terça-feira, 17 de março de 2020

Discernimento em tempos de Covid-19

Como escrevi no post anterior, atravessamos tempos desafiantes. Devemos por isso, e como disse uma pessoa amiga, "estar alerta e ser prudentes" - sem alarmes desnecessários, nem entrar em pânico.
Tenho plena consciência da gravidade da situação - tudo mudou durante a semana passada, depois de várias leituras e de contactos com médicos. Mas VAMOS COM CALMA.
Sei que está tudo a acontecer muito depressa. No entanto, vamos precisar de tempo, de muita prudência e sangue frio para atravessar esta crise, que tomou uma dimensão dificilmente imaginável, mas que NÃO É O FIM DO MUNDO!
O pânico e o alarmismo, ampliados pelos media e que têm circulado também nas redes sociais, não levam a nada de bom e é preciso ter muito cuidado com aquilo que nos enviam e com o que reenviamos. Portanto, verificar sempre as fontes e não espalhar boatos!
O medo é um sentimento natural perante o desconhecido, mas deve ser refreado pois sabemos muito bem que é mau conselheiro! E, não sejamos ingénuos, há quem o queira usar para fins pouco recomendáveis... Podem sempre ler os artigos que citei no post anterior.
O 'distanciamento social' é muito importante nesta fase de contenção e pode fazer toda a diferença para não termos de passar para a fase de mitigação (como em Itália e Espanha). Estão em causa os serviços de saúde e quem lá trabalha - e, é óbvio, as pessoas de risco, quem têm de ser protegidas. Mas a maioria das pessoas que apanhar o vírus vai ter uma mera gripe e recupera! Os números estão aí e são claros (ver p.ex. links no final).
Tudo isto não quer dizer que tenhamos de ficar isolados. Precisamos de nos ajudar uns aos outros, providenciando os bens essencias e recorrendo às pessoas de menor risco. Além disso temos as tecnologias para nos informarmos e para podermos comunicar.


Mais umas coisas a ter em conta:

Primeiro: é conveniente relembrar que este vírus não é mortal - a sua taxa de letalidade é baixa 2-4%; só é mais elevada para os grupos de risco: idosos e imunodeprimidos (ver links no final); portanto, se alguém, de fora daqueles grupos, ficar infectado poderá desenvolver sintomas gripais, mas muito provavelmente NÃO VAI MORRER! As previsões apontam para que este vírus venha a perdurar e portanto irá infectar muita gente - que assim adquirirá imunidade. Há quem compare com a rubéola que é benigna nas crianças e jovens, mas pode ser perigosa para os adultos e idosos. A diferença é que o virus da rubéola já circula há vários anos e já existe muita imunidade na comunidade e portanto há pouca transmissão. Este é 'novo', não existe imunidade na comunidade e pode haver muita transmissão se não houver contenção na fase inicial. Esta não será certamente a última epidemia viral. Mais virão. E não é defeito (da natureza), é feitio! Os vírus (e outros micróbios) já cá andavam há muito tempo antes de nós chegarmos - e vão continuar. Devemos é estar melhor preparados para a próxima e não dependermos de economias globalizadas, mas extremamente frágeis e insustentáveis (ver post anterior)!

Segundo: o facto de muita gente poder - e dever - ficar em casa só é possível se algumas pessoas ficarem em risco de exposição nos seus postos de trabalho - o tele-trabalho não é para todos*! Em primeiro lugar, os profissionais de saúde, claro! Devemos-lhes todos a nossa gratidão. MAS NÃO SÃO OS ÚNICOS! Todas as pessoas que trabalham em serviços públicos ou privados essenciais, os empregados dos supermercados, os produtores e distribuidores de alimentos, os farmaceuticos, os bombeiros, os membros das forças policiais e muitas outras pessoas que não tiveram opção de ficar em casa, como os trabalhadores da construção civil nas inúmeras obras que decorrem por todo o lado, SÃO TAMBÉM OS NOSSO HERÓIS!!! Era bom que todos se lembrassem disso, porque deles também depende o nosso bem-estar.
Desafio os facebookianos a proporem cadeias de gratidão para todas essas pessoas. Eu agradeci ontem aos empregados do meu supermercado local por estarem ali - e muitos deles claramente queriam estar em casa com os seus familiares!
* Ver este artigo sobre a vizinha Espanha.

