“(…) o ser humano está provocando o 1º
extermínio ecocida em massa. Acontece que o Ecocídio é também um suicídio, pois
o ser humano não consegue viver sem a natureza e sem a riqueza dos ecossistemas…”
José Eustáquio D. Alves
“We are
in the midst of the First Extermination Event, the process by which Capital has
pushed the Earth to the brink of the Necrocene, the age of the new necrotic
death.” Justin McBrien
“We’re hard at work: every day, someone is slitting, skinning, eviscerating, clubbing, beating, kicking, dragging, hoisting, shackling, or whipping some creature. And we’ve come up with so many ways to dispatch them… (…) if we just stay the course, then in, say, two hundred years’ time, we might just accomplish our dream. Either that, or it won’t matter anyway, because our own species won’t be around to appreciate our handiwork.” Martin Rowe
A imagem que encabeça este post ilustra uma curta de animação de Steve Cutts (‘Man’, 2012) onde este desenhador e
videasta britânico retrata de forma propositadamente satírica e brutal a
relação do ser humano moderno com os restantes seres vivos. Embora pareça
exagerado e algo simplista, o vídeo transmite o carácter especialmente doentio
que essa relação tem assumido nos últimos decénios, como nos dizem aliás diversos
diagnósticos recentes (ver p.ex. aqui
ou aqui). Embora se use a expressão ‘6ª extinção em massa’ para
caracterizar a dimensão da crise de declínio da biodiversidade causado pelas
actividades humanas, a expressão correcta deveria ser ‘1º extermínio em massa’ (ver p.ex. aqui ou aqui;
artigos dos quais extraí as duas primeiras citações que encabeçam este post). Isto porque há já algumas décadas que sabemos não só as
causas daquele declínio (as actividades destrutivas das sociedades humanas industrializadas:
desflorestação, sobrepesca, expansão urbana e agrícola, etc.), como sabemos que
apenas uma parte da humanidade é de facto responsável por aquele extermínio (as
elites do poder político e económico, bem como as populações privilegiadas do
Norte global) – escrevi anteriormente aqui sobre este tópico e também num artigo para a revista Flauta de Luz (“O asteróide somos nós”: nº6, 2019, pp, 26-37).
Uma outra forma de
perceber a dimensão do impacto da acção humana e de justificar o epíteto ‘rei
da criação’ resulta de um estudo recente (2018) que estimou a biomassa (peso de cada ser vivo) de todos os organismos
existentes no planeta (animais, plantas e micróbios) – ver aqui
ou aqui.
Essa avaliação concluíu que, apesar de representarem apenas 0,01% da biomassa
global (a sua principal componente é a biomassa vegetal, que representa 80% do
total) e 2,3% da biomassa animal, os seres humanos representam, em conjunto com
os animais criados para alimentação humana (vacas, porcos, ovelhas), 96% da
biomassa de todos os mamíferos. Ou seja, os mamíferos selvagens representam
apenas 4% do peso de todos os mamíferos existentes (incluindo os humanos, 36%,
e os animais domésticos, 60%). Também no caso das aves, as galinhas de criação
e outras aves de capoeira representam cerca de 70% da biomassa total da
avifauna. Aquele mesmo estudo mostra, no entanto, que o papel de ‘criador’ não
é aquele que devia ser destacado mas sim o de exterminador (implacável!), já que as actividades humanas são já responsáveis
por uma redução da biomassa dos mamíferos marinhos e terrestres (selvagens) por
um factor de seis vezes e pela redução para metade da biomassa vegetal
terrestre (ver aqui
e aqui).
Mesmo as inúmeras variedades de plantas e animais criadas localmente por todo o
globo e durante muitas gerações para a produção alimentar estão ameaçadas de
extinção pela agricultura e pecuária industriais que privilegiaram nas últimas
décadas apenas umas poucas de cultivares e raças para a produção global e
intensiva.
