quinta-feira, 30 de junho de 2022

A vida como simpoiese

Líquenes e musgos
(Parque Florestal de Monsanto)
‘We’ are not ‘one’ / We are not alone, Natasha Myers

No one acts alone / Nothing is connected to everything; everything is connected to something (Nenhum vivente age sozinho / Nada está conectado a tudo; tudo está conectado a algo), Donna Haraway

(…) “life” is an idea. We find it useful to think of some things as alive and others as inanimate, but this division exists only in our heads. Ferris Jabr

Our view of life as a continuum of variably structured collaborative systems leaves open the possibility that a variety of forms of organized matter – from chemical systems to ecosystems – might be usefully understood as living entities. John Dupré & Maureen O’Malley

The non-dual nature of simultaneously surrendering and leaping makes my head spin and my heart race in the most delicious way. The tension and beauty of this radically entangled freedom is that I don’t act and make meaning (and die) alone – I make-with in community, in sympoiesis. Cheryl Hsu

Simpoiese é uma palavra e um conceito proposto pela filósofa Donna Haraway no seu livro “Staying with the trouble” (2016), que significa fazer/criar-com ou em-conjunto, para enfatizar a interdependência radical que caracteriza a vida e todos os viventes (é possível aceder ao texto completo do capítulo sobre simpoiese nesta ligação). Para Haraway, é também um ensejo para frisar que as interligações e interacções que se estabelecem entre os seres vivos são extensíveis ao meio geofísico onde vivem e têm um claro paralelo com as relações presentes nas sociedades humanas. Segundo a autora: “[sympoiesis] is a word proper to complex, dynamic, responsive, situated, historical systems. It is a word for worlding-with, in company”. Aquele conceito tem ainda um carácter político na medida em que a relação que criamos com o mundo e as narrativas que usamos para descrevê-lo são parte fundamental da direção em que queremos levá-lo: It matters what thoughts think thoughts. It matters what knowledges know knowledges. It matters what worlds world worlds. It matters what stories tell stories.

Na génese destas minhas considerações esteve a pergunta “o que é (a) vida?”, lançada como base de reflexão sobre o mundo-mais-do-que-humano durante as conversas transpensar, que decorreram desde Outubro de 2021 até ao início de Junho deste ano no c.e.m-centro em movimento. Aquela pergunta pode ter tantas respostas quantas as visões de mundo que quisermos invocar. Desde a narrativa biomecanicista patente no vídeo ‘What is life?’, à reflexão panpsiquista do filósofo Tam Hunt, passando pelo conceito de negentropia do físico Erwin Schrödinger ou pelos sistemas colaborativos propostos pelos filósofos da ciência John Dupré e Maureen O’Malley, vários foram os nossos acessos àquela questão. Como microbiólogo que continuo a ser, a pergunta pode ser usada para percorrer a prodigiosa diversidade de formas de vida que existem no planeta, muitas das quais permanecem desconhecidas para nós, enquanto outras tantas só foram reveladas ou estudadas em detalhe nos últimos decénios. Aquela imensa diversidade apela a ampliar o nosso olhar sobre o mundo vivo e a abandonar as visões hierárquicas (patentes p.ex. nas noções de formas de vida ‘inferiores’ e ‘superiores’ ou de evolução como progresso) ou míopes (p.ex. a relevância que é dada aos animais em detrimento das plantas e dos micróbios), hoje ainda muito presentes nas chamadas ciências da vida e na sociedade em geral.

A noção de individualidade e de separação dos membros de uma comunidade natural (ou de uma sociedade) é claramente uma invenção e ilusão humanas, pois sabemos não só que todos os indivíduos interagem e dependem entre si, mas também que cada indivíduo (animal ou planta) é uma comunidade de células próprias e de muitos outros micróbios que com ele convivem – ou seja, todos os seres vivos são na verdade holobiontes (ver p.ex. aqui). Mesmo no caso dos micróbios unicelulares (em que cada indivíduo é constituído por uma única célula), como muitas bactérias e protozoários, os indivíduos não são solitários e interagem com outros indivíduos da mesma espécie, com outras espécies e com o entorno em que estão inseridos. Isto tem como consequência que cada organismo, em maior ou menor medida, conduz a transformações do meio onde se insere – neste sentido, todo o vivente é criador de cultura e de mundo (ver p.ex. Mente e matéria ou a vida das plantas de Emanuele Coccia). Além disso, aquelas interacções levaram a que o próprio processo evolutivo (que é muitas vezes reduzido à sua componente genética por via das modificações por mutação ou por trocas genéticas) seja na verdade sempre uma co-evolução. Um exemplo deste processo ubíquo é o de certas orquídeas silvestres cujas flores mimetizam a forma das fêmeas dos insectos que as polinizam (ver p.ex. aqui). Haraway, no seu livro “Staying with the trouble”, dá precisamente como exemplo de simpoiese a orquídea Ophris apifera (erva-abelha) cuja abelha polinizadora se extinguiu (pelo menos numa parte da sua área geográfica natural), constituindo a sua flor a única imagem que temos do que seria a forma daquele insecto – exemplo que ilustra com o ‘cartoon’ criado por Randall Munroe, reproduzido abaixo (mas ver também aqui).