Terceiro: convido ainda a que nos recordemos (a maioria de nós) do nosso privilégio - não temos guerra, não temos privações graves, temos tecto, temos comida, não houve corrida desenfreada aos supermercados, nem desacatos - e seria bom que se mantivesse assim.

Quarto: mostrar simpatia pelas famílias dos mortos é um legítimo sinal de respeito; mas isso é válido não só para quem morrer da Covid-19, como o é também para as dezenas de mortos de outras doenças infecciosas em Portugal (incluindo a gripe). Relativizemos portanto, sem desumanizar.

Finalmente: aqueles que não estão em risco podem sair à rua para apanhar ar e dar um passeio, com as devidas precauções - não vos irá cair um vírus na cabeça. O mundo continua a girar e a Primavera está à porta. É aproveitar antes que declarem quarentena forçada.


Nenhum de nós sabe como vai ser o dia de amanhã. Mas também era assim ontem e anteontem. Vamos confiar no bom senso, no discernimento e, sim, na coragem e altruismo de muitos. Disso depende um amanhã risonho para todos.

Seguem alguns links para sites informativos (para consultar com moderação):
SNS: https://www.sns24.gov.pt/alerta/novo-coronavirus/
DGS: https://covid19.min-saude.pt/
Lusa: https://www.lusa.pt/covid19

Prossigamos pois esta viagem em águas turbulentas e incógnitas: com confiança, coragem e esperança. Que o lado luminoso da globalização nos guie nesta jornada.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Pode uma pandemia mudar o mundo?

Quando espreitei o mundo através da minha janela esta manhã, reparei que parecia o mesmo de ontem. Mas, na verdade, já não era o mesmo. E ainda mais diferente me pareceu daquele que me lembro da semana passada. Desde então, o tempo parece que ficou comprimido e que tudo está a acontecer a uma velocidade vertiginosa. Mas sei que é uma questão de percepção. Na verdade, sabemos que a realidade é algo que vamos construindo, individual- e colectivamente, e que, por isso, está em constante mudança. Em cada momento, vamos tendo acesso e consciência das diferentes camadas dessa realidade que é o mundo para além de nós e no qual nos inserimos. E assim o vamos moldando - e ele a nós. Umas vezes parece-nos estável e quase imutável, outras parece arrastar-nos num turbilhão. E é precisamente neste último registo que sinto que nos encontrarmos neste momento.


Atravessamos um território e um tempo desconhecidos de uma pandemia global que parece saída de um filme de Hollywood ou de um livro de ficção científica. Na verdade, instalou-se no ‘mundo real’ e acabou por dominar a ordem do dia mediática (o que já estava a acontecer há umas semanas), passando agora também a ditar mudanças consideráveis na vida quotidiana de todos. Estive hoje (2ªf, 16 de Março) em Belém, no Chiado e na Baixa a meio da tarde e parecia ter regressado à Lisboa de um fim-de-semana de Agosto de há pelo menos uns quinze anos atrás (fotos neste post). As medidas extraordinárias decretadas pelo governo na semana passada entraram em vigor para museus e monumentos e as indicações de ‘distanciamento social’ estão a ser acatadas por muitos lisboetas (fotos neste post). E a situação parece justificá-lo, atendendo ao que sabemos ter acontecido em Itália e ao que se está a passar na vizinha Espanha. Devemos encarar este momento com serenidade, sensatez e coragem, evitando a todo o custo o pânico e o medo, que sabemos bem serem maus conselheiros. Mas temos de manter doses equivalentes de atenção e de vigilância para não perdermos o discernimento (ver post seguinte).

Passo a invocar algumas leituras recentes para nos servirem de guias de reflexão e de inspiração nestas águas turbulentas.

O primeiro é um artigo de Marc Fisher para o Washington Post que nos fala sobre a linha ténue que separa a prudência do pânico. Nele o autor defende que uma certa dose de medo pode ser construtiva e mesmo necessária para conseguirmos mudar aquilo que nos impede de resolver um problema que ameaça a nossa própria sobrevivência, sendo igualmente necessária confiança não só entre as pessoas, como também nas decisões colectivas e institucionais. Este raciocínio é válido para a actual pandemia, mas - digo eu - é igualmente válido para a crise ecológica e climática que vai continuar a ameaçar-nos mesmo depois de superarmos a crise da Covid-19.
Excertos: (…) Fear by itself doesn’t necessarily lead to panic. Fear can bring out the best in people. (…) “Panic is bad, but some degree of anxiety is good and adaptive,” [Eric Toner, physician at Johns Hopkins University] said. “It’s normal to be anxious if that drives people to do constructive things. The vast majority of people who get this illness will be just fine. But that small percentage who do poorly is a big number, and it’s good for people to understand that while this may not be a risk to me personally, it is to the society in which I live.” (…) The line between healthy adaptation to an emergency and counterproductive panic has much to do with two of the most powerful forces in any human existence: denial and survival. Often, psychologists say, the two instincts work hand in hand to steer people away from danger. People need a strong sense of denial to cope with the risks involved in daily life. (…) To continue with daily life in the face of a deadly pandemic, you must accept a certain degree of risk or else you cannot obtain food and care for your family. (…) One of many paradoxes the world faces in a time of dangerous uncertainty is the idea that time both heals and provides false comfort
.


