segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

A grande demissão: a revolução involuntária da deserção

© Juliette de Montvallon / Reporterre
Nota prévia: este é um post longo que requererá tempo para ser desfrutado em pleno; a sua extensão resulta do processo de investigação e de digestão que lhe dediquei; trata-se assim de um convite à demora, em linha com a rejeição da voragem consumista, apanágio da sociedade industrial produtivista que é rejeitada pelos movimentos de deserção que aqui tentei descrever.

A deserção é o sinal dos nossos tempos, o derradeiro gesto de resistência numa época onde reina a devastação e onde a violência policial se abate sobre os movimentos sociais. A deserção é uma ética individual, uma nova forma de objecção de consciência.Gaspard d’Allens

A recusa de singrar [‘refus de parvenir’] faz provavelmente hoje parte da longa linha de acção directa e de não-cooperação com o sistema.Corinne Morel Darleux

Não suporto os falsos deuses do Ocidente, sempre à espreita como aranhas, que comem os nossos fígados, sugam a nossa medula. E faço um protesto contra o mundo moderno, é ele o Monstro. Destrói a nossa terra, espezinha as almas dos homens.Bernard Moitessier (navegador solitário, autor do livro ‘La Longue Route’)

On arrête tout, on réfléchit et ce n’est pas triste” Slogan do filme ‘L’An 01’ (1970)

Unemployment for all, not just the rich” Slogan da comunidade r/Antiwork do Reddit

Este post foi inspirado por uma investigação de fundo do jornalista francês Gaspard d’Allens para a publicação online sobre temas ambientais Reporterre, intitulada “La grande démission” e da qual irei transcrever vários trechos (que traduzi para português) – é possível ler cada uma das três partes do artigo original em francês, publicado em Julho de 2022, aqui, aqui e aqui. O tema da deserção como insubmissão, objecção de consciência ou recusa de status (e do statu quo), tinha sido aflorado no meu primeiro post do ano onde citei os textos de d’Allens. Noutros dois posts (aqui e aqui) destaquei a relevância das acções de resistência e de não-colaboração, nas quais incluo também a deserção. Já este ano, o mesmo tema foi retomado pelo investigador independente espanhol Amador Fernández-Savater (autor do site filosofiapirata.net) num artigo para a publicação semanal CTXT (aqui), onde estabelece paralelos entre a ‘Grande Recusa’ dos anos 60 e a ‘Grande Demissão’ contemporânea que apelida de ‘revolução involuntária’, e ainda pelo filósofo italiano Franco ‘Bifo’ Berardi (citado por Savater), na sua passagem recente por Lisboa onde fez algumas intervenções públicas, nomeadamente no Teatro do Bairro Alto, tendo ligado a deserção com outro fenómeno das sociedades ‘desenvolvidas’: a depressão/exaustão (ver aqui).

