quinta-feira, 30 de maio de 2019

O 'percurso iniciático' da elite do poder

Os trajectos dos ‘capatazes’ ao serviço do poder oligárquico (e plutocrático) dos ‘donos disto tudo’ são tão óbvios que até chateia. Os casos de algumas figuras conhecidas da política nacional são bons exemplos disso. Tivemos o ‘peixe graúdo’ Durão Barroso que abandonou o lugar de primeiro-ministro para assumir a liderança da Comissão Europeia e que, depois de executar satisfatoriamente o seu trabalhinho (o que lhe garantiu uma reforma generosa da UE), foi premiado com mais um bom emprego na Goldman Sachs, situação que causou algum mal-estar entre os dirigentes europeus, com acusações de conflito de interesses e de conduta antiética:
Tivemos também o implacável Vítor Gaspar que, depois de implementar as brutais medidas de austeridade requeridas pela ‘troika’, se demitiu do governo Passos Coelho (PC) para passar a integrar os quadros superiores do FMI e continuar a aplicar a sua sagacidade financeira (que foi criticada pelo próprio FMI), mas preconizando receitas muito diferentes daquelas que usou enquanto ministro das finanças:
Depois tivemos a sucessora de Gaspar, Maria Luís Albuquerque, que após a queda do governo PC, tinha à sua espera um lugarzinho numa grande empresa financeira britânica (Arrow Global), o que voltou a causar indignação pelas situações de conflito de interesses que gerou:
Entretanto, o ex-governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, tinha sido promovido a vice-presidente do BCE, lugar que ocupou durante oito anos e que lhe garantiu um bom complemento de reforma, tendo regressado a Portugal em 2018 para se tornar ‘blogger intelectual’ (sic) de assuntos económicos:
E temos finalmente o actual presidente da câmara de Lisboa, Fernando Medina, que, após aplicar as receitas neoliberais à gestão da cidade, foi agora convidado pelo veterano Durão para se iniciar num dos clubes exclusivos das elites do poder, o grupo Bilderberg, que se reúne na Suiça este fim-de-semana:
Não sou partidário de teorias da conspiração, mas é um facto que estas reuniões à porta fechada sobre assuntos de relevância geopolítica global que juntam maioritariamente membros seleccionados das elites empresariais, financeiras e políticas, geram natural desconfiança na generalidade das pessoas por não sentirem que ali se definam estratégias para o bem comum. Basta consultar as listas de personalidades da elite política e empresarial nacional que passaram por aquelas reuniões ao longo das últimas décadas para perceber que há um aparente 'percurso iniciático' que promove uma fidelização a uma determinada ideologia política e económica:
Como se afirma nesta última notícia: “(…) Bilderberg é sempre visto como um palco de lançamento para uma carreira promissora em Portugal. As figuras escolhidas são, normalmente, pessoas que tenham influência ou possam vir a tê-la, seja como chefes de Governo ou líderes da oposição. Tirando Passos Coelho, que apesar de convidado não chegou a participar, os últimos primeiros-ministros portugueses passaram todos por Bilderberg: António Guterres, Durão Barroso, Pedro Santana Lopes, José Sócrates e António Costa. Em 2013, António José Seguro e Paulo Portas estiveram juntos. Marcelo Rebelo de Sousa, Manuela Ferreira Leite, Vítor Constâncio, Teixeira dos Santos ou Ricardo Salgado foram outros dos nomes que marcaram presença em Bilderberg.” Augura-se portanto um futuro político auspicioso para o actual edil lisboeta.

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Ressacas: greve estudantil e eleições europeias

