domingo, 31 de julho de 2022

Época de incêndios: desvarios e milagres

Rescaldo do incêndio em Palmela (Jul 2022)
Há várias dezenas de anos prevíamos e denunciávamos publicamente que estávamos a transformar as nossas montanhas numa pira de óptimo material combustível, a que até um “iluminado” ministro [Mira Amaral] chamou o “petróleo verde” de Portugal. Realmente tem razão; [o eucalipto] arde tão bem ou melhor do que o petróleo. Jorge Paiva

El éxodo rural, los cambios socioeconómicos y el cambio climático facilitan una acumulación inmensa de combustible vegetal listo para arder con intensidades y velocidades nunca vistas. Antes vivíamos del bosque; ahora nos defendemos de él. Marc Castellnou e Alejandro García

No caso de Portugal, Espanha e França, 98% dos incêndios são precocemente extintos, mas os 2% restantes são responsáveis por 95,4% da área ardida. A conclusão é cortante como uma lâmina: para evitar incêndios devastadores nas condições especialmente hostis das alterações climáticas, a chave está no ordenamento e não no combate. Viriato Soromenho Marques

Um país cronicamente incapaz de prevenir fogos ao longo de décadas, vira-se agora com ferocidade contra a primeira vítima do fogo, a natureza, que por ser combustível e arder, tem que ser eliminada, mesmo que sejamos nós, incauta ou criminosamente, a atear 99 % dos fogos – se não houver vítima, não pode haver agressor ou agressão; se não houver combustível, não há combustão. Maria José Castro

À medida que o mundo rural da agricultura familiar se tornou o bastardo rejeitado por interesses económicos e políticos e o eucalipto se expandiu, os fogos tornaram-se, para alguns, uma lucrativa “indústria” de milhões. Maria Carolina Varela

Com a recente onda de calor, regressou o triste espectáculo mediático do flagelo dos incêndios, acompanhado do habitual rol de meios usados no ‘combate às chamas’, dos estragos directos (para os humanos) e dos hectares ardidos - quando na verdade os parâmetros mais relevantes para mostrar a real magnitude dos incêndios seriam a sua velocidade de propagação e a energia emitida (ver p.ex. aqui ou aqui). E por atacado vem a estupefação e consternação pelas tragédias humanas, que alimentam o sensacionalismo e voyeurismo doentios amplificados ad nauseam pelas TVs. Mas raramente leio ou ouço menção às espécies vegetais e animais perdidas ou à destruição de ecossistemas e aos anos que demorará a sua recuperação - se é que será possível... Timidamente, surgem menções à conexão entre as vagas de calor e a mudança climática (antropogénica), potenciadora do que já foi apelidado como o Piroceno (ver aqui ou aqui), mas muito poucas às causas profundas dos recorrentes mega-incêndios, como a calamitosa gestão do território florestal e rural pelos sucessivos governos (nacional ou locais) ou a trágica desertificação humana do interior. O título de um recente artigo de opinião no Público (‘Continuamos a apagar fogos’) deixou-me esperançoso, mas o seu conteúdo frustrou as minhas expectativas. Pelo contrário, o artigo da engenheira silvicultora aposentada Maria Carolina Varela no jornal i enumera os múltiplos interesses que beneficiam dos incêndios (indústria madeireira, celuloses e empresas de prevenção e combate) e desconstrói algumas das falácias mais recorrentes: os eucaliptais das celuloses não ardem, outras espécies florestais são igualmente pirófilas, os matos e o abandono do minifúndio disperso são os culpados. Diversas vozes vêm aliás alertando para a necessidade de apostar num mosaico florestal que evite as extensas monoculturas de pinheiro ou eucalipto – que muitos insistem perversamente em apelidar de ‘florestas’ (ver aqui ou aqui). Mas os poderosos interesses instalados, incluindo o lóbi das celuloses, conseguem cooptar académicos e especialistas que defendem o seu modelo de gestão florestal (ver p.ex. aqui). 