O texto de d’Allens ancora-se no apelo à deserção lançado em Maio de 2022 por um grupo de jovens agrónomos recém-licenciados pela escola de engenharia AgroParisTech (autodenominados ‘Des agros qui bifurquent’) durante a cerimónia de entrega de diplomas (ao qual me referi num post anterior). O vídeo da leitura do seu manifesto (com milhões de visualizações), onde apelam à recusa de “perpetuar o sistema” não aceitando “empregos destrutivos”, revelou, segundo d’Allens, um movimento fundamental que desafia diretamente os modelos de sucesso social e representa uma rotura na ordem estabelecida. Sintomaticamente, uma campanha de difamação foi lançada pelos círculos empresariais e pelos principais meios de comunicação em França, que reagiram com uma onda de críticas e insultos para culpar a “cobardia” e as incoerências dos jovens, alegando que desertar seria sinónimo de rendição, abandono ou passividade, uma “admissão de fracasso”, “uma forma de desistência” (d’Allens dá vários exemplos dessas críticas na 2ª parte do seu artigo). Já em 2018, estudantes da ‘École polytechnique’ tinham divulgado um manifesto que apelava a um “despertar ecológico” (vídeo e site do projecto) mas que não teve igual projeção mediática. Em 2021, Arthur Gosset, ex-estudante de engenharia, realizou o documentário ‘Ruptures’ onde relata os processos de rotura de seis colegas seus que recusaram seguir carreira, escolhendo um caminho que consideram mais compatível com os actuais desafios ambientais e societais (ver também esta entrevista a Gosset). D’Allens defende que as iniciativas dos jovens universitários não são eventos isolados e se integram numa tendência mais generalizada que tem surgido em diversos países e que envolve pessoas que abandonam as suas carreiras em diferentes fases do seu percurso profissional. O autor dá como exemplos os fenómenos que foram designados por ‘great resignation’ (trabalhadores de diversos sectores profissionais que recusaram retomar os seus empregos após a “normalização” pós-pandemia) e por ‘quiet quitting’ (trabalhadores que recusam jornadas de trabalho longas, intensas e mal remuneradas, enquadradas por contratos de curtíssima duração, e que não deixam espaço para mais nada, abandonando eventualmente os seus empregos precários) nos países anglófonos (EUA e RU), mas que se estenderam já a outros países, incluindo a França ou Portugal (ver p.ex. aqui e aqui). D’Allens escreve: “Por todo o lado, jovens e menos jovens questionam o trabalho, a sua finalidade e o seu significado. Alguns, inclusive, recusam-no, para inventar, noutro lugar, uma vida que eles e elas consideram mais rica. Poucos meses depois dos confinamentos, que paralisaram diversos sectores da actividade económica, parte da população ainda hesita em voltar à labuta, terminar os estudos ou regressar às fábricas ou negócios. Nos Estados Unidos, os sociólogos batizaram este fenómeno como ‘Great Resignation’ ou ‘Big Quit’: “a grande demissão”. Em 2021, mais de 38 milhões de americanos deixaram os seus empregos. 40% ainda não retomaram o trabalho. Um tsunami que atinge todas as idades, todas as profissões. E que inverte o equilíbrio de poder entre empregados e empresas. (…) Também em França o êxodo começou. Centenas de milhares de cargos não são preenchidos, por falta de candidatos, na hotelaria ou na restauração, enquanto nas ‘grandes écoles’, entre as classes médias altas, a renúncia está em gestação. Além dos discursos estrondosos na imprensa, uma revolta mais silenciosa está a propagar-se. Em todas as áreas e categorias profissionais, e mesmo onde menos se espera, em empresas de combustíveis fósseis ou na alta administração pública. A dúvida espalha-se. A crise ecológica veio contrariar os sonhos de outrora movidos a petróleo. Quanto vale uma progressão diante da ameaça climática? Porquê lutar por uma posição quando todo o sistema vacila? Qual é o sentido de se instruir quando tudo se desmorona?