À ressaca da manif da greve estudantil de 6ªf passada (24 Mai), juntou-se a do rescaldo das eleições europeias. A greve estudantil global pelo clima voltou a mobilizar milhares de jovens em todo o mundo e também em Portugal. O número de participantes terá sido menor do que em 15 Março, mas o entusiasmo, a determinação e a criatividade estiveram na rua:
https://www.dn.pt/vida-e-futuro/interior/queremos-mobilizar-muitos-mais-estudantes-querem-greve-geral-pelo-clima-em-setembro-10937154.html
https://www.esquerda.net/artigo/greve-climatica-estudantil-imagens-das-manifestacoes-em-todo-o-mundo/61548
https://www.theguardian.com/environment/gallery/2019/may/24/student-climate-strikes-around-the-world
O que me deixou mais desanimado foi ter percebido que o apelo dos jovens a que todos os cidadãos se juntassem a eles não foi correspondido. De facto, o comunicado internacional publicado no 'The Guardian' dizia explicitamente: "We feel a lot of adults haven’t quite understood that we young people won’t hold off the climate crisis ourselves. Sorry if this is inconvenient for you. But this is not a single-generation job. It’s humanity’s job. (...) We’re asking adults to step up alongside us … today, so many of our parents are busy discussing whether our grades are good, or a new diet or the Game of Thrones finale – whilst the planet burns…". Como escrevi anteriormente, a crise climática é apenas um dos componentes da catástrofe ambiental em curso, que, por sua vez, está interligada com as crises social e económica. Ainda assim, a aparente falta de empatia de muitos adultos em relação ao clamor dos mais jovens (os seus filhos, os seus netos...) deixa-me preocupado e pessimista quanto à possibilidade de tomarmos colectivamente um rumo que não nos conduza ao colapso.
O impacto desta jornada também não teve a visibilidade da anterior (15 Mar), com os media mais 'ocupados' com as eleições, a demissão da May, etc.(*). A próxima mobilização - uma greve geral mundial - está marcada para Setembro, coincidindo com a realização da cimeira do clima na ONU (23 Set) e com o 57º aniversário da publicação de 'Silent Spring' (27 Set), o influente livro de Rachel Carson. Parece-me demasiado tempo de 'pausa' para a dinâmica activista, uma vez que as crises climática e ambiental não tiram férias. Esperemos que o movimento XR tenha alguns trunfos na manga... Quanto à organização nacional, na assembleia aberta que decorreu na tarde de 6ªf no jardim de S. Bento (com uma participação reduzida), senti os jovens bastante cansados (o que é compreensível), tendo admitido que precisam de ajuda de outros colectivos para continuar a organizar acções. A única decisão tomada foi promover reuniões de movimentos para preparar o protesto de Setembro. Para já e segundo esta notícia, os sindicatos nacionais não parecem favoráveis a uma eventual acção conjunta...
(* Excepção feita ao Público que disponibilizou uma série de artigos dedicados à greve no suplemento P3: 
https://www.publico.pt/2019/05/24/p3/reportagem/a-luta-climatica-estudantil-voltou-as-ruas-de-olhos-postos-nas-eleicoes-europeias-1874049
https://www.publico.pt/2019/05/24/p3/noticia/escola-atl-casa-universidade-trabalho-preciso-levar-sofas-rua-1874068
https://www.publico.pt/2019/05/24/p3/noticia/a-luta-dos-estudantes-por-justica-climatica-pode-ser-um-novo-maio-de-68-1874030
https://www.publico.pt/2019/05/24/p3/noticia/parents-future-responsabilidade-adultos-jovens-tambem-agir-1873971
https://www.publico.pt/2019/05/24/p3/noticia/um-pai-e-uma-filha-em-greve-isto-nao-e-uma-luta-geracional-1874013)

