Nota: a 1ª parte deste post encontra-se aqui.
Um primeiro aspecto que alguns destes autores questionam é o
próprio uso da palavra ‘inteligência’
no contexto destas ferramentas computacionais. O cientista informático e músico
norte-americano Jaron Lanier alerta
(em ‘There is no AI’) para os equívocos em volta do termo ‘IA’, que considera enganoso:
“A posição mais pragmática é pensar na IA
como uma ferramenta, não como uma ‘criatura’. Esta minha atitude não elimina a
existência de perigos: independentemente da nossa abordagem, podemos de facto
conceber e operar mal a nossa nova tecnologia, de formas que nos podem
prejudicar ou mesmo levar à nossa extinção. Mitologizar a tecnologia apenas
aumenta a probabilidade de não conseguirmos operá-la bem – e este tipo de
pensamento limita a nossa imaginação, ligando-a aos sonhos do passado. Podemos
trabalhar melhor partindo do pressuposto de que IA é algo que não existe.
Quanto mais cedo compreendermos isto, mais cedo começaremos a gerir a nossa
nova tecnologia de forma inteligente.” Lanier prefere ver a IA como uma
forma de colaboração social entre seres humanos e máquinas: “Encarar a IA como uma forma de trabalhar em
conjunto, e não como uma tecnologia para criar seres independentes e inteligentes,
pode torná-la menos misteriosa (…) Mas
isso é bom, porque o mistério só aumenta a probabilidade de má gestão.” Já o
médico e cientista brasileiro Miguel Nicolelis afirma
(numa entrevista) que: “A inteligência é algo restrito aos
organismos porque ela é uma propriedade emergente da interação de seres vivos
com o seu ambiente. A inteligência resulta no processo de seleção natural, é a
forma pela qual os organismos conseguem sobreviver às vicissitudes de um ambiente
em contínua modificação (…) O termo
inteligência é inapropriado [para] os sistemas computacionais porque eles não
preenchem a definição clássica de inteligência (…) E ela não é artificial porque ela é criada por seres humanos, ela não
vem do nada, não cai do céu. A inteligência que existe nessa área é a
inteligência dos programadores e das pessoas que geram esses sistemas”. Nicolelis
vaticina ainda que: “O ChatGPT vai ter
uma morte tão rápida quanto ele teve de subida. Todos esses sistemas são
movidos a hype e a marketing”. Por
seu lado, o artista e escritor britânico James
Bridle, que também defende que a inteligência é uma característica dos
sistemas vivos e o termo não devia ser usado no contexto da IA, escreve (em ‘The stupidity of AI’) acerca do ChatGPT: “É
muito bom a produzir o que parece fazer sentido e, melhor ainda, a produzir
clichés e banalidades, que compõem a maior parte da sua dieta, mas permanece
incapaz de se relacionar de forma significativa com o mundo real. (…) A crença neste tipo de IA como realmente inteligente
ou relevante é efectivamente perigosa. Corre o risco de contaminar a nossa
fonte de pensamento colectivo e a nossa capacidade de pensar. (…) Colocar toda a nossa confiança nos sonhos de
máquinas mal programadas seria abandonar a nossa capacidade como indivíduos de
pesquisar e avaliar criticamente o conhecimento por nós próprios. (…) É difícil pensar em algo mais estúpido do
que a inteligência artificial, tal como é praticada na era atual: (…) poderosa tecnologia de classificação e
comunicação de informações que nos explora, nos usa indevidamente, nos engana e
nos suplanta.” Sobre a diferença entre os actuais desenvolvimentos da IA e
os sistemas computacionais rudimentares, Bridle escreve: “As primeiras IAs não sabiam muito sobre o mundo e os departamentos
académicos não tinham o poder computacional para explorá-las em grande escala.
