sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Valorizar o território, os seus habitantes e as suas actividades


Este post é sobre dois notáveis projectos nacionais criados para serem acessíveis essencialmente através da internet. São dois preciosos documentos sobre o território nacional que valorizam a sua paisagem e os seus habitantes, representando excelentes alternativas (e antídotos) às abordagens folclóricas e superficiais da divulgação turística. Trata-se de projectos independentes que investigaram, apoiados numa recolha criteriosa de material audiovisual, duas regiões do país que se sobrepõem: por um lado, o Museu da Paisagem, que teve (numa fase inicial) como objecto de estudo a bacia hidrográfica do Tejo (desde a sua entrada em Portugal, entre a Beira Baixa e o Alto Alentejo, até à sua foz na Extremadura), e, por outro, o webdoc Rodom, que se focou no concelho de Vila Velha de Ródão (Beira Baixa). O primeiro dedicou-se ao levantamento da paisagem natural e antrópica (construída ou gerida pelo ser humano), olhando o território como processo dinâmico de relação entre os seus habitantes e a natureza, tendo resultado de um projeto de investigação de uma equipa multidisciplinar de investigadores, professores e estudantes da Escola Superior de Comunicação Social do Politécnico de Lisboa, com a coordenação de João Gomes de Abreu e a curadoria de Margarida Carvalho. O Museu da Paisagem pretende, segundo os seus autores, promover a formação de uma cidadania paisagística e constituir uma plataforma participativa e geradora de conhecimento, representações e diálogos sobre a paisagem. O abundante e diversificado material disponível (incluindo conteúdos pedagógicos) pode ser explorado de diferentes formas – uma delas através de um mapa disponível aqui.
Membros da equipa do Museu da Paisagem (Portas de Ródão)
O segundo projecto teve por base uma recolha de testemunhos orais de habitantes do concelho de Vila Velha de Ródão, complementada por investigação etnográfica e antropológica daquele território, tendo como autora e realizadora Patrícia Gomes e produção da Ocidental Flimes. O documentário interactivo Rodom pode ser navegado a partir de um mapa ou de um menu disponíveis na página de entrada, que permitem aceder às histórias fascinantes das vidas e actividades da população local, ao longo dos tempos, através das vozes dos seus protagonistas (ou das dos seus descendentes ou familiares). O motivo condutor do projecto surge no final do vídeo introdutório e é uma citação de um dos entrevistados: ‘marca da separação do que foi e do que é’.
Mapa de acesso aos documentos audiovisuais do projecto Rodom
Trata-se portanto de dois projectos digitais (ou virtuais), mas que divulgam e promovem, com notável profundidade e sensibilidade, realidades paisagísticas, antropológicas e sociais, muito concretas. O convite que faço é a navegarem demoradamente qualquer dos dois sites, explorando o valioso e diversificado material audiovisual que disponibilizam. E depois, quem sabe, se sintam estimulados a viajar até a alguns daqueles lugares para explorar in loco as extraordinárias riquezas dos territórios que são ali retratados.

Museu da Paisagem: https://museudapaisagem.pt/
Notícia sobre este último projecto:

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Um presépio arrojado

Imagem respigada do site da CNN
Uma pastora metodista corajosa instalou um presépio à porta da sua igreja (Claremont United Methodist Church, Claremont, California) que é um verdadeiro manifesto político sobre o tratamento dado pelas autoridades norte-americanas aos refugiados que tentam atravessar as suas fronteiras:
Atendendo ao teor e força da instalação (as três figuras encerradas separadamente em gaiolas com arame farpado), as reacções não se fizeram esperar e muitos dos seus paroquianos ficaram incomodados. A pastora Karen Clark Ristine defendeu a essência cristã da mensagem que pretendeu transmitir, escrevendo no site da própria igreja: "In a time in our country when refugee families seek asylum at our borders and are unwillingly separated from one another, we consider the most well-known refugee family in the world - the Holy Family. (...) In the Claremont United Methodist Church nativity scene this Christmas, the Holy Family takes the place of the thousands of nameless families separated at our borders".

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

COP25, cimeiras alternativas, relatórios, avisos de cientistas: está alguém a prestar atenção?