Quanto às eleições europeias, foram aquelas em que votei com menos convicção. A campanha a nível nacional foi lastimável (com honrosas excepções) e mostrou como o populismo, de que são acusados os novos partidos da direita, é afinal a prática dos que se dizem democráticos mas recorrem à demagogia e à politiquice, não fazendo qualquer esforço por esclarecer os potenciais eleitores sobre as questões relevantes da política europeia. E não sou o único a afirmá-lo:
https://www.jn.pt/opiniao/pedro-ivo-carvalho/interior/paulo-ataca-pedro-pedro-ataca-nuno-10917979.html 
"Não podemos queixar-nos de um logro, na medida em que, desde cedo, os partidos, sobretudo os mais representativos, assumiram que o sufrágio de domingo era o prefácio das legislativas de outubro. E que, por isso, a agenda sobre a Europa seria um apêndice da agenda sobre Portugal."
https://aventar.eu/2019/05/25/porque-vou-votar-amanha/ 
"(…) Costa ajudou a transformar as europeias num referendo ao seu governo, tanto pelas suas declaradas palavras, como pela crise que inventou para recentrar a campanha (…) uma campanha de costas voltada para a “europa” convidou os eleitores a fazerem o mesmo."
http://areiadosdias.blogspot.com/2019/05/superar-mesquinhez-do-debate-politico.html 
"(...) seria de esperar que o debate político se centrasse sobre o futuro que desejamos e as melhores estratégias para o construímos, no nosso País e no espaço europeu… Lamentavelmente não tem sido assim…"
Quanto aos resultados propriamente ditos, o rescaldo feito por políticos e media continuou a basear-se em saber quem ganhou e quem perdeu, como se de um concurso de feira se tratasse!... O facto mais significativo é que a taxa de abstenção em Portugal chegou quase aos 70% (uma das mais elevadas), o que está em linha com a (falta de) qualidade da campanha (embora possa ter outras causas mais complexas). De resto, os maiores partidos continuam a ter apoiantes fiéis, mas outros vão ganhando terreno - casos do BE e do PAN. Felizmente, os (novos) partidos de (extrema-)direita tiveram votações residuais. No cômputo geral a nível europeu, houve alguns sinais positivos (perda de deputados nas duas grandes famílias partidárias, os sociais-democratas e os democratas-cristãos, e reforço dos partidos com agendas ecologistas) e outros nem tanto (manutenção ou reforço dos ultra-conservadores e da extrema-direita, apoiados nos resultados da França, Itália, Holanda e Reino Unido):
https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/may/28/the-guardian-view-on-europe-change-not-decay 



Finalmente, e apesar dos diversos apelos ao voto, mais ou menos apaixonados, convém lembrar que o Parlamento Europeu é uma instituição com muito pouco poder efectivo e que os órgãos da UE sofrem de um grande défice democrático pois têm sido demasiado coniventes com o poder económico e financeiro. Leia-se este artigo da revista Jacobin (conotada com o socialismo radical) que faz um retrato da (pouco democrática) estrutura europeia, que vale a pena ter em conta: https://jacobinmag.com/2019/05/european-union-parliament-elections-antidemocratic

A propósito destes temas, a minha amiga Sofia Neuparth partilhou um desabafo que ressoou em mim e que não resisto a transcrever aqui:
"ouvi muitas opiniões sobre votar e não votar nestas eleições europeias...eu desconfio é que estamos com o foco desalinhado...votemos ou não votemos ou alinhamos com a urgência de pensar-agir ou não vai haver mundo...não vai haver europa (que está senil), não vai haver américa do sul ou china ou o que seja...ou acabamos com as monoculturas, a asfixia dos oceanos, a destruição da biodiversidade, a emissão de todo o tipo de merda, ou não vai haver mundo para os tais políticos tão importantes exercerem as suas poderosas acções de poder!!! continuo a acreditar no amor e não no medo, no atravessar e não no colapsar...sei que cada umaum pensa-age de formas muito diferentes mas há que exercitar cada momento formas de ser que não sejam sobre poder, controle, hierarquia...os temporais não querem saber se somos o trump ou o zé manel da esquina...ainda ontem alguém muito próximo dizia "mas os jovens nem vão votar..." pois eu vi-os na rua lutando por um mundo onde possamos existir, como vejo os estudantes e professores no brasil ou os povos indígenas gritando...existe consciência sim! mas não mora onde onde mora a corrupção, onde mora a vaidade e os carros não sei quê e o nariz empinado de ter privado com um chefe de estado....a política deveria ser o exercício de modulação de um entre-corpos dinâmico e fluido que nutrisse, no viver-junto, uma existência existente..."


domingo, 26 de maio de 2019

Revista Flauta de Luz nº6 (Maio 2019)

