causa, dando também como exemplo o caso de Julian Assange, acossado há anos pelas autoridades norte-americanas, recordando um seu depoimento sobre as verdadeiras motivações da ocupação americana do Afeganistão: alimentar os empreiteiros militares e os senhores da guerra com milhões de dólares do erário público.