Teve início esta 2ªf (2 Dez) e decorre até dia 13, em Madrid, mais uma cimeira sobre o clima promovida pela ONU (COP25). Vários sites de media nacionais e internacionais têm secções especiais dedicadas à cimeira – Público, Esquerda.net e The Guardian. Com o lema ‘Time for Action’, a cimeira deste ano tem como missão promover a concretização dos compromissos assumidos pelos países no Acordo de Paris (COP21 em 2015) para evitar o agravamento da crise climática, com ênfase nos mecanismos do chamado ‘mercado global de carbono’ para ajudar os países a reduzir as suas emissões e financiar medidas de redução nos países em desenvolvimento. No entanto, o historial das cimeiras anteriores e as críticas aos mecanismos de compensação de emissões (‘carbon offsetting’) não auguram um desfecho favorável para a COP25, apesar dos apelos do presidente do IPCC ou do secretário-geral da ONU – ver p.ex. aqui, aqui e aqui.
Em paralelo com a COP25, decorrerá também em Madrid um encontro promovido por dezenas de movimentos e organizações sociais e ambientais de diversos países (incluindo Portugal) – a Cimeira Social pelo Clima – que será precedida por uma manifestação na tarde do dia 6 Dez.
Uma outra cimeira alternativa que decorreu no estado brasileiro do Pará em Novembro - Amazônia Centro do Mundo (ver vídeo-reportagem aqui) – juntou líderes indígenas, activistas ambientais e académicos. Dessa cimeira resultou um manifesto que convida à defesa da vida e da floresta, recusando a sua depredação e destruição, e termina propondo: “Queremos amazonizar o mundo e amazonizar a nós mesmos. Liderados pelos povos da floresta, queremos refundar o que chamamos de humano e voltar a imaginar um futuro onde possamos viver.”
A procura de caminhos alternativos à falta de ambição das actuais políticas nacionais e internacionais é claramente urgente. De facto, vários relatórios e artigos recentes pintam cenários que vão do pouco animador ao catastrófico e mostram que os esforços (exíguos) de mitigação dos últimos anos não têm sortido grande efeito (o relatório da UNEP usa mesmo a expressão ‘falhanço colectivo’), tendo as emissões globais de GEE continuado a subir (em particular, o CO2 proveniente das centrais a carvão):
- Relatório da ONU – “UNEP Emissions Gap report” (ver p.ex. aqui ou aqui)
- Relatório da Organiz. Meteorológica Mundial - “WMO Greenhouse GasBulletin” (ver p.ex. aqui)
- Artigo da revista Nature “Climate tipping points – too risky to bet against” (ver p.ex. aqui)
O relatório da UNEP traça os diferentes cenários de evolução das emissões globais de CO2 até 2030 que mostra bem a escala do desafio para evitar a subida da temperatura média de 2ºC até 2100 – ver o gráfico no artigo do The Guardian ou a animação no site interactivo da UNEP.
Destaco também um outro relatório recente – “European Environment - State and Outlook 2020” (SOER report) – da Agência Europeia do Ambiente, que é produzido a cada cinco anos e faz uma análise da evolução, no espaço europeu, de vários indicadores relacionados com o clima, a poluição, a biodiversidade e o consumo de recursos naturais (ver p.ex. aqui). Mais uma vez, o panorama é desanimador, com os diferentes governos europeus a não cumprir as metas e os compromissos anunciados, já que apenas 6 dos 35 indicadores analisados mostraram uma evolução positiva. O relatório faz questão de deixar o aviso de que a insistência na promoção do crescimento económico é incompatível com a mitigação das crises ambiental e social, uma clara mensagem dirigida à nova Comissão Europeia liderada por Ursula von der Leyen.
A expressão emergência climática e ambiental parece ser adequada para descrever a situação actual, tal como defendido em mais um aviso subscrito por cerca de 11,000 cientistas mundiais, sobre o qual escrevi em Setembro mas que só foi formalmente publicado em Novembro (ver aqui, aqui ou aqui).
Dado que a resposta política a toda evidência científica sobre a dimensão e gravidade da catástrofe ambiental (mudança climática, perda de biodiversidade, destruição de ecossistemas, etc.) tem sido insuficiente ou ineficaz (ver p.ex. aqui ou aqui), serão necessárias abordagens bem mais radicais se quisermos evitar uma catástrofe ainda maior. É esse o propósito das mobilizações mundiais das greves estudantis do movimento internacional Fridays For Future (ver p.ex. aqui) ou das acções de desobediência civil do movimento Extinction Rebellion (ver p.ex. aqui). No entanto, será preciso o envolvimento de muito mais cidadãos e grupos profissionais neste processo, incluindo o dos próprios cientistas que deverão, não só abandonar a sua habitual postura conservadora e cautelosa (ver p.ex. aqui), como também envolver-se directamente nos movimentos sociais e políticos, tal como têm sugerido alguns académicos – ver p.ex. aqui ou aqui. As cartas de apoio de cientistas aos movimentos sociais são importantes (ver aqui ou aqui) mas não chegam.
A emergência que vivemos requer uma convergência dos movimentos sociais,  ambientais e indígenas com diferentes grupos profissionais e iniciativas locais de resiliência e regeneração, para conseguir exercer a pressão necessária para a mudança social como propõem os activistas Kevin Zeese e Magaret Flowers neste post.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Continuo a não apoiar o Banco Alimentar e a insurgir-me contra a postura do presidente