D’Allens considera que o fenómeno está a provocar alguma consternação entre os defensores do sistema socioeconómico hegemónico (neoliberal) e a pôr em causa as suas fundações (como o demonstram aliás as reacções referidas acima), em particular a centralidade do trabalho, mostrando através de diversas citações que não está sozinho nas suas conjecturas. Transcrevo mais alguns excertos do seu texto: Para além dos dados estatísticos sobre as demissões em França [ver p.ex. aqui], houve uma bolha mediática que rebentou. «O eco que os apelos à deserção podem ter tido diz muito sobre as questões que agitam a sociedade», sublinha a socióloga Geneviève Pruvost. «Hoje, a deserção chega a atingir profissões essenciais ao funcionamento do modelo capitalista. Isso compromete a sustentabilidade do sistema», acrescenta. «Se uma centena de engenheiros ou pesquisadores da região de Toulouse decidisse parar de fazer algoritmos e robôs, faria desmoronar tudo», confirma Olivier Lefebvre. Este homem de 40 anos deixou o seu emprego. Ele trabalhava numa ‘start-up’ de carros autónomos antes de se demitir. (…) «O nosso discurso sobre a renúncia ao trabalho é muito mais audível hoje», nota Romain Boucher. Este ex-cientista de dados formado pela Escola de Minas deixou o emprego em 2018. No seu escritório próximo aos Champs-Élysées, os protestos dos Coletes Amarelos foram a ‘onda sísmica’ que o levou a romper com aquele mundo. Desde então, ele criou a associação ‘Vous n’êtes pas seuls’ para encorajar os seus ex-colegas a demitirem-se. «Ao subverter a pequena burguesia empresarial e educada, pretendemos deter a correia de transmissão que ela representa. Queremos corroer essa classe social que sustém o sistema», afirma. (…) A deserção abala os fundamentos ideológicos da economia, destrói a adesão a esses fundamentos e faz estalar o seu verniz tingido de verde. A escritora Corinne Morel Darleux vê nela «uma forma de sabotagem simbólica». «A recusa de singrar [‘refus de parvenir’; ver adiante] provavelmente faz hoje parte da longa linha de ação direta e de não-cooperação com o sistema», escreve no seu ensaio ‘Prefiro afundar em beleza do que flutuar sem graciosidade’ [Plutôt couler en beauté que flotter sans grâce]. «A deserção é uma arma formidável que liberta o futuro.»” Também em Portugal o fenómeno está a ter algum impacto e o mundo empresarial já está a sentir necessidade de desenhar estratégias para “reter e fidelizar o talento” – ver p.ex. aqui.

© Juliette de Montvallon / Reporterre

Na 2ª parte do seu texto, d’Allens responde às críticas que atribuem ao fenómeno da deserção uma conotação negativa, quer como acto de desistência ou resignação (na língua inglesa a palavra ‘resignation’ tem uma dupla acepção: como demissão ou como resignação), quer como prerrogativa de uma pequena elite de privilegiados ou burgueses. O autor defende que se trata, pelo contrário, do germinar de uma contra-sociedade. E recorre mais uma vez a múltiplas vozes: “A aceitação social em que se baseia o sistema económico está a desmoronar-se. Apesar das promessas de renovação, com a utopia cibernética ou a fantasia de Silicon Valley, o capitalismo vive atualmente “uma fase de desencanto radical”. «As pessoas já não encontram sentido, nem se revêem nele. Ainda não é uma revolta completa, mas é uma desfiliação profunda», diz a jornalista e autora Celia Izoard [autora de ‘Merci de changer de métier: lettres aux humains qui robotisent le monde’]. A deserção é um assunto antigo, ao qual o sistema em vigor foi obrigado a responder. (…) é o sinal dos nossos tempos, o derradeiro gesto de resistência numa época onde reina a devastação e onde a violência policial se abate sobre os movimentos sociais. A deserção é uma ética individual, uma nova forma de objeção de consciência. «Hoje em dia trata-se de parar de prejudicar. Isso passa por deixar de cooperar com o sistema», afirma Corinne Morel Darleux no seu ensaio [supracitado]. «Devemos recuperar a nossa capacidade de fazer escolhas autónomas, de reinvestir a nossa soberania como indivíduos. É o primeiro passo de uma emancipação coletiva em relação às normas que nos são impostas pela sociedade». Os desertores evadem-se como recrutas fugindo do exército. «A deserção não é tanto uma derrota, mas uma forma de nos livrarmos do elemento gregário em nós», escreve o escritor Dénetem Touam Bona, em ‘La Sagesse des lianes’. Diante da miséria do mundo, não buscamos construir oásis ou nichos abrigados da fúria, mas sim reposicionar-nos para melhor lutar contra a megamáquina e escapar das suas garras. «Fugir, mas ao fugir, procurar uma arma», escreveu o filósofo Gilles Deleuze. Esta deserção nada tem a ver com passividade. Para o colectivo ‘désert’heureuses [felizes desertoras] – um grupo de engenheiras dissidentes – não se trata de abandonar o campo de batalha, mas sim de mudar de lado. A fuga já não se impõe como simples deserção, mas como uma nova estratégia de luta. «A deserção é um treino mental para ficar o mais longe possível do sistema, longe o suficiente para poder observá-lo de diferentes ângulos e, assim, poder atacá-lo melhor», escrevem num panfleto. Johanna, membro daquele coletivo, afirma: «Hoje, é a guerra contra o mundo vivo que nos recusamos a travar. A produção industrial na qual somos chamadas a participar como engenheiras é indissociavelmente civil e militar. É um mundo estruturado pela guerra e pelo comércio, que destrói ecossistemas e desestabiliza o clima.»