Sem dúvida que sabemos, ou intuímos, muita coisa sobre as formas diversas em que a vida se manifesta, como ‘funcionam’, como interagem, como evoluiram e até como terão surgido. Mas essas abordagens empíricas e racionais são necessariamente incompletas e tendem a construir uma imagem da vida como mecanismo que nos afasta da verdadeira natureza (orgânica) dos organismos. E a vida não tem apenas uma faceta material ou funcional (e muito menos mecânica). Aliás as diferentes sociedades humanas sempre lhe atribuíram um carácter espiritual ou sagrado, através das suas narrativas ou cosmologias. No entanto, a modernidade ocidental foi substituindo os mitos pagãos e as narrativas religiosas sobre a vida pelo conhecimento trazido pelas ciências e pela tecnologia, e adicionou-lhe outras dimensões, como a das leis e dos direitos, numa tentativa de a gerir e administrar. Fomos assim impelidos para uma visão utilitarista dos viventes como recursos naturais (mercantilizáveis) e arrogámo-nos o direito de explorar e dominar outras formas de vida (e destruir ecossistemas inteiros) em nome de uma prosperidade dita ‘económica’. Apesar de todos os avanços alcançados no conhecimento sobre a vida e na gestão das sociedades humanas, entrámos no século XXI com uma plena consciência de que muito desse conhecimento e engenho se tinha afinal tornado uma ameaça para a própria vida - a dos humanos e a dos não humanos. E apercebemo-nos de que as formas sofisticadas de gestão das sociedades humanas nos tinham afastado do cuidado pela vida e amputado a empatia pelos outros viventes, porque criaram a ilusão de que aquele conhecimento científico e tecnológico nos permitiria autonomizar-nos da nossa base de sustentação: os ecossistemas vivos e biodiversos. A economia humana transformou-se na antítese da ecologia natural.

A possibilidade das nossas sociedades, ditas ‘desenvolvidas’, se voltarem a relacionar de forma equilibrada com o mundo-mais-do-que-humano, depende agora duma mudança de paradigma que nos afaste da noção de excepcionalismo humano e que nos permita transformar o nosso próprio papel de meros gestores e dominadores da vida para o de cuidadores e guardiões, guiados por práticas de reciprocidade e de empatia. Como aliás sempre o fizeram e continuam a fazer vários povos indígenas, cujas cosmovisões e estruturas sociais, que integram a natureza (ou seja, o mundo-além-do-humano) na sua vida quotidiana, as nossas sociedades têm desvalorizado ou ignorado como primitivas (ver p.ex. aqui). Pior do que isso, esses povos foram sujeitos a processos brutais de aculturação, expropriação e genocídio em nome da prosperidade económica de uma parte privilegiada da humanidade. A colonização dos humanos por outros humanos reproduz as atitudes de domesticação, dominação e mercadorização das outras formas de vida que ameaçam agora a nossa própria sobrevivência - ver p.ex. o meu 'post' anterior.