Os outros artigos são de autores portugueses e surgiram nas últimas semanas no jornal Público. Vitor Belanciano (O vírus que faz parar para pensar)(pdf) e José Gil (O medo)(pdf) referem-se ambos à incerteza da situação que vivemos e às ameaças sociais que derivam do medo gerado por essa mesma incerteza, invocando também as oportunidades que se abrem para questionar o nosso modelo de sociedade e o nosso modo de vida.
Excertos:
VB: (…) O novo vírus tem provocado mortes, pânico, paranóias racistas e manifestações de nacionalismo, mostrando que quanto mais ligado o mundo está, maiores as hipóteses de um desastre local resultar em pavor global, sem que as respostas consigam ser igualmente universais. (…) Se nos últimos anos já havia propensão para muros, segregações, desigualdades crescentes, estados de emergência que se tornam permanentes e crises económicas seguidas de pedidos de sacrifício e medidas de austeridade que penalizam os do costume, dir-se-ia que o cenário actual parece propício a impulsionar ainda mais essa realidade. (…) Numa época em que a sustentabilidade do planeta está na ordem do dia, somos agora impelidos a consumir menos, a trabalhar de forma diferente, a viajar o mínimo. Essa desaceleração terá efeitos económicos imponderáveis, mas tudo indica ambientalmente positivas — será desta que ensaiaremos novos modelos de crescimento que não ponham em causa o equilíbrio do planeta? (…) Numa sociedade baseada na produtividade e no consumo, de um momento para o outro somos obrigados a valorizar um tempo existencial cujo valor perdemos de vista, se daí não resultar proveito financeiro. (…) O vírus tirou-nos a proximidade, o toque, o abraço. Tudo gestos que às vezes não valorizamos, porque os damos por garantidos. Ninguém sabe o que irá acontecer. Tanto podemos regressar à selvajaria, como esta ser a hora da responsabilidade partilhada, de um destino escrito por todos, porque dependemos uns dos outros.
JG: O que vem aí, ninguém sabe. Adivinha-se, teme-se que seja devastador. (…) Será um desastre planetário e regional, colectivo e individual, já presente e ainda futuro, conhecido e familiar, mas sempre longínquo e estrangeiro, destinado aos outros mas cada vez mais perto. (…) Constatamos agora que a sociedade, as instituições e as leis que criámos para nos protegerem, e nos assegurarem uma vida justa, falharam redondamente. Não construímos uma vida viável para a espécie humana. (…) O coronavírus, pondo em perigo qualquer um, independentemente da sua riqueza ou estatuto, torna todos iguais – não perante a morte, mas perante o direito à vida, à saúde e à justiça. Não se trata, como já ouvimos dizer, de pôr em causa a nossa civilização, mas as suas formações de poder e, com elas, o desenvolvimento de laços sociais cada vez menos aceitáveis. Esta terrível experiência que estamos a viver constitui apenas uma antecipação, e um aviso, do que nos espera com as alterações climáticas. (…) Reduzir-se-á então o nosso contributo a obedecer passivamente ao auto-isolamento anti-social? (…) Que podemos e devemos fazer, nós que nos fechamos em casa, e que não queremos que o auto-isolamento se torne apenas uma defesa egoísta da família, numa atitude que reforça, afinal, o corte com a comunidade? (…) A relação com os outros e a comunidade sofre um abalo profundo. O laço social, que, mais do que na inveja e no amor-de-si, se enraíza no “amor” ao outro (como afecto gregário da espécie), encontra-se comprometido, ameaçando romper-se. (…) Um fenómeno inédito está a surgir: a pandemia transforma a percepção que se tinha da globalização. Sabíamos que ela existia, conhecíamos os seus efeitos (financeiros, climáticos, turísticos), mas só raros tinham dela uma experiência vivida. Graças ao coronavírus, e pelas piores razões, o homem comum tem agora, ao longo do seu tempo quotidiano, a experiência da globalização. Deixou de ser abstracta, tornou-se uma globalização existencial. Vivemos todos, simultaneamente, o mesmo tempo do mundo.



