quarta-feira, 11 de março de 2020

Coronavírus e catástrofe ecológica: duas crises, a mesma causa profunda

A pandemia da COVID-19, para além de ter desencadeado uma reacção mundial sem precedentes (com muita insensatez e histerismo à mistura!), acabou por expor as interdependências e fragilidades do actual sistema económico globalizado - e nem sequer estamos perante um vírus particularmente agressivo. Como afirma Matt Mellen num artigo recente na revista ecologista britânica online 'Ecohustler', "O coronavírus é simultaneamente um sintoma duma economia globalizada insustentável e um alerta importante de que as coisas precisam mudar. As medidas excepcionais de curto prazo para conter o vírus acabaram por ter também um impacto positivo nos ecossistemas globais devastados. A crise pode ser uma oportunidade e a adoção sustentada de algumas dessas medidas poderia ajudar a evitar os piores cenários climáticos e a manter as condições planetárias às quais a humanidade está adaptada." O autor vai mais longe e afirma que: "A melhor maneira de prevenir pandemias e evitar a escala de sofrimento humano a que estamos assistir no mundo devido ao coronavírus não é o auto-isolamento, a lavagem das mãos ou as máscaras faciais, mas o repúdio dos nossos sistemas económicos, alimentares e de transporte moribundos, e a sua substituição por estruturas que coloquem a natureza e o planeta em primeiro lugar. Um mundo onde a agricultura industrial e o comércio de animais selvagens são proibidos. Onde o crescimento económico não é perseguido a todo custo, onde a nossa capacidade de nos alimentarmos quotidianamente está nas nossas próprias mãos, e não nas de corporações multinacionais poluentes." Para quem conhece as propostas do Decrescimento, esta argumentação será certamente familiar!
Os impactos ambientais positivos da crise da COVID-19 têm aliás sido enfatizados noutros media internacionais - ver p. ex. aqui ou aqui. O artigo da DW (versão PT aqui) começa por afirmar que o coronavírus provovou uma queda nas emissões de CO2 mais rápida do que anos de negociações climáticas, com base em dados de um estudo da Universidade de Helsínquia. O artigo cita Amy Jaffe, directora do programa sobre segurança energética e alterações climáticas do think-tank norte-americano 'Council for Foreign Relations', que afirma que o vírus está a incitarnos a que mudemos os nossos hábitos de formas que poderão contribuir para uma proteção climática de mais longo prazo: trabalhar de casa, videoconferências, jornadas semanais mais curtas ou horários de escritório alternados para reduzir o tráfego e relocalização das actividades económicas. Este mesmo artigo, bem como o do The Guardian (que dá ênfase às quebras no tráfego aéreo), alertam no entanto para a pressão do governo chinês no sentido da retoma rápida da produção para evitar uma recessão económica, tal como sucedeu após a crise de 2008, o que neutralizaria os actuais impactos ambientais positivos. O artigo da DW cita ainda Jon Erickson, especialista em doenças infecciosas e mudança climática na Universidade de Vermont, que defende uma contração controlada da atividade económica a fim de proteger o clima, semelhante à preconizada pelos decrescentistas. Erickson sugere que "Se lidarmos com o clima como uma verdadeira emergência – como estamos a tratar esta pandemia – precisamos de ter um nível semelhante de coordenação internacional, a começar pela rápida redução dos investimentos em combustíveis fósseis".
O paralelismo entre a actual crise de saúde pública e a crise climática é também evocado por David Comerford, especialista em ciências comportamentais na Universidade de Stirling (Escócia), num artigo no 'The Conversation' (versão PT aqui). Nele destaca as principais diferenças nas respostas às duas emergências, tentando explicar essas mesmas diferenças. Conclui assim: "Uma lição final que a resposta ao coronavírus nos ensina é que as pessoas ainda conseguem trabalhar juntas para fazer o que está certo. Precisamos de esperança, de confiar uns nos outros, para combater a crise climática. Talvez, contraintuitivamente, o coronavírus nos dê uma ajuda para isto."
Também o filósofo esloveno Slavoj Zizek adopta, num artigo de opinião recente, uma visão (subversivamente) optimista sobre o impacto do novo coronavirus no eventual declínio do sistema capitalista e numa possível reinvenção do comunismo. Escreve Zizek: "talvez, outro vírus muito mais benéfico também se espalhe e, se tivermos sorte, irá nos infectar: o vírus do pensar numa sociedade alternativa, uma sociedade para além dos Estados-nação, uma sociedade que se actualiza nas formas de solidariedade e cooperação global." Mas convida também a "refletir sobre o triste facto de precisarmos de uma catástrofe para nos permitirmos repensar as características básicas da sociedade na qual vivemos", não deixando de notar "a enorme ironia do facto: aquilo que nos uniu e nos levou à solidariedade global se expressa, no nível da vida quotidiana, em orientações severas para evitar o contacto com os outros, e até de se isolar." Zizek sublinha o impacto da pandemia em diversos sectores da economia mundial e nos 'mercados', que poderia tornar mais evidente "a necessidade urgente de uma reorganização da economia global, que não esteja mais à mercê dos mecanismos de mercado".
Finalmente, o historiador Harold James num artigo para o 'Project Syndicate', reflecte também sobre os impactos da actual pandemia, não só nas actividades económicas e na especulação financeira, mas também nos comportamentos e decisões políticas, sugerindo que esta crise poderá originar um declínio da globalização económica: "we should not be surprised if the crisis leads to far-reaching, historically significant global change. (...) it is entirely possible that COVID-19 will precipitate the 'waning of globalization'."
A minha própria posição em relação aos eventuais efeitos benéficos da actual pandemia viral é cautelosa pois existe um lado mais perverso e sinistro desta crise que tem a ver com a resposta hiper-reactiva dos governos e instâncias internacionais, que me parece desproporcionada e pouco sensata, para além do descabido alarmismo mediático e das reacções submissas, insensatas ou pouco críticas de muito cidadãos. Tentarei desenvolver este raciocínio num outro post.

1 comentário:

  1. Oi Alvaro, aqui o Patrick. Queria só partilhar este artigo contigo e com isso dizer que, pela natureza da coisa, não penso que existe uma resposta hiper-reativa, pelo contrário, entretanto até penso há muito descuido em diferentes aspetos, tanto do governo como (e principalmente) da população. https://medium.com/@tomaspueyo/coronavirus-act-today-or-people-will-die-f4d3d9cd99ca

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