Mas nem mesmo os animais domesticados e criados pelos seres humanos estão a salvo da chacina infligida pelo ‘grande exterminador’. Devido a alegadas razões sanitárias, milhões de cabeças de gado ou de aves de capoeira têm sido abatidas nas últimas décadas, mesmo antes de atingirem o tempo de vida que lhes seria concedido ‘a priori’. Um dos abates em massa mais tristemente famoso foi o que sucedeu durante a chamada crise da ‘doença das vacas loucas’ (BSE), em meados dos anos 1990, que levou ao abate de mais de 4 milhões de animais só no Reino Unido, embora a principal causa da epidemia tivesse ligada ao modo industrial de produção animal e à utilização de farinhas animais nas rações, e a variante humana da doença tenha provocado a morte de pouco mais de 150 pessoas a nível mundial (ver p.ex. aqui). Uns anos mais tarde, foram os surtos de febre aftosa bovina que levaram ao abate de mais de 6 milhões de bovinos, ovinos e caprinos, só no Reino Unido, apesar do número de casos entre os animais não ter excedido alguns milhares (ver p.ex. aqui). Mais recentemente, surtos de gripe das aves levaram a ‘abates preventivos’ de centenas de milhares de aves de criação (principalmente galinhas e patos) em todo o mundo: Portugal, Espanha, França, Estados Unidos, Reino Unido, Israel, Índia, Japão. As razões alegadas pelas autoridades governamentais ou sanitárias para aqueles abates prendem-se com a prevenção do contágio entre os animais das pequenas e grandes produções agro-pecuárias e aviários, mas também com a eventual transmissão para humanos. No entanto, as previsões baseadas em modelos epidemiológicos que foram usadas para justificar alguns dos abates em massa têm vindo a ser criticadas por académicos que as acusam de serem desnecessariamente alarmistas e mesmo incorrectas, em particular aquelas que vieram da equipa do Imperial College liderada por Neil Ferguson (conhecido entre os seus pares por ‘The Master of Disaster’) – ver aqui, aqui ou aqui. As suas previsões sobre eventuais números de casos resultantes de surtos de gripe suína, febre aftosa e BSE no Reino Unido estavam notoriamente equivocadas. Recorde-se que foi aquela mesma equipa de epidemiologistas que motivou a viragem na política sanitária do governo britânico no início da pandemia da Covid em 2020 (ver p.ex. aqui).
Mas nem mesmo os animais domesticados e criados pelos seres humanos estão a salvo da chacina infligida pelo ‘grande exterminador’. Devido a alegadas razões sanitárias, milhões de cabeças de gado ou de aves de capoeira têm sido abatidas nas últimas décadas, mesmo antes de atingirem o tempo de vida que lhes seria concedido ‘a priori’. Um dos abates em massa mais tristemente famoso foi o que sucedeu durante a chamada crise da ‘doença das vacas loucas’ (BSE), em meados dos anos 1990, que levou ao abate de mais de 4 milhões de animais só no Reino Unido, embora a principal causa da epidemia tivesse ligada ao modo industrial de produção animal e à utilização de farinhas animais nas rações, e a variante humana da doença tenha provocado a morte de pouco mais de 150 pessoas a nível mundial (ver p.ex. aqui). Uns anos mais tarde, foram os surtos de febre aftosa bovina que levaram ao abate de mais de 6 milhões de bovinos, ovinos e caprinos, só no Reino Unido, apesar do número de casos entre os animais não ter excedido alguns milhares (ver p.ex. aqui). Mais recentemente, surtos de gripe das aves levaram a ‘abates preventivos’ de centenas de milhares de aves de criação (principalmente galinhas e patos) em todo o mundo: Portugal, Espanha, França, Estados Unidos, Reino Unido, Israel, Índia, Japão. As razões alegadas pelas autoridades governamentais ou sanitárias para aqueles abates prendem-se com a prevenção do contágio entre os animais das pequenas e grandes produções agro-pecuárias e aviários, mas também com a eventual transmissão para humanos. No entanto, as previsões baseadas em modelos epidemiológicos que foram usadas para justificar alguns dos abates em massa têm vindo a ser criticadas por académicos que as acusam de serem desnecessariamente alarmistas e mesmo incorrectas, em particular aquelas que vieram da equipa do Imperial College liderada por Neil Ferguson (conhecido entre os seus pares por ‘The Master of Disaster’) – ver aqui, aqui ou aqui. As suas previsões sobre eventuais números de casos resultantes de surtos de gripe suína, febre aftosa e BSE no Reino Unido estavam notoriamente equivocadas. Recorde-se que foi aquela mesma equipa de epidemiologistas que motivou a viragem na política sanitária do governo britânico no início da pandemia da Covid em 2020 (ver p.ex. aqui).
