segunda-feira, 16 de março de 2020

Pode uma pandemia mudar o mundo?

Quando espreitei o mundo através da minha janela esta manhã, reparei que parecia o mesmo de ontem. Mas, na verdade, já não era o mesmo. E ainda mais diferente me pareceu daquele que me lembro da semana passada. Desde então, o tempo parece que ficou comprimido e que tudo está a acontecer a uma velocidade vertiginosa. Mas sei que é uma questão de percepção. Na verdade, sabemos que a realidade é algo que vamos construindo, individual- e colectivamente, e que, por isso, está em constante mudança. Em cada momento, vamos tendo acesso e consciência das diferentes camadas dessa realidade que é o mundo para além de nós e no qual nos inserimos. E assim o vamos moldando - e ele a nós. Umas vezes parece-nos estável e quase imutável, outras parece arrastar-nos num turbilhão. E é precisamente neste último registo que sinto que nos encontrarmos neste momento.


Atravessamos um território e um tempo desconhecidos de uma pandemia global que parece saída de um filme de Hollywood ou de um livro de ficção científica. Na verdade, instalou-se no ‘mundo real’ e acabou por dominar a ordem do dia mediática (o que já estava a acontecer há umas semanas), passando agora também a ditar mudanças consideráveis na vida quotidiana de todos. Estive hoje (2ªf, 16 de Março) em Belém, no Chiado e na Baixa a meio da tarde e parecia ter regressado à Lisboa de um fim-de-semana de Agosto de há pelo menos uns quinze anos atrás (fotos neste post). As medidas extraordinárias decretadas pelo governo na semana passada entraram em vigor para museus e monumentos e as indicações de ‘distanciamento social’ estão a ser acatadas por muitos lisboetas (fotos neste post). E a situação parece justificá-lo, atendendo ao que sabemos ter acontecido em Itália e ao que se está a passar na vizinha Espanha. Devemos encarar este momento com serenidade, sensatez e coragem, evitando a todo o custo o pânico e o medo, que sabemos bem serem maus conselheiros. Mas temos de manter doses equivalentes de atenção e de vigilância para não perdermos o discernimento (ver post seguinte).

Passo a invocar algumas leituras recentes para nos servirem de guias de reflexão e de inspiração nestas águas turbulentas.

O primeiro é um artigo de Marc Fisher para o Washington Post que nos fala sobre a linha ténue que separa a prudência do pânico. Nele o autor defende que uma certa dose de medo pode ser construtiva e mesmo necessária para conseguirmos mudar aquilo que nos impede de resolver um problema que ameaça a nossa própria sobrevivência, sendo igualmente necessária confiança não só entre as pessoas, como também nas decisões colectivas e institucionais. Este raciocínio é válido para a actual pandemia, mas - digo eu - é igualmente válido para a crise ecológica e climática que vai continuar a ameaçar-nos mesmo depois de superarmos a crise da Covid-19.
Excertos: (…) Fear by itself doesn’t necessarily lead to panic. Fear can bring out the best in people. (…) “Panic is bad, but some degree of anxiety is good and adaptive,” [Eric Toner, physician at Johns Hopkins University] said. “It’s normal to be anxious if that drives people to do constructive things. The vast majority of people who get this illness will be just fine. But that small percentage who do poorly is a big number, and it’s good for people to understand that while this may not be a risk to me personally, it is to the society in which I live.” (…) The line between healthy adaptation to an emergency and counterproductive panic has much to do with two of the most powerful forces in any human existence: denial and survival. Often, psychologists say, the two instincts work hand in hand to steer people away from danger. People need a strong sense of denial to cope with the risks involved in daily life. (…) To continue with daily life in the face of a deadly pandemic, you must accept a certain degree of risk or else you cannot obtain food and care for your family. (…) One of many paradoxes the world faces in a time of dangerous uncertainty is the idea that time both heals and provides false comfort
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Os outros artigos são de autores portugueses e surgiram nas últimas semanas no jornal Público. Vitor Belanciano (O vírus que faz parar para pensar)(pdf) e José Gil (O medo)(pdf) referem-se ambos à incerteza da situação que vivemos e às ameaças sociais que derivam do medo gerado por essa mesma incerteza, invocando também as oportunidades que se abrem para questionar o nosso modelo de sociedade e o nosso modo de vida.
Excertos:
VB: (…) O novo vírus tem provocado mortes, pânico, paranóias racistas e manifestações de nacionalismo, mostrando que quanto mais ligado o mundo está, maiores as hipóteses de um desastre local resultar em pavor global, sem que as respostas consigam ser igualmente universais. (…) Se nos últimos anos já havia propensão para muros, segregações, desigualdades crescentes, estados de emergência que se tornam permanentes e crises económicas seguidas de pedidos de sacrifício e medidas de austeridade que penalizam os do costume, dir-se-ia que o cenário actual parece propício a impulsionar ainda mais essa realidade. (…) Numa época em que a sustentabilidade do planeta está na ordem do dia, somos agora impelidos a consumir menos, a trabalhar de forma diferente, a viajar o mínimo. Essa desaceleração terá efeitos económicos imponderáveis, mas tudo indica ambientalmente positivas — será desta que ensaiaremos novos modelos de crescimento que não ponham em causa o equilíbrio do planeta? (…) Numa sociedade baseada na produtividade e no consumo, de um momento para o outro somos obrigados a valorizar um tempo existencial cujo valor perdemos de vista, se daí não resultar proveito financeiro. (…) O vírus tirou-nos a proximidade, o toque, o abraço. Tudo gestos que às vezes não valorizamos, porque os damos por garantidos. Ninguém sabe o que irá acontecer. Tanto podemos regressar à selvajaria, como esta ser a hora da responsabilidade partilhada, de um destino escrito por todos, porque dependemos uns dos outros.
JG: O que vem aí, ninguém sabe. Adivinha-se, teme-se que seja devastador. (…) Será um desastre planetário e regional, colectivo e individual, já presente e ainda futuro, conhecido e familiar, mas sempre longínquo e estrangeiro, destinado aos outros mas cada vez mais perto. (…) Constatamos agora que a sociedade, as instituições e as leis que criámos para nos protegerem, e nos assegurarem uma vida justa, falharam redondamente. Não construímos uma vida viável para a espécie humana. (…) O coronavírus, pondo em perigo qualquer um, independentemente da sua riqueza ou estatuto, torna todos iguais – não perante a morte, mas perante o direito à vida, à saúde e à justiça. Não se trata, como já ouvimos dizer, de pôr em causa a nossa civilização, mas as suas formações de poder e, com elas, o desenvolvimento de laços sociais cada vez menos aceitáveis. Esta terrível experiência que estamos a viver constitui apenas uma antecipação, e um aviso, do que nos espera com as alterações climáticas. (…) Reduzir-se-á então o nosso contributo a obedecer passivamente ao auto-isolamento anti-social? (…) Que podemos e devemos fazer, nós que nos fechamos em casa, e que não queremos que o auto-isolamento se torne apenas uma defesa egoísta da família, numa atitude que reforça, afinal, o corte com a comunidade? (…) A relação com os outros e a comunidade sofre um abalo profundo. O laço social, que, mais do que na inveja e no amor-de-si, se enraíza no “amor” ao outro (como afecto gregário da espécie), encontra-se comprometido, ameaçando romper-se. (…) Um fenómeno inédito está a surgir: a pandemia transforma a percepção que se tinha da globalização. Sabíamos que ela existia, conhecíamos os seus efeitos (financeiros, climáticos, turísticos), mas só raros tinham dela uma experiência vivida. Graças ao coronavírus, e pelas piores razões, o homem comum tem agora, ao longo do seu tempo quotidiano, a experiência da globalização. Deixou de ser abstracta, tornou-se uma globalização existencial. Vivemos todos, simultaneamente, o mesmo tempo do mundo.