Em 2017, em artigo de opinião numa publicação digital sobre cultura (Comunidade Cultura e Arte), que permanece apenas disponível aqui, Pedro Santos discorre sobre os verdadeiros incendiários que opinam a partir das urbes – excertos: O fogo que arde em Lisboa, nas redações dos principais jornais, revistas e televisões do país, propaga-se na voz de gente que já não sai de Lisboa. Que não conhece o país. Que não tem qualquer ligação ou empatia com o modo de vida rural, com as suas práticas. Mas que dirige os principais meios de comunicação do país. (…) [Os incendiários que querem bodes expiatórios para culpar] São os mesmos que escarnecem das lutas de ambientalistas e ativistas. Que se riem de quem tenta falar contra os esquemas das barragens inúteis que vão destruir os nossos rios e encarecer a fatura da eletricidade; que se riram quando houve oposição ao fecho de linhas de caminho de ferro no Tua, no Corgo, no Tâmega, por esse Alentejo fora; que se riem quando se fala em Proteção da Natureza; que acham bem que se tenha acabado com Guardas Florestais e Guarda Rios; que ignoram as lutas contra a exploração de gás natural e petróleo; que propagam os mitos da agricultura intensiva, de um Alqueva em cada esquina ou de um fábrica de pasta de papel em cada região. O autor conclui que cabe aos cidadãos tomar nas suas mãos a responsabilidade de criar as condições para pôr fim à calamidade recorrente dos incêndios. Também em 2017 (ver aqui), António Dores destaca vários dos aspectos referidos atrás, assim como outros que refiro adiante, e, perante a incapacidade do Estado em lidar com as raízes do problema, defende uma mudança de regime político baseada na auto-organização territorial das suas populações, enumerando algumas das diversas organizações da sociedade civil que, desde 2017, têm promovido iniciativas de reflorestação no território nacional (ver nota 1 no final do post).

Foto de capa do jornal Público de 16 Out 2017

Desvarios

Apesar dos apelos de organizações ambientalistas, quer em Portugal, quer em Espanha, a profundas mudanças nas políticas florestais (ver p.ex. aqui, aqui e aqui), o primeiro-ministro continua a enjeitar responsabilidades do governo na (má) gestão florestal, admitindo a incapacidade de resolver o problema dos incêndios e transferindo essa missão para os cidadãos. Fê-lo em 2017, garantindo que o país continuaria a arder (ver p.ex. aqui) - o que de facto tem acontecido! -, e voltou a reforçar este ano que a “responsabilidade de evitar a ocorrência de incêndios” é dos portugueses, tendo decretado estado de contingência com restrições de múltiplas actividades, mas reafirmando que o Estado não é “segurador universal” e não tem que compensar eventuais impactos negativos das medidas (ver p.ex. aqui). Pior ainda, os seus governos têm decretado medidas avulsas de eficácia duvidosa, nomeadamente: a cega ‘limpeza dos matos’ imputada aos proprietários, que resultou em aberrações de extermínio da biodiversidade vegetal e no agravamento da perda de humidade e da erosão dos solos (ver p.ex. artigo de opinião da professora universitária Maria José Castro); as reflorestações promovidas por grandes empresas com critérios duvidosos na seleção das árvores plantadas; ou a recente proibição de usufruto de espaços florestais e de jardins(!), alegando que a presença de pessoas constitui risco de incêndio (ver p.ex. aqui)! É verdade que muitas ignições ocorrem por incúria, devido p.ex. a queimadas, mas a presença de pessoas naqueles espaços pode ajudar no alerta precoce, que evita que um fogo possa tomar proporções incontroláveis, não deixando campo aberto aos incendiários que são responsáveis por muitas outras ignições. Por outro lado, têm sido gastos milhões de euros na prevenção (lembram-se do tristemente famoso SIRESP?) e no combate aos incêndios (bombeiros e meios aéreos). É sempre mais simples (e menos arriscado) para os decisores políticos tentar mitigar os estragos do que actuar sobre as causas sistémicas - vê-se isso há anos na questão dos fogos e viu-se também na gestão da pandemia. É bom para a sua imagem e assim protegem os interesses instalados em vez de defender o verdadeiro interesse público. Nem mesmo o ‘presidente dos afectos’ consegue exercer uma eficaz magistratura de influência nesta matéria e, apesar de imparável nas suas deslocações e declarações, as suas boas intenções ficam-se pelas selfies e os abraços. Tudo isto é lamentável (mas não inesperado), tanto mais que vários indícios de corrupção ou de conluio criminoso têm vindo a lume, denunciados p.ex. em reportagens jornalísticas de 2017 e 2018 em Espanha e em Portugal (ver nota 2 no final do post). Em Espanha assiste-se também a uma intensificação deste flagelo e o mega-incêndio de Junho gerou pelo menos forte indignação social no país vizinho (ver aqui e aqui).