Uma série de episódios
de abates em massa, menos conhecidos e que estiveram relacionados com a
pandemia da Covid, aconteceram em 2020 em países com criações de
vison-americano para a indústria das peles (‘fur farms’), nomeadamente a Dinamarca, a Holanda
e a Espanha.
Na Dinamarca, o maior produtor mundial de peles de vison para exportação, o
episódio gerou uma crise política que culminou com a demissão do ministro da
agricultura e um pedido de desculpas público da primeira-ministra (ver aqui
e aqui),
tendo o governo sido forçado a suspender o abate dos cerca de 17 milhões de
animais nas mais de 1000 criações em todo o país (ver aqui).
Na Holanda, o governo foi mais longe e decidiu banir as criações de animais
para a produção de peles até meados de 2021 (ver aqui). Mais uma
vez, o possível contágio entre os animais das criações, a geração de mutantes e
a eventual transmissão dos animais para humanos esteve na origem dos abates, embora
as evidências para esta última transmissão não sejam convincentes (ver aqui ou
aqui). Com
excepção das medidas drásticas do governo holandês, a criação
industrial de animais não foi posta em causa, em condições muitas vezes questionáveis e que favorecem
a disseminação de doenças infecciosas (ver aqui).
O recurso recorrente a abates em massa durante crises
sanitárias, que evitam que se ponha em causa a criação industrial intensiva de animais
para alimentação ou vestuário, levou o norte-americano Martin Rowe, defensor
dos direitos animais e do vegetarianismo, a escrever um texto sarcástico onde defende o extermínio de todos os animais do mundo como forma
de prevenir futuras epidemias de doenças zoonóticas (transmitidas de animais
para humanos). Nesse texto, do qual extraí umas das citações que abre este post,
o autor reconhece que, infelizmente, essa empreitada já está em curso e poderá
ter um enorme e trágico sucesso. Na mesma linha satírica, o videasta Steve
Cutts publicou em 2020 uma sequela da sua animação de 2012, inspirada numa das consequências dos confinamentos da
1ª fase da pandemia Covid que impediram muitos seres humanos de realizar, pelo
menos provisoriamente, as suas tarefas quotidianas. Já o psicólogo canadiano
Todd Hayden teceu, num outro texto, uma análise contundente da nossa relação funesta e do nosso
distanciamento em relação à natureza, defendendo que as políticas
de mitigação da pandemia Covid foram uma extensão e um sintoma daquele
afastamento e refletem um medo doentio das sociedades modernas em relação ao
mundo natural: (excerto) “The problem itself is fear. (…)
This is the real problem: our distorted belief that nature itself is the
real enemy. Forget the miracle of the human immune system and how it is
designed to function by taking in pathogens and building antibodies, it is better
to live in a bubble because nature can’t get you then, create a vaccine, let
science protect you, nature will kill you. If you didn’t have to be an animal
and be a part of nature, you could live forever.” No mesmo contexto da pandemia e de forma menos polémica mas
igualmente incisiva, o jornalista português Vítor Belanciano escreveu numa das suas crónicas para o jornal Público: (excertos) “Talvez possamos
utilizar a dolorosa aprendizagem deste momento para não voltar ao que nos
querem fazer crer que é a ‘normalidade’, que não é mais do que uma ‘normalização’
imposta por um modo de existência predatório. (…) será possível atenuar os
problemas apelando apenas à boa consciência de cada um, sem questionar
estruturas de poder, modelos económicos, lógicas de acumulação de lucro ou de
crença no crescimento infinito? Não é crível. (…) O desafio é, então, aprender
a viver de forma não predatória, entendendo que somos parte da terra e não os
seus amos. O vírus veio recordar-nos que o nosso destino está enlaçado com as
demais criaturas e entidades. Mas vai demorar a alcançar esse entendimento.
Vê-se isso quando falamos em ‘isolamento social’ ou em ‘guerra’ contra o vírus,
como se nos posicionássemos fora da natureza. (…) não existimos nós, os seres
humanos, de um lado, e a natureza, do outro. O planeta é um complexo organismo
vivo de coabitação, de afectação mútua e conectividade entre diversas formas de
existência. Temos estado cegos à interconexão da natureza. É vital despertar
para ela.”
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