(Foto respigada do DN)
(texto baseado em post publicado no G+ em Dez 2018)
Como em anos anteriores, decorreu em grandes superfícies do sector alimentar mais uma campanha do Banco Alimentar contra a Fome (BACF), apoiada activamente pelo presidente Marcelo, como noticiado em quase todos os media nacionais - ver aqui, aqui ou aqui.
Numa atitude que considero lamentável, o ‘presidente dos afectos’ fez campanha pelo assistencialismo e pelas grandes superfícies; este ano escolheu o Pingo Doce mas no ano anterior tinha sido o Continente, tendo então enfatizando que dar é obrigação dos privilegiados (uma mensagem com um evidente cunho de moralismo religioso) - ver aqui ou aquiEsta afirmação, num país com níveis de desigualdade e de pobreza elevados e em que muito do rendimento gerado vai para a mão de poucos ou para fora país, é ainda mais lamentável - ver p.ex. aqui, aqui ou aqui.
Por outro lado, fazer compras numa grande superfície comercial contribui para beneficiar as grandes empresas de distribuição que têm lucros chorudos à custa dos hipermercados e dos preços baixos que pagam a funcionários e produtores, sendo pois co-responsáveis pelas desigualdades - ver p.ex. aqui, aqui ou aqui.
E, ainda por cima, parte do rendimento gerado por aquelas empresas é tributado fora do país - ver p.ex. aqui, aqui ou aqui.
Igualmente funesto é o facto destas campanhas permitirem àquelas grandes cadeias libertarem-se de excedentes, como é referido neste post que aborda ainda a relação entre o BACF e as IPSS ligadas à Igreja.
A existência de bancos alimentares pode ser justificável em situações graves de carência alimentar e como medida provisória, devendo, no entanto, ser complementada por medidas de médio-longo prazo, como políticas públicas sociais eficazes e mudanças de paradigma económico. A caridade não pode substituir a solidariedade, que, por sua vez, deve apenas colmatar desigualdades ou injustiças não evitáveis. Não é contribuindo para o Banco Alimentar que se luta contra a fome ou a pobreza, mas sim lutando contra a riqueza desmedida, as desigualdades e a hegemonia dos privilegiados - ver p.ex. aqui.
No Reino Unido, onde a austeridade tem vindo a intensificar as situações de pobreza extrema e de carência alimentar, os bancos alimentares aumentaram a sua intervenção, situação que tem sido alvo de críticas - ver aqui ou aqui.
Na vizinha Espanha também tem havido críticas aos bancos de alimentos e às suas ligações às instituições religiosas - ver aqui, aqui ou aqui.
O último artigo citado explicita as razões pelas quais os bancos alimentares são socialmente indesejáveis e injustos:
- praticam a caridade, que não é compatível com o cumprimento dos direitos humanos por parte dos Estados;
- alimentam a estratégia de lucro das grandes empresas do sector alimentar;
- limitam a liberdade de escolha das pessoas desfavorecidas;
- tornam difícil a adopção de dietas equilibradas;
- intensificam a estigmatização e os problemas de exclusão social;
- inibem a capacidade para a mobilização e a contestação social.
Em relação aos 3º e 4º pontos da lista, vale a pena destacar que o tipo de alimentos recolhidos, que está em parte relacionado com as limitações do BACF e da sua estrutura centralizada, não é compatível com uma dieta equilibrada. Sobre este tópico é interessante referir um outro projecto britânico de dimensão local mas com princípios e práticas muito diferentes das do Trussel Trust (ao qual são aliás dirigidas fortes críticas) - ver aqui
Em relação ao 5º ponto da lista acima, sugiro a leitura deste artigo de opinião do sociólogo António Pedro Dores. 
Finalmente, Marcelo referiu que o problema de fundo se resolve com mais crescimento e mais emprego – só não explicou como isso é possível quando o actual crescimento das economias é conseguido à custa do aumento das desigualdades sociais e da destruição ambiental, e quando os empregos estão a desaparecer, a ser mal pagos e sem regalias sociais, como consequência do modelo económico e financeiro globalizado - ver p.ex. aqui ou aqui.
Pela minha parte, e para não me acusarem de criticar sem oferecer alternativas, irei continuar a pugnar por uma mudança de paradigma social e económico que torne os Bancos Alimentares completamente obsoletos e desnecessários. É por isso que defendo o Decrescimento planeado, um rendimento básico incondicional e um rendimento máximo sensato e justo - ver p.ex. aqui e aqui.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A obsessão do crescimento