Cartoon de Vasco Gargalo (2017)

Milagres

Perante o esperado agravamento das alterações climáticas, que gerará mais ondas de calor potenciadoras de grandes incêndios, e a incapacidade ou irresponsabilidade dos poderes públicos de travar o flagelo, será que nos resta aguardar por algum milagre que nos salve da catástrofe iminente? Felizmente, esses ‘milagres’ já estão a acontecer. Para além das iniciativas citadas na nota 1 (no final), este ano já foi possível constatar os benefícios dos projectos de restauro de vegetação autóctone, como o da Associação BioLiving que funcionou como travão na progressão do incêndio de Estarreja no início do mês de Julho – ver aqui e aqui. De facto, para aquela associação este episódio demonstra claramente a importância da floresta nativa – as chamadas ‘árvores bombeiro’ – para a segurança das populações e a necessidade de uma gestão florestal pensada à escala do território e não da propriedade, evitando as grandes extensões de eucaliptal ininterrupto. 

Em 2018, escrevi um texto sobre um outro ‘milagre’ chamado Mata da Margaraça, que reproduzo a seguir para concluir este post. Faço notar que a complexidade desta questão não se limita às questões que abordei aqui e defendo (como muitos outros)  que seriam necessárias políticas públicas que promovessem uma gestão bem mais sustentada do território (ver p.ex. o artigo de opinião dos engenheiros florestais espanhóis Marc Castellnou e Alejandro García, já citado), fomentando p.ex. a fixação de populações no interior ou a plantação de bosque autóctone e de folhosas de crescimento lento ('árvores bombeiras', ver p.ex. aqui).

Mata da Margaraça: 2017 vs. 2018

O 'milagre' da Margaraça

‘Onde há vida, há esperança’ foi o título que dei a um post no qual comentei várias reflexões sobre os sentimentos antagónicos de esperança e de desespero que podem surgir perante as ameaças e os desastres ambientais que enfrentamos. Mal sabia que iria encontrar, passadas umas semanas, uma confirmação inesperada daquele aforismo. De facto, no início de Agosto (de 2018) percorri algumas das áreas do país mais afectadas pelos incêndios florestais de 2017, em particular a zona de Arganil que foi palco do segundo maior mega-incêndio jamais registado em Portugal e que teve características únicas, nomeadamente o maior fenómeno piroconvectivo alguma vez observado na Europa e o maior do mundo em 2017 (ver aqui e aqui). Pude constatar que as encostas da serra do Açor em volta da aldeia da Benfeita tinham um aspecto verdadeiramente desolador, dominadas pelos troncos queimados dos pinheiros que cobriam grande parte daquele território, deixando exposto o solo - que só não estava despido porque a Primavera de 2018 foi chuvosa e fez despontar fetos e herbáceas que deram algum tom verde à paisagem. Havia no entanto alguns pequenos ‘oásis’ em certos vales encaixados e áreas limítrofes das povoações, onde algumas árvores e arbustos tinham escapado à fúria das chamas. Um daqueles vales encaixados cuja vegetação, constituída por árvores e arbustos autóctones, sobreviveu foi o da Barroca de Degraínhos, na zona da Fraga da Pena, embora as partes mais elevadas deste acidente geológico tenham sido muito afectadas pelo fogo. Mas um pouco mais acima, a seguir à aldeia de Pardieiros, encontrei aquilo a que se pode chamar um verdadeiro milagre: a Mata da Margaraça. Trata-se de uma área de paisagem florestal protegida de rara beleza, que tenho vindo a visitar há já vários anos e que é constituída por uma floresta mista de folhosas (castanheiros, carvalhos, ulmeiros, vidoeiros, folhados, medronheiros, azereiros, cerejeiras, azevinhos, loureiros, aveleiras e salgueiros), constituindo uma relíquia das antigas florestas que cobriam algumas das encostas mais frondosas das nossas serras do interior (ver aqui ou aqui). Os primeiros relatos dos efeitos do mega-incêndio de Arganil fizeram-me temer o pior (ver p.ex. aqui) e já me tinha tentado preparar para o impacto de um cenário desolador - que foi o que encontrei até lá chegar. Mas ao aproximar-me dos limites da Mata, o cenário dos troncos de pinheiro carbonizados foi sendo gradualmente substituído por árvores cobertas de folhagem verde, cuja intensidade e extensão contrastava fortemente com o tom escuro que predominava a toda a volta. A mancha da Mata Margaraça, apesar de algumas zonas queimadas, sobressaía como um verdadeiro oásis verde no meio do deserto de troncos queimados das encostas circundantes (ver fotos acima). De facto, cerca de 60% da Mata ficou quase intacta (ver p.ex. aqui) e pela descrição dos técnicos do ICNF (que gere aquele área protegida) o fogo avassalador que a atravessou encontrou ali um foco de resistência à sua propagação, devido às características da folhagem e ao maior índice de humidade, como se não viu em qualquer outra área de igual extensão. Algo semelhante havia ocorrido ali aquando de outro grande incêndio que afectou aquela região em 1987. Não há melhor prova da capacidade de resistência a um mega-incêndio de características excepcionais, como o de Outubro de 2017, do que uma verdadeira floresta como a Margaraça, quando comparada com as monoculturas de eucalipto e pinheiro que ainda cobrem grande parte do território do centro do país. Infelizmente, a predominância e insistência na plantação de eucalipto (ver p.ex. aqui ou aqui), a que não é alheia a pressão do lóbi das celuloses (ver p.ex. aqui), continua a ser motivo de grande consternação e desesperança. Creio que toda a gente deste país, em particular os jovens, deveria ir ver com os seus próprios olhos aquilo que testemunhei (ver p.ex. aqui). Essa visita devia ser mesmo obrigatória para os comentadores e especialistas que insistem em ludibriar a opinião pública, tentando escamotear os efeitos nefastos das plantações de eucaliptos que alimentam as celuloses (ver p.ex. aqui ou aqui). A Mata da Margaraça é um exemplo (vivo) de que onde existe vida na sua máxima diversidade e complexidade - bem adaptada ao território e bem gerida -, existe de facto esperança. Saibamos nós retirar as conclusões dos sucessivos flagelos dos incêndios florestais para podermos vislumbrar um futuro menos sombrio do que aquele que podemos vir a ter.