D’Allens defende ainda que a contestação e recusa do statu quo nem sempre é possível quando se está dentro do sistema e que a deserção pode ser uma estratégia mais adequada para o combater a partir do exterior: “Nos testemunhos recolhidos para o Reporterre, muitos ex-assalariados recusam agora ‘a política do entrismo’: «Desde a infância, dizem-nos que temos de mudar as coisas por dentro, que temos de assumir a direção e o poder de transformar o mundo, de sermos um bom aluno, responsável e paciente», diz o engenheiro demissionário Olivier Lefebvre. «Mas, na realidade, mentimos a nós próprios. Estamos a desperdiçar tempo e a desgastarmo-nos. Somos confrontados com bloqueios estruturais e, afinal de contas, perdemo-nos. Contamos histórias para justificar o nosso modo de vida confortável.» Uma acção também pode ser eficaz no exterior. É nas margens que se desenvolvem as promessas do futuro. Várias alternativas mostram isso mesmo, como a ZAD de Notre-Dame-des-Landes.” D’Allens invoca ainda um dos pioneiros da ecologia, Bernard Charbonneau, que afirmava já na década de 1930 que “só lutamos contra uma sociedade a partir do exterior”. “Enquanto houver governos bem organizados, os ministros da polícia farão bem em desconfiar dos jovens que partem sozinhos para perambular pelas estradas esburacadas. O seu amor genuíno pela natureza é um sentimento revolucionário”, escreveu ele em ‘Nous sommes des révolutionnaires malgré nous’. O próprio Bernard Charbonneau decidira estabelecer-se como um simples professor na região dos Pirenéus, em vez de seguir uma carreira académica.

© Juliette de Montvallon / Reporterre
Na 3ªparte do artigo, d’Allens reforça a sua tese sobre a relevância do movimento contemporâneo de deserção, traçando uma linha de continuidade com lutas históricas, que vão desde as revoltas e lutas de libertação dos escravos e dos povos indígenas do séc. XVIII, às reivindicações dos movimentos libertários (anarquistas) do final do séc. XIX e início do séc. XX, assim como às dos movimentos estudantis de emancipação dos anos 60. Nas palavras de d’Allens: “A fuga das garras do sistema sempre fez parte do repertório de acção das classes populares. Hoje, essas histórias são tanto uma fonte de inspiração quanto um farol para o movimento de deserção: elas ancoram a ecologia política numa filiação revolucionária e reacendem a chama da revolta social. «A deserção» não é apenas um discurso de executivos refratários, engenheiros demissionários ou jovens estudantes em busca de sentido, anteriormente bem inseridos na sociedade. Antes que a ideia da «recusa de singrar» [‘refus de parvenir’] fosse retomada pelos ecologistas para marcar a crescente contestação dessas elites, a deserção era uma atitude da classe trabalhadora ao recusar-se a pactuar com o inimigo - o patrão, o burguês, o capataz.