A nova equipa da Comissão Europeia liderada pela sra. von der Leyen, recém-aprovada pelo PE, veio apregoar que a sua prioridade será o combate à crise climática como estratégia para o crescimento das economias europeias:
https://www.publico.pt/2019/11/27/mundo/noticia/combate-alteracoes-climaticas-sera-nova-estrategia-crescimento-europa-promete-von-der-leyen-1895246
https://www.reuters.com/article/us-eu-commission/new-eu-chief-vows-to-fight-climate-threat-boost-growth-idUSKBN1Y102X
Acontece que foi exactamente o crescimento económico, baseado na queima de combustíveis fósseis e no consumo desenfreado, um dos principais responsáveis pelas alterações climáticas e a degradação ambiental. Assim o dizem vários cientistas:
"Economic Growth as a Major Cause of Environmental Crisis", Pacheco et al. 2018:
"A transition to sustainability cannot be achieved if our economic system is not radically changed, simply because limitless economic growth is impossible within a limited planet. (…) humanity needs to recognize that the fundamental changes have to happen at the level of the ultimate cause of environmental crisis—that is, a global economic system dependent on growth."
"The Role of Scientists’ Warning in Shifting Policy from Growth to Conservation Economy", Ripple et al. 2018
Mas também alguns economistas:
https://www.dw.com/en/our-addiction-to-growth-is-harming-the-climate/a-41429203
https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/nov/24/metrics-gdp-economic-performance-social-progress
Estes dois vídeos curtos sintetizam bem as razões da insustentabilidade do modelo económico baseado no crescimento:
"Our addiction to economic growth is killing us" (Jason Hickel): https://youtu.be/HckWP75yk9g
"Who killed economic growth?" (Richard Heinberg): https://youtu.be/EQqDS9wGsxQ
A estratégia da sra. von der Leyen não vai portanto correr bem!...


terça-feira, 26 de novembro de 2019

A armadilha do consumismo

(texto baseado em post publicado no G+ em Nov 2018)
Tal como no ano passado por esta mesma altura, o espaço mediático e publicitário nacional foi invadido pelas campanhas que apregoam descontos para estimular o consumo pré-natalício (ajudando os retalhistas a escoar os seus stocks e com o apoio dos bancos que acenam com créditos especiais ao consumo), com designações ‘made in USA’ – como a Black Friday ou a Cyber Monday (ver p.ex. aqui ou aqui). A ‘Black Friday’ (BF) é uma invenção relativamente recente (anos 1970) do comércio retalhista norte-americano para promover as vendas que antecedem o Natal (após o feriado do ‘Thanksgiving’), mas foi-se tornando mais popular e poderosa com o apoio de campanhas de marketing agressivas que a internacionalizaram a partir dos anos 2000 (ver p.ex. aqui ou aqui). Este mesmo fenómeno é tema de um post de um blogger brasileiro (Luciano Fernandes) onde divulga um excelente vídeo muito recente do projecto ‘Our Changing Climate’ que faz uma análise crítica da BF e dos seus impactos ambientais e sociais nefastos - ‘The problem with BF’: https://youtu.be/p3Z8TodvNuM (9 min; é possível activar tradução simultânea em PT). O vídeo critica a mentalidade mercantil e consumista que é aproveitada pelos gigantes do retalho para escoar excedentes ou produtos supérfluos, mas que contribui para a mudança climática e a degradação ambiental, ao mesmo tempo que promove a exploração dos trabalhadores do comércio retalhista e das plataformas de venda ‘online’. Mostra também claramente que a BF é uma estratégia para aumentar os lucros das grandes empresas, como a Amazon, e para alimentar uma economia dependente do crescimento e consumo permanentes. Para além da denúncia, apresenta também propostas de abstinência individual e de acção colectiva através da colaboração com movimentos sociais que pugnam pela justiça social e climática.
O apelo e dependência do consumo também já chegaram ao continente asiático com um outro fenómeno consumista recente (o ‘Singles’ Day’ chinês), que tem lugar a 11 de Novembro e atingiu este ano novo recorde de vendas ‘online’, tendo as receitas ultrapassado em 2018 os valores totais arrecadados pela BF e a ‘Cyber Monday’ nos EUA (ver p.ex. aqui). Por cá, os volumes de vendas não atingem aqueles valores, mas os publicitários nacionais têm vindo a apregoar nos últimos anos a ‘Black Week’, uma invenção mais recente para estender o ímpeto consumista por um período mais alargado (ver p.ex. aqui ou aqui). Até a EDP introduziu este ano a ‘Green Friday’ para vender electrodomésticos que, segundo a campanha, ‘promovem a eficiência energética’, revertendo uma fracção da receita (1%) para a ‘Liga para a Protecção da Natureza’ (ver p.ex. aqui)!
Dan Perjovschi