Nota 1

Iniciativas de reflorestação e projectos agroflorestais

- Rede Reflorestar Portugal: https://www.facebook.com/ReflorestarPortugal/

- Aliança pela Floresta Autóctone: http://florestautoctone.webnode.pt/

- APAGAR – Aliança Para Acabar com as vaGAs Recorrentes de Fogos:

http://www.campoaberto.pt/?p=1713010

- Terracrua (Permacultura e agrofloresta): http://terracrua.org/blog/floresta-mista-e-as-populacoes-locais/

- Projecto AFINET (Redes Regionais de Inovação Agroflorestal): https://www.tveuropa.pt/noticias/sistemas-agroflorestais-reduzem-risco-de-incendios/

Nota 2

Investigações jornalísticas e artigos sobre indícios de corrupção ou conluio criminoso
O cartel do fogo ES (Set 2017) – ver aqui e aqui
(…) parece complicado relacionar las muertes de Pedrógão, y la superficie calcinada por incendios en Portugal y España en lo que va de año —118.000 hectáreas sólo en Portugal—, con otra causa que no sea la ineptitud política, los intereses de empresas locales o pequeños propietarios de tierras, la plantación descontrolada de eucalipto o los pirómanos. Sin embargo, todo apunta a que los fuegos que arrasan cada año la Península Ibérica se alimentan no sólo de oxígeno y madera, sino sobre todo de corrupción.
Reportagem TVI (Out 2017): https://tviplayer.iol.pt/programa/reporter-tvi/53c6b3483004dc006243bd77/episodio/t4e25
Artigos media PT:
http://visao.sapo.pt/actualidade/portugal/2017-07-25-Carteis-esquemas-e-estado-dos-helicopteros.-Os-negocios-do-fogo-revelados-nesta-entrevista
https://www.publico.pt/2017/09/04/sociedade/noticia/justica-portuguesa-investiga-ramo-portugues-do-cartel-do-fogo-1784152
http://www.jornaltornado.pt/cartel-do-fogo-ou-lobbies-dos-incendios/
Entrevista a Xabier Vázquez Pumariño (biólogo) sobre o lóbi florestal da Galiza (Out 2017):
http://www.lavanguardia.com/vida/20171019/432157474162/industria-fuego-galicia-xabier-vazquez-pumarino.html
A máfia do pinhal, investigação TVI (Abr 2018): https://tviplayer.iol.pt/programa/reporter-tvi/53c6b3483004dc006243bd77/episodio/t5e10
https://observador.pt/2018/04/13/incendio-que-consumiu-pinhal-de-leiria-foi-planeado-um-mes-antes/