A expressão ‘refus de parvenir’ foi cunhada há mais de um século pelo intelectual libertário Albert Thierry no seu ‘Ensaio sobre a moral revolucionária’ (1916), onde a descreve como uma exigência ética: “Consiste em recusar-se a viver e a agir para si e para fins próprios”. D’Allens acrescenta: “Isso não era, no entanto, uma aceitação da miséria, mas sim uma rejeição das honras e privilégios individuais. Era também uma forma de lucidez, enquanto as elites burguesas, sob a Terceira República, buscavam captar os elementos mais brilhantes da população trabalhadora para pô-los ao seu serviço.” A recusa de singrar, que terá ecos na ‘Grande Recusa’ dos anos 60 e ressurge agora nas palavras e actos dos desertores contemporâneos, assim como em diversas publicações académicas (ver aqui ou aqui), rejeita a ascensão ou promoção social pela busca de interesse pessoal numa perspectiva de carreira, poder ou prestígio, em favor de ideais de emancipação colectiva e solidariedade, já que a emancipação individual só se pode atingir numa sociedade emancipada.


D’Allens invoca também o trabalho dos filósofos Malcom Ferdinand e Dénetem Touam Bona que permitiram redescobrir outras genealogias do movimento de deserção: “actores do passado, esquecidos, que, através da sua resistência, nas profundezas da floresta, souberam lutar tanto contra o servilismo como por uma outra concepção de mundo que se opõe, ponto por ponto, aos valores do sistema capitalista (propriedade privada, busca do lucro, etc.). Durante séculos, no Caribe e na América, muitos escravos fugiram das plantações, essas vastas monoculturas desenvolvidas pelos colonos sobre antigas florestas. (…) eles reconstruíram sociedades inteiras, com as suas canções, os seus ritos, a sua cultura, a sua autonomia. «O ‘marronnage’ foi uma prática de resistência ecológica», afirma Malcolm Ferdinand no seu livro ‘Une écologie décolonial’ [tradução PT-BR aqui]. Algumas comunidades ultrapassavam dezenas de milhares de indivíduos com várias aldeias e cidadelas, praticavam caça, coleta e formas de agroecologia. Essas micro-sociedades por vezes até forçavam os colonos a negociar tratados de paz… (…) Os ‘negros quilombolas’ (‘nègres marrons’) cultivavam a ‘arte da fuga’. Para usar a bela expressão de Dénétem Touam Bona, «eles assumiam a sombra estriada da folhagem», eles eram unos com o seu território, habitavam-no plenamente. Uma comunidade de destino foi fundada entre os quilombolas, a terra e a natureza. Quanto mais densa a floresta, mais eles poderiam se esconder e criar a sua sociedade amotinada. (…) Ainda hoje subsistem vestígios dessas resistências. (…) Por exemplo, os Saramaka, uma sociedade quilombola criada no século XVIII entre o Suriname e a Guiana, continuam a lutar contra a desflorestação. Dois dos seus representantes ganharam mesmo o prémio ambiental Goldman em 2009. «Assim como a figura dos quilombolas, eles têm sido reconhecidos internacionalmente como notáveis ambientalistas», afirma Malcom Ferdinand.

Quanto aos movimentos de contestação da década de 1960, d’Allens escreve: “Dezenas de milhares de jovens fugiram na época e deixaram os cargos para os quais estavam destinados. Criticavam a sociedade de consumo e a alienação comercial. Alguns ativistas decidiram até instalar-se nas fábricas para provocar a ira social. Outros estabeleceram-se em áreas rurais para criar comunidades. No ambiente universitário, o grupo ‘Survivre et vivre’ e o matemático Alexandre Grothendieck também levaram jovens investigadores à deserção.” Destaca a cooperativa Longo Mai (fundada nos anos 1970 em França mas que se replicou noutros países europeus e na Costa Rica, perdurando até ao presente – ver p.ex. aqui) como exemplo de comunidade autónoma: “O objetivo era fundar uma nova sociedade, permanecendo ofensiva e revolucionária. Mas os seus membros não queriam, ao contrário da RAF [Facção do Exército Vermelho/Grupo Baader-Meinhof] ou das Brigadas Vermelhas em Itália, engajar-se na luta armada contra o Estado. Era uma posição estratégica para não ser esmagada e manter-se ao longo do tempo. (…) Essas experiências alimentam as deserções de hoje. Muitos desertores redescobrem-nas por meio de leituras e encontros e entendem que são os herdeiros de uma longa epopeia subversiva. «É um exercício de humildade ver o que nossos antecessores fizeram. Os riscos que correram e o seu sacrifício.», diz o engenheiro demissionário Olivier Lefebvre.