A denúncia do apelo ao consumismo compulsivo e da sua gratificação ilusória é anterior à BF, mas foi intensificada por este e outros fenómenos mais recentes, como enfatiza um artigo no ‘The Guardian’ que invoca o pensamento neo-marxista da ‘Escola de Frankfurt’ para desconstruir as mentiras apregoadas pelo marketing. Segundo o psicólogo Tim Kasser citado neste artigo: “Valores materialistas exacerbados estão associados a uma diminuição generalizada do bem-estar das pessoas, desde baixos níveis de satisfação e de felicidade, à depressão e à ansiedade, a problemas físicos e a transtornos de personalidade, como o narcisismo ou o comportamento antissocial.”

Em resposta à fúria consumista que se tem verificado em vários países, a organização activista canadiana 
Adbusters criou o ‘Buy Nothing Day’ (‘Dia Mundial sem Compras’) e renova este ano o boicote à BF: http://abillionpeople.org/buy-nothing-day-2019/ *. Os media têm dado alguma visibilidade a estas iniciativas anti-consumistas (ver p.ex. aqui e aqui). Nos artigos da Wikipedia sobre o BND (aqui ou aqui) é também possível encontrar sugestões sobre acções alternativas ou de contestação. Nunca é demais relembrar que temos sempre pelo menos uma palavra a dizer sobre a propaganda agressiva que nos quer impingir um consumo insustentável e um bem-estar ilusório: NÃO, obrigado!



* Excertos: “The dopamine rush of not having, but wanting, and then acquiring stuff is today more powerful, and more commonly and deeply embedded than ever before. (…) The free-market dreams of onetime capitalist visionaries have been far surpassed: now for the first time, every second is a viable opportunity to sell or be sold something.”

sábado, 23 de novembro de 2019

Precisamos de sair da 'ecologia do desastre'

Quem lança o alerta é o activista e líder indígena Ailton Krenak numa entrevista recente ao jornal brasileiro 'O Globo' (pdf disponível aqui). Nessa entrevista Krenak questiona a noção dominante de progresso, que nos conduziu ao Antropoceno e que pretende normalizar a catástrofe ecológica, criticando uma certa ideia de humanidade ocidentocêntrica que marginaliza os povos originários que não se converteram àquela noção de progresso. Sublinha que a diferença entre as duas humanidades reside na forma como vêem e como se relacionam com a natureza - enquanto os humanos 'civilizados' vivem separados da natureza, destruindo-a com a ilusão de que a dominam, os povos indígenas vêem a natureza como uma extensão da humanidade e à qual estão intimamente ligados. Para Krenak é preciso entender a floresta como um mundo repleto de humanidades, e não um 'arranjo de árvores' ou uma fonte de recursos económicos. Ele defende a substituição da 'ecologia do desastre' por uma ética da existência baseada na reciprocidade com a natureza e numa pluralidade de saberes e de formas de vida.
Excertos“É preciso questionar a ideia de progresso que embasa o senso comum da suposta Humanidade. Essa ideia de Humanidade coloca os povos que vivem da terra numa borda, como se o planeta tivesse secções. Enquanto uns habitam, outros perambulam, zumbizando na marginalidade. Mesmo quando se tenta abrir o clube, levando a esses povos saneamento ou saúde, isso é feito como um donativo, não uma experiência de compartilhamento. É uma humanidade idealizada, porque se você apertar, não tem os valores que prega. (…) As gerações passadas encomendaram esse mundo que agora temos que roer. A provocação é justamente perguntar: Que mundo nós estamos encomendando para quem virá depois? (…) A aparente normalidade que vivemos inclui um cotidiano de catástrofe que vai sendo naturalizado. (…) É uma narrativa que diz que, quando há um acidente, cria-se uma oportunidade. E aí a sociedade vai criando acidentes e oportunidades. É a ecologia do desastre. (…) Na ecologia do desastre, você se adapta a um sistema estragado como se fosse natural. (…)  A compreensão da floresta como algo vivo implica num respeito que estabelece uma ética da existência, a reciprocidade com a natureza.  Esse modo de vida proporciona uma prosperidade que não é econômica.”