Foi publicado este mês um novo número (nº6) da revista 'Flauta de Luz', que foi lançado durante o colóquio 'As Linhas da Terra' que teve lugar na Fac. Letras da Univ. Lisboa na semana passada. Para além do cuidado gráfico e estético notáveis, atributos comuns aos números anteriores, reúne textos de grande qualidade, profundidade e diversidade. A ousada linha editorial segue também as orientações dos números anteriores - como explica o seu editor, Júlio Henriques: "por um lado, a crítica ao desenvolvimento tecnológico demencial e às devastações ecológicas e antropológicas que dele decorrem; por outro, a resistência inquebrantável dos povos indígenas aos ditames da cultura dominante, em defesa do planeta e de uma visão do ser humano como parte intrínseca da natureza." Este número inclui ainda uma secção dedicada ao (geo)poeta-ensaísta Kenneth White (de origem escocesa, mas de alma atlântica errante) que foi o convidado do colóquio 'As Linhas da Terra'.
Para além da citação de Thoreau que surge na página 'web' da editora Antígona (distribuidora da revista), o mote deste número é dado também por duas outras citações, uma do antropólogo brasileiro E. Viveiros de Castro ("A minha aposta é que vamos ser nós a desaparecer primeiro. Os índios sabem fazer muito com pouco. Nós sabemos pouco com muito.") e a outra do professor de ciência política norte-americano Langdon Winner: "Todo a gente é forçada a depender e ter fé [nos 'especialistas'] em questões sobre as quais tem pouca informação ou compreensão." (excerto)
É possível consultar o índice dos artigos e poemas deste nº6 na página da Antígona citada anteriormente.
Este vosso Respigador voltou a contribuir para esta preciosidade (e ousadia) editorial com um texto (intitulado 'O asteróide somos nós') sobre uma das componentes da catástrofe ambiental em curso - a sexta extinção em massa - a partir do pensamento de autores como Elisabeth Kolbert, Richard Leakey, Ashley Dawson e Frédéric Neyrat. Seguem dois excertos do texto (cujo título foi respigado de Kolbert e Neyrat):
"Proponho-me aqui descrever e comentar algumas reflexões e reacções que têm surgido em resposta a um dos principais sintomas da crise ambiental global – a perda dramática e irreversível de biodiversidade, cuja gravidade é evidenciada pela designação deste fenómeno como «A Sexta Extinção» (em massa). Este processo é aliás um dos componentes do Antropoceno, designação proposta para a era actual com o intuito de destacar o papel dos seres humanos como nova força geológica e como principais agentes da crise ambiental global. Embora se trate na verdade de um desafio multidimensional, a crise do Antropoceno é frequentemente reduzida à sua componente climática. Não é pois de estranhar que o tópico da perda de biodiversidade não tenha a cobertura mediática e a projecção global que tem merecido o da crise climática, pese embora as suas repercussões igualmente profundas, assim como a sua interligação e génese comum."
"(...) a sexta extinção parece ter pouco de acidental ou de arbitrário, na medida em que o estado actual do conhecimento nos permite associá-la de forma inequívoca às nossas acções e que o seu grau de destrutividade resulta não só dos modelos tecnológicos e económicos adoptados pelas sociedades humanas, mas também das suas práticas culturais e visões do mundo."
O texto acabou por ganhar relevância inesperada com a publicação recente do relatório do painel das Nações Unidas para a biodiversidade e ecossistemas (IPBES), sobre o qual escrevi neste blog.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Declarar emergência ambiental

'Declarar emergência climática' tem sido uma palavra de ordem das contestações e mobilizações recentes. É evidente que a gravidade da situação assim o exige. Mas a catástrofe climática não é a única consequência da guerra económica em curso contra as pessoas, a vida e o planeta. Há todo um descalabro ambiental que resulta do estilo de vida e da prática económica de uma fracção privilegiada da humanidade. Sim, precisamos de declarar emergência climática*, mas temos de ser ainda mais ambiciosos e lutar por uma civilização ecológica** - é o futuro de todos que está em causa.
https://earthfest2019.blogspot.com/2019/05/declarar-emergencia-climatica-agora.html
** https://respigadordanet.blogspot.com/2019/03/uma-civilizacao-ecologica-para-um.html

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Emergência ambiental: decrescentistas propõem pacto de sustentabilidade e bem-estar para a Europa