Também Savater invoca no seu texto este último movimento, destacando a sua teorização por Herbert Marcuse que, em ‘O Homem unidimensional’ (1964), apelidou de ‘Grande Recusa’ (‘great refusal’) a indispensável rejeição das sociedades industriais modernas que submetem os indivíduos ao sistema de produção e consumo através da repressão social e do positivismo progressista, e fazendo a ponte com a ‘Grande Demissão’ contemporânea. Escreve Savater: “A Grande Recusa é uma energia de contradição, um espírito que diz não à sociedade existente, em nome de uma libertação que não é abstrata, mas possível, autorizada e permitida pelo progresso da abundância material. A negação da repressão e da exploração, da pobreza e da miséria, do entretenimento padronizado e da beleza comercializada, é acompanhada pela afirmação da criatividade e do prazer, do jogo e da emancipação dos sentidos, da cooperação e da riqueza das faculdades do corpo humano. É um gesto político profundamente estético…” O autor defende que a ‘velha esquerda’ foi “incapaz de ler politicamente os fenómenos da sensibilidade, considerada como algo ‘burguês’”, entendendo a mudança como “uma questão meramente quantitativa: uma melhor distribuição da mesma produtividade, uma melhor distribuição dos mesmos bens.” Savater relembra que, para Marcuse, a sensibilidade não é um assunto privado, mas sim político, e afirma: “A transformação deve atingir as camadas profundas do ser humano, mesmo nas suas dimensões biológicas e orgânicas.” Savater defende que somente a libertação de Eros, entendida como “capacidade humana de estabelecer vínculos sensíveis com tudo: o mundo, os outros e consigo mesmo”, pode conter a “instrumentalização capitalista dos impulsos destrutivos – competitividade e agressividade, dominação e conquista – que ameaçavam ontem, como hoje, tomar o mundo de assalto.