O culminar do excepcionalismo humano cultivado por uma parte da humanidade é a auto-designada era do Antropoceno, em que o próprio ser humano se torna força geológica, atribuindo-se também a si próprio o papel de salvador da catástrofe por si causada (ver p.ex. aqui ou aqui). Vários autores têm criticado ou recusado aquela designação, não só pelo evidente antropocentrismo que lhe está associado, mas também por insinuar que o ‘antropos’ é uma entidade universal e homogénea, escamoteando assim a natureza socioeconómica e cultural dos processos que estão na base dos problemas e os diferentes graus de responsabilidade de diferentes povos, comunidades e instituições naqueles processos (ver p.ex. aqui ou aqui). É no fundo a própria visão dominante de mundo e de vida que está em causa, na medida em que se baseia numa separação dos seres humanos do restante mundo vivo e não-vivo. As vozes críticas e as visões alternativas de divers@s filósof@s, ecologistas polític@s, antropólog@s, ecofeministas, activistas, etc. defendem que apenas uma religação radical com o mundo-mais-do-que-humano, envolvendo uma escuta activa e uma atenção reparadora, nos pode afastar do rumo ecocida e suicida em que nos encontramos. Uma dessas vozes é precisamente a de Donna Haraway que propôs a designação de Chthuluceno para uma nova época de sustentabilidade regenerativa caracterizada pela simpoiese (ver p.ex. aqui). Haraway propõe assumir as relações colaborativas e empenhadas entre seres terranos (incorporados na própria terra) como narrativa e como modo de vida, numa tentativa de recriar e resgatar o(s) comum(ns) e de, simultaneamente, (re)ligar artes, ciências, tecnologias e pensamento. A autora afirma: “Maybe, but only maybe, and only with intense commitment and collaborative work and play with other terrans, flourishing for rich multispecies assemblages that include people will be possible. I am calling all this the Chthulucene—past, present, and to come.

Praia das Avencas
Encarar a vida como simpoiese é assumir que ‘não se é corpo sozinho’, que ‘eu sou porque nós somos’, que nunca fomos indivíduos (isso é uma narrativa do racionalismo cartesiano e do paradigma socioeconómico dominante) e que somos todos holobiontes. Não estamos-somos sozinhos, mas também não somos 'um' (dada a enorme diversidade de modos de vida e de culturas), como afirma Natasha Meyers no seu manifesto citado na abertura deste 'post'. Trata-se no fundo de recolocar o enfoque no entre-corpos e nas relações: nas deformações, nas simbioses, nos parasitismos (que são também formas de simbiose), nas reciprocidades. Podemos assim talvez contar novas histórias que desfaçam as narrativas do excepcionalismo humano e da dominação, regenerando mundos cheios de vida em (parafraseando Darwin) “intermináveis formas, tão belas e admiráveis, que a partir de um começo tão simples, evoluíram e continuam a evoluir.” Mais do que tentar definir (a) vida, o que importa afinal é saber como podemos com-viver, na companhia dos viventes-além-dos-humanos, e imaginar que mundo-em-comum é esse que queremos co-criar, simpoieticamente.

Concluo com as palavras do escritor e biólogo Mia Couto e do filósofo político camaronês Achille Mbembé, em entrevistas ao jornal Público (aqui e aqui):

"Na minha concepção não existe uma árvore em si mesma, existe uma árvore em relação às pessoas, e o mesmo para os bichos. Portanto, como a ecologia nos sugere, temos de encontrar a verdade das coisas não por via de essências, mas por via de relações. E é isso que a literatura também nos diz, as pessoas são o que são porque são parte de uma rede." Mia Couto

"Partilhamos a Terra com outras entidades, que são todas vivas, não há entidades mortas porque mesmo as entidades mortas referem-se de algum modo a uma capacidade de agir, embora um agir de maneira diferente das entidades vivas. Tudo é capaz de agir, capaz de ser mobilizado em modalidades de acção diferentes. E, portanto, por princípio, a capacidade de agir é partilhada com os antepassados, com a Natureza, com a atmosfera, com as forças naturais, as tempestades, etc. Assim, se se quiser viver bem e por muito tempo é necessário aprender a coexistir com tudo, orgânico, o natural, o humano, não-humano." Achille Mbembé

Nota final: este texto é uma versão ampliada de um ‘post’ que escrevi para o blog do festival Pedras22 (promovido pelo c.e.m-centro em movimento): https://pedras22.wordpress.com/2022/06/23/transpensares-a-vida-como-simpoiese/

Ligações para textos de outros autores que abordam o conceito de simpoiese:

Fazendo nós: fazer-com no Antropoceno, Vitor Chiodi (2017): http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/fazendo-nos-fazer-com-no-antropoceno/

Sympoiesis, Gavin Lamb (2020): https://medium.com/thewildones/sympoiesis-an-environmental-keyword-for-new-nature-writers-f1aba5cb9592

The sympoiesis of life life-ing, Cheryl Hsu (2021): https://cherylhsu.ca/post/2021-01-20-life-lifeing/