Trata-se de uma voz indispensável para entender a actual crise civilizacional, que se junta às de outros líderes de povos menorizados e desvalorizados por séculos de colonialismo e arrogância de uma parte privilegiada da humanidade. Em Setembro, um outro líder indígena, Davi Kopenawa (citado por Krenak) recebeu o prémio internacional 'Right Livelihood Award' pelas suas acções em defesa das florestas e dos direitos dos Yanomami (ver aqui). O prémio surge num momento particularmente melindroso da história do Brasil, com os incêndios na Amazónia e as posições de afronta aos direitos indígenas do presidente Bolsonaro. Ailton Krenak esteve em Portugal em 2017 para participar num colóquio no Teatro Maria Matos sobre 'Questões indígenas'. Nessa ocasião deu uma palestra magnífica intitulada 'Do sonho e da terra'. Este ano regressou para um seminário no ICS, onde foi orador. Os textos dessas palestras e de uma entrevista que deu em 2017 foram reunidos numa edição da Companhia das Letras com o título 'Ideias para adiar o fim do mundo'. É possível aceder a um pdf dessa edição aqui. É uma leitura indispensável com uma visão clara e certeira sobre a crise existencial e o desnorte que se vive no 'ocidente'.
Excertos: "(…) Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.
(…) Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo…
(…) a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes — a sub-humanidade.
(…) A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo."

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Denunciantes e guardiões da natureza: repudiar a ‘banalidade do mal’


Das Gute, dieser Satz steht fest, ist stets das Böse was man lässtWilhelm Busch [tradução do EN: O bem, estou convencido, não é mais do que o mal que decidimos não fazer]

Numa época em que a confiança no próximo já viu melhores dias, há exemplos de conduta de seres humanos que mostram que a capacidade de escolher fazer o bem, ou de não fazer o mal, continua bem presente. Seleccionei alguns casos, noticiados recentemente, de denunciantes e de guardiões da natureza que colocaram em jogo a sua segurança pessoal ou a própria vida. Mas haveria certamente muitos mais que nem sequer chegam aos media.

A semana passada foi noticiado mais um esquema da Google (projecto Nightingale) para aceder abusivamente a dados pessoais, desta feita o historial clínico de milhões de pacientes da Ascension (segundo maior subsistema de saúde norte-americano), sem o consentimento dos utentes ou dos médicos:
Claro que alegam que está tudo dentro da legalidade: a Ascension garante que os dados clínicos só poderão ser usados para fornecer serviços ao grupo de saúde através de ferramentas de IA a serem desenvolvidas pela Google. No entanto, segundo a informação que foi revelada, os nomes dos utentes e médicos não foram apagados no processo de transferência dos dados, realizado por cerca de 300 funcionários (metade da Ascension e a outra metade da Google). Parece que houve quem questionasse a ética daquele procedimento, mas apenas uma pessoa resolveu revelar os pormenores – um delator anónimo que acabou mesmo por escrever um artigo de opinião no jornal britânico ‘The Guardian’: https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/nov/14/im-the-google-whistleblower-the-medical-data-of-millions-of-americans-is-at-risk
Um outro delator bem mais mediático – Edward Snowden - esteve recentemente presente por vídeo-conferência na WebSummit (https://youtu.be/gIWSDe4HoM4), tendo salientado que a recolha abusiva de dados pessoais por parte de grandes corporações internacionais ou por governos constituem formas de manipulação e de abuso de poder que põem em causa a liberdade e a democracia:
Citação: “we have legalized the abuse of the person through the personal [by companies such as Amazon, Facebook or Google] (...) “their business model is abuse and yet every bit of it they argue is legal
Houve mesmo quem comparasse Snowden com um denunciante (e também ‘hacker’) português – Rui Pinto (ver aqui ou aqui) - que foi detido e está a ser julgado por ter acedido ilegalmente a informações que sugerem práticas ilícitas em contratos e negócios ‘sujos’ do mundo do futebol internacional, incluindo Portugal (caso conhecido por ‘Football Leaks’):

Bem mais dramáticos foram os desfechos das lutas travadas por verdadeiros guardiões da natureza em diferentes pontos do mundo por terem feito frente a madeireiros, caçadores furtivos ou pescadores gananciosos. Entre as notícias mais recentes, contam-se os casos do assassinato de guardas florestais na Roménia:
do assassínio de um defensor da floresta e das terras indígenas no Brasil:
e do desaparecimento de um vigilante que controlava a pesca ilegal por arrastões chineses na costa do Gana:

Aproveito para divulgar uma bela e sentida homenagem a alguns desses seres humanos excepcionais sob a forma de um vídeo curto que é simultaneamente um apelo à nossa reconexão com a natureza:
https://youtu.be/nGeXdv-uPaw (autoria: Vivek Chauhan para ‘Sanctuary Asia’)

Finalmente, partilho uma interessante reflexão do autor/pensador britânico Umair Haque sobre a natureza do mal no ser humano e na época actual:
Citações: "(...) evil is a human reality, which we cannot evade with clever games of language or semantics or rationalizations. When we say that we have explained evil, at least a little better, in the last century, by disproving old myths, that does not mean evil does not exist — but that it does, and will, and for that reason, we must remember how far we have come, and how far we have yet to go. (...) For as long as good people believed the myth that they alone were born that way, history laughed at their hubris, twisted it upon itself, and made them evil. And for that reason, I think, being good in an age turning evil means understanding why claiming one’s own goodness has never been enough, nor is merely pretending or rationalizing or ignoring the question of evil away."

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Sociedade sem limites: logro e irresponsabilidade

O mantra 'não há limites' ('no limits') é o lema do actual modelo social e económico hegemónico que quer fazer crer aos mais crédulos ou mal informados (ou iludidos) que a economia pode crescer para sempre e que o génio criativo humano vai conseguir resolver todos os problemas que o sistema económico e tecno-industrial tem criado - tudo é possível, o céu é o limite! Essa é também a promessa da chamada '4ª revolução industrial' - ou seja, a revolução digital - que ao desmaterializar a economia e a produção promete uma sustentabilidade duradoura - ver p.ex. este livro recente. Só que esta é apenas mais uma falácia - ver p.ex. aqui ou aqui. Os limites do crescimento económico são conhecidos há vários anos e foram objecto de um famoso relatório do início dos anos 1970, 'The Limits to Growth', que foi muito duramente criticado pela ortodoxia económica mas cuja validade tem sido comprovada - ver p.ex. aqui ou aqui - excepto pelos ideólogos da economia neoliberal e pelos devotos do tecnofuturismo e do trans-humanismo. O preço a pagar por tamanha irresponsabilidade é agora evidente - ver p.ex. post anterior. Vários limites biofísicos planetários estão a ser ultrapassados, e as consequências já estão à vista e vão ser sofridas ainda mais intensamente pelas gerações vindouras.
A narrativa da velocidade e da inexistência de limites tem sido também usada para manipular a forma como lidamos com o tempo e com o trabalho, o que tem provocado várias disfunções psicológicas e sociais - escrevi sobre este tema aqui. Todos estes temas têm aliás sido abordados e desmitificados pelos decrescentistas (ver os meus posts sobre decrescimento).
Temos agora também o marketing a usar (e abusar) da mesma narrativa, aplicando aquele mantra para promover relógios (aqui), automóveis (aqui) ou empresas de 'coaching' desportivo (aqui). Recentemente, uma das grandes operadoras nacionais lançou a campanha 'geração sem limites' para vender novos tarifários da rede 5G mas acabou por ser obrigada a descontinuá-la por queixa de 'publicidade enganosa' à entidade reguladora pela operadora concorrente:
https://www.dn.pt/dinheiro/regulador-ordena-a-nos-retirada-da-campanha-5g-publicidade-enganosa-diz-11501441.html
https://www.meiosepublicidade.pt/2019/11/nos-forcada-retirar-campanha-5g-considerada-enganosa/
A queixa foi aceite, não por a operadora estar a enganar os clientes quanto à alegada inexistência de limites, mas apenas porque os leilões para atribuição das licenças da nova rede 5G não foram ainda realizados e a operadora não poderia pois ainda realizar novos contratos. E a narrativa vai sendo repetida ad nauseam até ser assimilada e aceite como mais uma inevitabilidade!...

domingo, 10 de novembro de 2019

Trinta anos após a queda de um muro icónico na Europa há cada vez mais muros invisíveis