Sobre a Grande Demissão contemporânea, Savater escreve: “Nesta sociedade que neutraliza qualquer acontecimento pela força da super-interpretação, a Grande Demissão mantém o seu mistério e, portanto, a sua provocação ao pensamento.” Invoca as reflexões de Bifo Berardi sobre o fenómeno: “Tudo começa para ele com o abandono maciço de empregos nos EUA (também na China e na Europa) após a normalização da pandemia. Por outras palavras, o tempo da pandemia, um tempo aparentemente suspenso onde nada acontecia, era na verdade o momento de uma repriorização geral de necessidades e desejos, ao final da qual muitos decidiram parar de sacrificar as suas vidas pelo trabalho (e não apenas por ‘trabalhos de merda’).” Savater caracteriza a Grande Demissão como fenómeno geral de deserção da política, da economia e dos média, que representam o actual tripé do statu quo: “deserção da visão política do mundo: o real entendido como poder e cálculo do poder, manipulação do público, intrigas palacianas, lógica de facções sem preocupação com o bem comum, militância militarizada - abandono por enfado [‘salida por hastío’]; deserção da visão económica do mundo: o real entendido como mercado, trabalho precário e ultraexplorado, pressão para realizar, cada um tornando-se empresário de si próprio, gerindo o seu capital simbólico de projetos, visibilidade e contactos - abandono por exaustão; deserção da visão mediática do mundo: o real como objeto de propaganda, captação de atenção em espetáculos pré-fabricados, distante da vida comum, evanescente; personagens-marca, polémicas-armadilha, notícias tendenciosas sobre questões sobre as quais não temos poder de decisão - afastamento por saturação.” Para Savater “a Grande Demissão surge, ao contrário da Grande Recusa, como um fenómeno sem utopia, pós-utópico. Não preconiza um outro mundo possível. Nem algum fora.” E prossegue: “Bifo interpreta isto como uma remoção do desejo: um apagão libidinal, uma quebra da vontade, uma certa apatia, mas também uma fuga dos lugares onde a energia desejante tem vindo a ser capturada: competitividade, consumo, sucesso, auto-realização. Antes, contra a repressão, libertação. Agora, contra a pressão, deserção. O cansaço surge como sintoma e limite da expansão, tendência sempre privilegiada pelo Ocidente, nas suas guerras, conquistas, aceleração progressiva e desejo de sempre-mais.” Mais uma vez, Savater destaca a perplexidade da esquerda convencional que interpreta a deserção como uma questão meramente quantitativa que se pode resolver com mais medidas progressistas (como aumentar salários), não podendo nem querendo vê-la como uma diferença qualitativa, ou seja, como algo impossível de entender e resolver dentro do pensamento estabelecido. Mas Savater realça ainda que: “Os movimentos sociais, além da política partidária convencional, também estão perplexos. A Grande Demissão não expressa um novo activismo, mas sim um des-activismo: um relaxamento e uma desaceleração da vida, que busca a sua reconciliação com outros tempos e outros ritmos, outros espaços e lugares, outras necessidades e desejos.” Para o vaticínio recorre a Berardi: “o que está a morrer lentamente é a própria política moderna; e também, é claro, as suas manifestações esquerdistas, um mero fantasma do que eram.” Mas clarifica que o fim da política moderna não implica o fim da ideia de transformação social, mas sim “o necessário abandono da sua principal faculdade: a vontade. A vontade que força os acontecimentos e os submete aos ditames da razão.” E conclui: “O que pode substituir a vontade como principal faculdade política? Tanto Marcuse quanto Bifo apontam no mesmo sentido: a sensibilidade. Uma qualidade essencialmente receptiva, que não busca dominar, forçar e conquistar o mundo, mas antes acolher, ouvir e ser afetado por ele. Não uma receptividade passiva, mas sim activa e criativa. (…) Marcuse disse que o desafio da Grande Recusa era deixar de ser uma força política para ser uma força revolucionária. O desafio da Grande Demissão pode ser passar da deserção individual a uma força política sem horizonte revolucionário. Não sem um desejo de transformação social, mas sem a ideia clássica de revolução: tomada do poder e controlo racional da realidade. Ainda assim, uma revolução involuntária.


Não podia ainda deixar de me referir ao decrescimento no âmbito do tema de deserção, já que a rejeição do produtivismo e da centralidade do trabalho, apanágio das sociedades industriais neoliberais, sempre fizeram parte das reivindicações críticas dos decrescentistas, que defendem, por sua vez, a desaceleração, a suficiência e a redução dos consumos insustentáveis e das horas de trabalho, como vias para reconstruir comunidades prósperas. Recorro a um artigo de Tom Smith para o site ‘degrowth.info’ (aqui) onde o autor caracteriza a ‘Grande Demissão’ como fenómeno global de descontentamento profundo e de sublevação social contra o trabalho tal-como-o-conhecíamos. O autor cita os exemplos da comunidade ‘r/Antiwork’ da plataforma online Reddit, que tem como slogan ‘Desemprego para todos, não apenas para os ricos’ e onde são publicados testemunhos sobre casos de exploração laboral e de deserção, bem como o do movimento ‘tang ping’ (literalmente, ficar deitado), que surgiu na China como reacção à pressão social para trabalhar longas horas (padrão ‘996’: das 9 da manhã às 9 da noite, 6 dias por semana). Este movimento preconiza um estilo de vida que inclui não casar, não ter filhos, não comprar uma casa ou um carro, e a recusa de trabalhar horas extraordinárias ou de ter sequer um emprego, e está a suscitar natural consternação nas autoridades chinesas que o acusam de derrotismo (ver p.ex. aqui ou aqui). Smith analisa no seu texto dois livros recentes cujas ideias-chave considera alinhadas com a crítica decrescentista: ‘Four Thousand Weeks – Time and How to Use It’ de Oliver Burkeman (2022) e ‘Breaking Things at Work, The Luddites Are Right About Why You Hate Your Job’ de Gavin Mueller (2021). O primeiro advoga uma nova relação com o tempo e a adopção de ritmos de vida e de trabalho mais consentâneos com o bem-estar individual e colectivo, enquanto o segundo desenvolve uma crítica marxista das sociedades capitalistas industriais e da tecnologia, reiterando a crítica do Ludismo e preconizando uma política de desaceleração da mudança capaz de minar o progresso tecnológico e limitar a avidez do capital, desenvolvendo ao mesmo um certo nível de organização e cultivando a militância.