O medo é também o tema de um artigo de Natália Faria (O vírus do medo já contagiou as democracias)(pdf) que cita diversos académicos nacionais sobre as ameaças para a democracia que podem resultar da forma como sucessivos governos têm respondido à actual pandemia.
Um dos autores citados no artigo anterior é o historiador Manuel Loff que escreveu, por sua vez, dois artigos de opinião (Peste I e Peste II)(pdfs aqui e aqui) onde invoca o célebro livro de Albert Camus para defender que a cultura do medo, que tem sido usada repetidamente por governantes mundiais nas últimas décadas para enfrentar diversas crises, está a conduzir a perigosas derivas securitárias.
Excerto: Na milésima crise, na enésima emergência a que este século assiste, vivemos entre um número crescente de concidadãos que se habituou a viver de medo em medo - do terrorismo da Al-Qaeda ao do ISIS, dos mísseis nortecoreanos aos refugiados que tentam atravessar o Mediterrâneo, da gripe das aves à covid-19... Como escreve Giorgio Agamben, "uma vez mais manifesta-se a tendência crescente a usar o estado de exceção como paradigma normal de governo", a resolução de um problema de saúde pública, como nos casos da China ou da Itália, com "uma verdadeira militarização" (…). A batalha do medo está perdida. Que não se perca a da razão.



Poderá então esta pandemia salvar o mundo? Cabe-nos a nós construir a resposta a essa pergunta. Como disse sabiamente o escritor Mia Couto: “O mundo só pode ser salvo se for outro, se esse outro mundo nascer em nós e nos fizer nascer nele.” E como diz José Gil no artigo que citei acima: “Comunicar com os outros e com a comunidade é furar a bolha, alargar os limites do espaço e do tempo, tomar consciência de que o nosso mundo se estende muito para além dos quartos a que estamos confinados.

No meio de tanta incerteza, tenhamos a sensatez e a coragem de sermos generosos com os outros e connosco próprios – teremos pela frente momentos que vão testar a nossa resiliência emocional e psicológica. Não sabemos o que vai acontecer e não temos um guião para este ‘filme’, mas é certo que já passámos por outras provações bem mais graves e conseguimos sair delas, mesmo que tenham deixado marcas. Prossigamos então lado a lado – porque estamos todos juntos nesta viagem.

Nota: as fotos que ilustram este post foram respigadas por mim na última semana.