O medo é também o tema de um artigo de Natália Faria (O vírus do medo já contagiou as democracias)(pdf) que cita diversos académicos nacionais sobre as ameaças para a democracia que podem resultar da forma como sucessivos governos têm respondido à actual pandemia.
Um dos autores citados no artigo anterior é o historiador Manuel Loff que escreveu, por sua vez, dois artigos de opinião (Peste I e Peste II)(pdfs aqui e aqui) onde invoca o célebro livro de Albert Camus para defender que a cultura do medo, que tem sido usada repetidamente por governantes mundiais nas últimas décadas para enfrentar diversas crises, está a conduzir a perigosas derivas securitárias.
Excerto: Na milésima crise, na enésima emergência a que este século assiste, vivemos entre um número crescente de concidadãos que se habituou a viver de medo em medo - do terrorismo da Al-Qaeda ao do ISIS, dos mísseis nortecoreanos aos refugiados que tentam atravessar o Mediterrâneo, da gripe das aves à covid-19... Como escreve Giorgio Agamben, "uma vez mais manifesta-se a tendência crescente a usar o estado de exceção como paradigma normal de governo", a resolução de um problema de saúde pública, como nos casos da China ou da Itália, com "uma verdadeira militarização" (…). A batalha do medo está perdida. Que não se perca a da razão.



Poderá então esta pandemia salvar o mundo? Cabe-nos a nós construir a resposta a essa pergunta. Como disse sabiamente o escritor Mia Couto: “O mundo só pode ser salvo se for outro, se esse outro mundo nascer em nós e nos fizer nascer nele.” E como diz José Gil no artigo que citei acima: “Comunicar com os outros e com a comunidade é furar a bolha, alargar os limites do espaço e do tempo, tomar consciência de que o nosso mundo se estende muito para além dos quartos a que estamos confinados.

No meio de tanta incerteza, tenhamos a sensatez e a coragem de sermos generosos com os outros e connosco próprios – teremos pela frente momentos que vão testar a nossa resiliência emocional e psicológica. Não sabemos o que vai acontecer e não temos um guião para este ‘filme’, mas é certo que já passámos por outras provações bem mais graves e conseguimos sair delas, mesmo que tenham deixado marcas. Prossigamos então lado a lado – porque estamos todos juntos nesta viagem.

Nota: as fotos que ilustram este post foram respigadas por mim na última semana.

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