Finalmente, retomo o nexo entre a exaustão e a deserção invocado por Savater para lembrar que Berardi tem também defendido que o produtivismo, o positivismo, a competição e a aceleração, promovidos pelo modelo socioeconómico dominante, estão a ter, para além dos reconhecidos impactos ambientais e sociais nefastos, efeitos psicológicos profundos em diversos países assolados por casos crescentes de depressão e de esgotamento (‘burnout’) – ver p.ex. a conferência recente no TBA (aqui) e também aqui ou aqui. Para lá dos casos do foro clínico, Berardi considera que os sintomas depressivos e de colapso psíquico resultam não só da pressão laboral e social, mas também de uma insatisfação profunda com o sistema – político, laboral, económico – incapaz de cumprir as suas promessas de bem-estar e de felicidade, além de um sentimento de desesperança em relação ao futuro. Tal como tem vindo a exaurir os recursos materiais do planeta, o capitalismo produtivista está a exaurir os recursos nervosos do corpo humano. Para Berardi, a deserção, embora sendo um fenómeno heterogéneo e não-organizado, é a manifestação de uma sensibilidade que está (ainda) viva e que explora as potencialidades da rejeição e da resistência ao sistema, recusando aceitar o que é impingido como necessário ou inevitável e lançando um convite a uma mudança colectiva de modos de vida.

Tenciono voltar aos temas do cansaço, da sensibilidade e dos ritmos e estilos de vida num próximo post, recorrendo às vozes/palavras de autores como Byung-Chul Han, Isabelle Stengers ou Bertrand Russell.


Finalizo com uma nota autobiográfica. Há 9 anos atrás interrompi definitivamente a minha actividade profissional como docente universitário (ver a minha carta de demissão). Na altura não interpretei a minha decisão como um acto de deserção mas, retrospectivamente, verifico que reúne muitas das características do fenómeno global que tentei descrever neste post.

Deixo para encerrar duas citações do texto de Gaspard d’Allens:

À medida que o mundo vacila, oferecem-se-nos escolhas decisivas. Elas ressoam como pequenas vozes interiores. É hora de vivermos a nossa própria vida, parar de nos renegarmos, sair da dissonância. «É preciso encontrar forças para dizer não», escreveu Albert Camus em ‘L’homme révolté’.

«O sistema liga-nos e prende-nos. Devemos quebrar os cadeados que nos aprisionam para não limitar a deserção a uma elite que teria os meios», defende o filósofo jardineiro Aurélien Berlan. Devemos reflectir coletivamente sobre os meios de subsistência, rearticular o nosso status entre projectos pontuais, uma profissão mais ética ou o minimalismo social. «Há toda uma imaginação e uma educação a ser desconstruída», avança o ex-engenheiro Olivier Lefebvre. «Devemos romper com o medo do rebaixamento social, desconstruir o mito da carreira. Também é preciso mostrar a existência de um outro mundo, a possibilidade de um fora.»

P.S. Posso adiantar que uma tradução portuguesa do artigo completo de Gaspard d’Allens será publicada no próximo número da revista Flauta de Luz.