quarta-feira, 11 de março de 2020

Coronavírus e catástrofe ecológica: duas crises, a mesma causa profunda

A pandemia da COVID-19, para além de ter desencadeado uma reacção mundial sem precedentes (com muita insensatez e histerismo à mistura!), acabou por expor as interdependências e fragilidades do actual sistema económico globalizado - e nem sequer estamos perante um vírus particularmente agressivo. Como afirma Matt Mellen num artigo recente na revista ecologista britânica online 'Ecohustler', "O coronavírus é simultaneamente um sintoma duma economia globalizada insustentável e um alerta importante de que as coisas precisam mudar. As medidas excepcionais de curto prazo para conter o vírus acabaram por ter também um impacto positivo nos ecossistemas globais devastados. A crise pode ser uma oportunidade e a adoção sustentada de algumas dessas medidas poderia ajudar a evitar os piores cenários climáticos e a manter as condições planetárias às quais a humanidade está adaptada." O autor vai mais longe e afirma que: "A melhor maneira de prevenir pandemias e evitar a escala de sofrimento humano a que estamos assistir no mundo devido ao coronavírus não é o auto-isolamento, a lavagem das mãos ou as máscaras faciais, mas o repúdio dos nossos sistemas económicos, alimentares e de transporte moribundos, e a sua substituição por estruturas que coloquem a natureza e o planeta em primeiro lugar. Um mundo onde a agricultura industrial e o comércio de animais selvagens são proibidos. Onde o crescimento económico não é perseguido a todo custo, onde a nossa capacidade de nos alimentarmos quotidianamente está nas nossas próprias mãos, e não nas de corporações multinacionais poluentes." Para quem conhece as propostas do Decrescimento, esta argumentação será certamente familiar!
Os impactos ambientais positivos da crise da COVID-19 têm aliás sido enfatizados noutros media internacionais - ver p. ex. aqui ou aqui. O artigo da DW (versão PT aqui) começa por afirmar que o coronavírus provovou uma queda nas emissões de CO2 mais rápida do que anos de negociações climáticas, com base em dados de um estudo da Universidade de Helsínquia. O artigo cita Amy Jaffe, directora do programa sobre segurança energética e alterações climáticas do think-tank norte-americano 'Council for Foreign Relations', que afirma que o vírus está a incitarnos a que mudemos os nossos hábitos de formas que poderão contribuir para uma proteção climática de mais longo prazo: trabalhar de casa, videoconferências, jornadas semanais mais curtas ou horários de escritório alternados para reduzir o tráfego e relocalização das actividades económicas. Este mesmo artigo, bem como o do The Guardian (que dá ênfase às quebras no tráfego aéreo), alertam no entanto para a pressão do governo chinês no sentido da retoma rápida da produção para evitar uma recessão económica, tal como sucedeu após a crise de 2008, o que neutralizaria os actuais impactos ambientais positivos. O artigo da DW cita ainda Jon Erickson, especialista em doenças infecciosas e mudança climática na Universidade de Vermont, que defende uma contração controlada da atividade económica a fim de proteger o clima, semelhante à preconizada pelos decrescentistas. Erickson sugere que "Se lidarmos com o clima como uma verdadeira emergência – como estamos a tratar esta pandemia – precisamos de ter um nível semelhante de coordenação internacional, a começar pela rápida redução dos investimentos em combustíveis fósseis".
O paralelismo entre a actual crise de saúde pública e a crise climática é também evocado por David Comerford, especialista em ciências comportamentais na Universidade de Stirling (Escócia), num artigo no 'The Conversation' (versão PT aqui). Nele destaca as principais diferenças nas respostas às duas emergências, tentando explicar essas mesmas diferenças. Conclui assim: "Uma lição final que a resposta ao coronavírus nos ensina é que as pessoas ainda conseguem trabalhar juntas para fazer o que está certo. Precisamos de esperança, de confiar uns nos outros, para combater a crise climática. Talvez, contraintuitivamente, o coronavírus nos dê uma ajuda para isto."
Também o filósofo esloveno Slavoj Zizek adopta, num artigo de opinião recente, uma visão (subversivamente) optimista sobre o impacto do novo coronavirus no eventual declínio do sistema capitalista e numa possível reinvenção do comunismo. Escreve Zizek: "talvez, outro vírus muito mais benéfico também se espalhe e, se tivermos sorte, irá nos infectar: o vírus do pensar numa sociedade alternativa, uma sociedade para além dos Estados-nação, uma sociedade que se actualiza nas formas de solidariedade e cooperação global." Mas convida também a "refletir sobre o triste facto de precisarmos de uma catástrofe para nos permitirmos repensar as características básicas da sociedade na qual vivemos", não deixando de notar "a enorme ironia do facto: aquilo que nos uniu e nos levou à solidariedade global se expressa, no nível da vida quotidiana, em orientações severas para evitar o contacto com os outros, e até de se isolar." Zizek sublinha o impacto da pandemia em diversos sectores da economia mundial e nos 'mercados', que poderia tornar mais evidente "a necessidade urgente de uma reorganização da economia global, que não esteja mais à mercê dos mecanismos de mercado".
Finalmente, o historiador Harold James num artigo para o 'Project Syndicate', reflecte também sobre os impactos da actual pandemia, não só nas actividades económicas e na especulação financeira, mas também nos comportamentos e decisões políticas, sugerindo que esta crise poderá originar um declínio da globalização económica: "we should not be surprised if the crisis leads to far-reaching, historically significant global change. (...) it is entirely possible that COVID-19 will precipitate the 'waning of globalization'."
A minha própria posição em relação aos eventuais efeitos benéficos da actual pandemia viral é cautelosa pois existe um lado mais perverso e sinistro desta crise que tem a ver com a resposta hiper-reactiva dos governos e instâncias internacionais, que me parece desproporcionada e pouco sensata, para além do descabido alarmismo mediático e das reacções submissas, insensatas ou pouco críticas de muito cidadãos. Tentarei desenvolver este raciocínio num outro post.