A diferença hoje não é inteligência, mas sim dados e o poder. As grandes
empresas tecnológicas passaram 20 anos a recolher grandes quantidades de dados
da cultura e da vida quotidiana e a construir centros de processamento vastos e
ávidos de energia, cheios de computadores cada vez mais potentes para os
processar.” Bridle alerta ainda para as diferenças entre os sistemas de IA
e a inteligência humana: “Não podemos
perscrutar os seus processos de tomada de decisão porque a forma como estas
redes neuronais ‘pensam’ é inerentemente desumana. É o produto de uma ordenação
matemática incrivelmente complexa do mundo, em oposição à forma histórica e
emocional como os humanos ordenam o seu pensamento.”
Lanier em conjunto com Glen Weyl, assim como o académico Leif Weatherby, destacam outro aspecto relevante: a IA não é uma mera ferramenta tecnológica neutra, mas é de facto uma poderosa ferramenta ideológica e cultural. Lanier e Weyl escrevem (em ‘AI is an Ideology, Not a Technology’): “A IA é melhor entendida como uma ideologia política e social e não como um conjunto de algoritmos. O cerne da ideologia é que um conjunto de tecnologias, concebido por uma pequena elite técnica, pode e deve tornar-se autónomo e eventualmente substituir, em vez de complementar, não apenas os seres humanos individuais, mas grande parte da humanidade. Dado que qualquer substituição deste tipo é uma miragem, esta ideologia tem fortes ressonâncias com outras ideologias históricas, como a tecnocracia e as formas de socialismo baseadas no planeamento central, que consideravam desejável ou inevitável a substituição da maior parte do julgamento/agência humana por sistemas criados por uma pequena elite técnica.” Por seu lado, Weatherby (em ‘O ChatGPT é uma máquina de ideologia’) alerta para a natureza do processamento de informação (modelos estatísticos de agregação de dados) pelos ‘chatbots’ que os torna veículos de ideologia: “os sistemas GPT, porque automatizam uma função muito próxima do nossa noção do que significa ser humano, podem produzir mudanças na própria forma como pensamos sobre as coisas. O controlo sobre a forma como pensamos sobre as coisas chama-se ‘ideologia’, e os sistemas de GPT envolvem-na direta e quantitativamente de uma forma sem precedentes.”
Um outro aspecto que é enfatizado, quer por Naomi Klein, quer por James Bridle, mas também no documentário da VPRO citado acima, é o carácter extractivista dos sistemas de IA, num contexto económico que privilegia o poder e a riqueza hiperconcentrados e que tem como objectivo a maximização do lucro e não o bem comum. Klein escreve: “Existe um mundo em que a IA generativa, como uma poderosa ferramenta de pesquisa preditiva e executora de tarefas entediantes, poderia, de facto, ser organizada para beneficiar a humanidade, as outras espécies e a nossa casa comum. Mas, para isso acontecer, essas tecnologias teriam de ser implantadas dentro de uma ordem económica e social muito diferente da nossa, que tivesse como propósito atender às necessidades humanas e proteger os sistemas planetários que sustentam toda a vida.” Sobre as promessas fantasiosas em relação às façanhas futuras da IA (que apelida de alucinações utópicas), Klein afirma: “são as histórias de capa poderosas e atraentes para o que pode vir a ser o maior e mais importante roubo da história da humanidade. Porque o que estamos a testemunhar são as empresas mais ricas da história (Microsoft, Apple, Google, Meta, Amazon …) a apoderar-se unilateralmente da soma total do conhecimento humano que existe em formato digital, na internet, e a capturá-la dentro de produtos privados, muitas vezes visando diretamente os humanos cuja vida inteira de trabalho serviu para treinar as máquinas sem que para tal fosse dada qualquer permissão ou consentimento.” E conclui: “aquilo que aconteceu com o exterior das nossas casas [por via do Google Street View] está a acontecer com as nossas palavras, as nossas imagens, as nossas músicas, toda a nossa vida digital. Todos estão a ser capturados e usados para treinar as máquinas para simular o pensamento e a criatividade.” Por seu lado, James Bridle escreve: “Todo o tipo de IA disponível publicamente, quer funcione com imagens ou palavras, (…) baseia-se nesta apropriação generalizada da cultura existente, cujo âmbito mal podemos compreender. (…) longe de serem criações mágicas e inovadoras de máquinas brilhantes, os resultados deste tipo de IA dependem inteiramente do trabalho não creditado e não remunerado de gerações de artistas humanos. A geração de imagens e textos por IA é pura acumulação primitiva: expropriação de mão-de-obra de muitos para o enriquecimento e avanço de algumas empresas tecnológicas de Silicon Valley e dos seus proprietários bilionários.” O documentário 'The cost of AI' (VPRO) destaca a dependência energética dos servidores de processamento de dados e mostra ainda a exploração dos trabalhadores de países do Sul global que são contratados para fazer a triagem de dados pelas empresas que desenvolvem sistemas de IA.