Aproveitando a efeméride do 30º aniversário da queda do Muro de Berlim a 9 Nov, foi publicado esta semana (5 Nov) pelo 'think tank' progressista 'Transnational Institute' um relatório da autoria de Mark Akkerman, intitulado 'The Business of Building Walls':
https://www.tni.org/en/businessbuildingwalls
Esta publicação foi divulgada pelo site noticioso Euronews (entre outros):
https://www.euronews.com/2019/11/05/europe-has-built-barriers-six-times-the-length-of-the-berlin-wall-since-1989
https://pt.euronews.com/2019/11/08/estado-da-uniao-o-muro-de-berlim-e-os-muros-em-construcao
Aquele documento defende que a Europa tem, desde então, voltado a erguer muros, desta vez motivados não por divisões ideológicas, mas sim por alegados medos em relação às vagas de migrantes e refugiados provenientes do Norte de África e do Médio Oriente. O relatório descreve não só os diversos muros físicos erguidos ao longo dos últimos anos (p.ex., na Turquia, na Hungria ou na Bulgária), mas também todos os novos sistemas de defesa das suas fronteiras, que vão desde radares e drones a sofisticados sistemas de vigilância, e que implicaram investimentos públicos de cerca de 17,5 mil milhões de euros em 2018. Os principais beneficiários destes negócios milionários foram grandes empresas europeias de sistemas de defesa militares e armamento, como a Leonardo, a Thales ou a Airbus. Estas mesmas empresas são igualmente as principais exportadoras de armamento para países africanos e do Médio Oriente, contribuindo assim perversamente para os conflitos que estiveram na origem da migração das populações que pretendem entrar na Europa. 
Na recente celebração do aniversário da queda do Muro de Berlim, o Presidente alemão alertou para os ‘muros invisíveis’ em referência ao resentimento e divisões internas no seu país, mas não se referiu aos daquele relatório:
Esta notícia termina com um destaque à ‘celebração da liberdade’ – devem talvez estar a referir-se à conquista da liberdade de consumir e de fazer negócio ou de transformar em mercadoria tudo o que mexe à face da Terra, incluindo os medos dos europeus, para gáudio dos ricos e poderosos…
Um dos muros físicos que é referido no relatório foi tema de uma reportagem recente do jornal britânico ‘The Guardian’ - trata-se da cerca que separa o enclave espanhol de Melilla (em Marrocos) do norte de África: 
https://www.theguardian.com/cities/video/2019/nov/06/make-spain-great-again-does-melilla-really-need-a-trump-style-wall-video 
Neste vídeo, ouve-se o líder local do partido Vox (um dos vencedores das eleições de 10 Nov em Espanha) e grande defensor da cerca, proferir a frase roubada a Trump: ‘Make Spain Great Again’!...

terça-feira, 5 de novembro de 2019

O urbanismo da ostentação e da insustentabilidade

Fórum Municipal de Oeiras
Enquanto as duas trienais a decorrer em Lisboa e em Oslo celebram a arquitectura da economia de meios e do decrescimento, a Câmara de Oeiras (recentemente rebaptizada como 'Oeiras Valley'!) promove a arquitectura e o urbanismo do betão, da ostentação e do crescimento insustentável. Começando pela própria autarquia, que tenciona desembolsar milhões na construção de um Fórum Municipal faraónico para albergar os serviços administrativos e de atendimento aos munícipes, mas que já suscita questões de sustentabilidade:
Este e outros projectos são apadrinhados pelo actual presidente da câmara, reeleito nas últimas autárquicas após um interregno forçado em consequência da acusação e posterior condenação por fraude fiscal e branqueamento de capitais. A maioria dos eleitores do município, caracterizado pela maior taxa nacional de licenciados, parece considerar o edil como 'autarca modelo' e este não se faz rogado e vai-lhes oferecendo grandes projectos imobiliários, muitos deles previstos para a zona de Carnaxide e alguns ameaçando eliminar de vez o famoso 'corredor verde' que deveria ligar Monsanto a Sintra e incluir a Serra de Carnaxide:
Trata-se da consumação de uma ideia de urbanismo que artificializa, 'ajardina' ou cobre de edificado todas as áreas disponíveis, promovendo a gentrificação do território, pondo em causa património arquitectónico (Aqueduto de Carnaxide e Aqueduto das Francesas) e impossibilitando o usufruto de zonas de vegetação natural, importantes como corredores ecológicos e terrenos não impermeabilizados (ver p.ex.aqui). Houve uma proposta de classificação da Serra de Carnaxide como 'paisagem protegida'. mas que foi chumbada na A.R.

Entre os projectos previstos, aprovados ou já em construção incluem-se:
Aquaterra Masterplan ('resort' comercial em Carnaxide, contestado por organizações ambientais):
- Sky City (Serra de Carnaxide, concelho da Amadora):
- Dream Living (Serra da Mama, Carnaxide):