Num outro artigo de opinião ('To counter AI risk we must develop an integrated intelligence'), o autor britânico Jeremy Lent adopta uma postura semelhante à de Heinberg, considerando que existem diversos riscos associados ao desenvolvimento da IA, munida essencialmente de uma inteligência analítica, mas que o antídoto mais potente corresponde à capacidade integrativa da inteligência humana que permite estabelecer relações de empatia com as outras formas de vida e o ambiente: “O aumento explosivo do poder da IA representa um risco existencial para a humanidade. Para contrariar esse risco, e potencialmente redireccionar a trajectória da nossa civilização, precisamos de uma compreensão mais integrada da natureza da inteligência humana e dos requisitos fundamentais para o florescimento humano.” Lent defende que os sistemas de IA se baseiam essencialmente numa forma de inteligência analítica e racional que é boa a executar tarefas repetitivas e cálculos elaborados, mas que tende a transmitir uma imagem utilitarista e limitada do mundo. Pelo contrário, a inteligência humana integra duas formas complementares de consciência, uma mais racional (‘conceptual’) e outra mais sensível e intuitiva (‘animate’). Lent escreve: “a inteligência maquinal é na verdade puramente analítica. Não tem nenhuma estrutura que o ligue à vibrante senciência da vida. Independentemente do seu nível de sofisticação e potência, nada mais é do que um dispositivo de reconhecimento de padrões. Os teóricos da IA tendem a pensar na inteligência como independente do substrato – o que significa que o conjunto de padrões e ligações que a compõem poderia, em princípio, ser separado da sua base material e replicado exatamente noutro lugar, como quando se migram os dados de um computador antigo para um novo. Isso é verdade para a IA, mas não para a inteligência humana.”
Sem querer resumir todos os diferentes pontos de vista que partilhei até agora, poderia dizer que a IA é uma extensão de um paradigma social e cultural que acredita, quase cegamente, nas potencialidades da mente racional humana e na sua capacidade de criação de novas tecnologias benignas – uma versão depurada do excepcionalismo humano ou do antropocentrismo arrogante. Parece-me tratar-se mais de uma manifestação de entrega a uma certa estupidez natural (ou 'esperteza saloia') do que de verdadeira inteligência (artificial ou não). Desprovida principalmente da sabedoria a que se refere Heinberg ou da responsabilidade humana a que se referem Lanier e Weyl. Recupero as palavras de James Bridle que abrem este post: “Podemos imaginar tecnologias poderosas de processamento e comunicação de informação que não nos explorem, não nos utilizem indevidamente, não nos enganem e não nos suplantem? Sim, podemos – assim que sairmos das redes de poder corporativo que definiram a atual onda de IA.”. E concluo com as palavras que rematam o artigo de Jeremy Lent: “Diz-se por vezes que o que é necessário para unir a humanidade é uma flagrante ameaça comum, tal como uma hipotética espécie alienígena hostil que chega à Terra ameaçando-nos de extinção. Talvez esse momento esteja agora prestes a chegar – com uma inteligência alienígena emergindo das nossas próprias maquinações. Se houver esperança real para um futuro positivo, ela emergirá da nossa compreensão de que, como seres humanos, somos seres conceptuais e animados, e estamos profundamente conectados com toda a vida neste precioso planeta – e que coletivamente temos a capacidade de desenvolver uma civilização verdadeiramente integradora, que estabeleça as condições para que toda a vida floresça numa Terra regenerada.”