Em Setembro do ano passado foi publicada uma carta, subscrita por mais de 200 académicos e dirigida às instituições europeias, em antecipação de uma conferência sobre pós-crescimento que teve lugar no Parlamento Europeu em Bruxelas.
Nessa carta, os signatários apelavam à adopção de um pacto de sustentabilidade e bem-estar (como alternativa ao Pacto de Estabilidade e Crescimento da UE) para promover a transição para uma economia baseada em indicadores ambientais e sociais (como alternativa ao PIB), e que não fosse refém do crescimento.
Essa carta foi transformada numa petição que já angariou mais de 90.000 subscritores (Versão PT).
Aproveitando a aproximação da data das eleições europeias e no dia da cimeira de líderes europeus (9 de Maio, Dia da Europa), os proponentes daquela carta publicaram uma versão actualizada, subscrita por muitos dos signatários da carta original (onde se incluem nomes conhecidos dos decrescentistas: Giorgos Kallis, Paul Ariès, Vincent Liegey, Jason Hickel, Kate Raworth, Giacomo d’Alisa, Tim Jackson), mas também por líderes da sociedade civil e autarcas, especialistas em mudança sistémica (membros do ‘European Environmental Bureau’) (uma versão PT está disponível aqui).
A nova missiva propõe três grandes mudanças sistémicas para lidar com a crise tríplice da mudança climática, da extinção de biodiversidade e da desigualdade, apoiadas em listas de exigências concretas dirigidas aos decisores políticos locais, nacionais e europeus:
- Destronar o ‘rei PIB’ e coroar a ‘rainha Bem-Estar’: abandonar de vez a fixação no crescimento económico e recentrar a governança no bem-estar humano e ecológico, promovendo a prosperidade sem crescimento e transformando o infame PEC num Pacto de Sustentabilidade e Bem-Estar.
- Passar dos ‘paraísos fiscais’ para poucos para a redistribuição para muitos: taxando mais a riqueza e menos o trabalho, e parando de subsidiar e taxando os poluidores.
- Produtos eficientes são bons, soluções suficientes são melhores ainda: complementar as políticas de eficiência com a promoção da suficiência, da durabilidade e da circularidade (‘zero waste’), para evitar a exclusão social e cultural e favorecer a sustentabilidade.

Os signatários afirmam que as iniciativas internacionais (como o Acordo de Paris ou os Objectivos da Desenvolvimento Sustentável da ONU) e as medidas propostas por governos nacionais são insuficientes para resolver os tremendos desafios sociais e ambientais, citando um artigo muito recente publicado na revista ‘Science’ onde os autores (22 especialistas mundiais das ciências da terra e do clima) corroboram esta afirmação e apoiam os protestos dos jovens e as suas reivindicações.
Excertos: “The current measures for protecting the climate and biosphere are deeply inadequate. (…) Many social, technological, and nature-based solutions already exist. The young protesters rightfully demand that these solutions be used to achieve a sustainable society. (…) Policies are needed to make climate-friendly and sustainable action simple and cost-effective and make climate-damaging action unattractive and expensive. (…) A socially fair distribution of the costs and benefits of climate action will require deliberate attention, but it is both possible and essential. (…) Only if humanity acts quickly and resolutely can we limit global warming, halt the ongoing mass extinction of animal and plant species, and preserve the natural basis for the food supply and well-being of present and future generations. This is what the young people want to achieve. They deserve our respect and full support.”
Finalmente, os signatários da nova carta defendem que só uma transição para uma economia pós-crescentista que dê prioridade aos limites ecológicos, ao bem-estar humano e à justiça social e intergeracional, garantirá a mitigação das crises social e ambiental globais.

Recentemente, têm surgido outras propostas oriundas de diversos sectores da sociedade civil e da esquerda política, duas das quais citei num post anterior:
Climate Action Call’ (grupos e organizações da sociedade civil europeia):
Climate Emergency Manifesto’ (grupo GUE/NGL do Parlamento Europeu):
No entanto, apenas o segundo documento faz referência ao modelo económico, pondo em causa a sua dependência do crescimento permanente e da mercantilização.

Concluo com uma referência a iniciativas provenientes de sectores da Igreja Católica que têm também divulgado algumas propostas abrangentes para enfrentar as crises económica, social e ecológica interligadas, na sequência do desafio lançado pelo Papa Francisco com a sua encíclica ‘Laudato Si’ de 2015. Em particular, o relatório ‘The climate urgency: setting sail for a new paradigm’ da plataforma internacional de organizações sociais católicas CIDSE, publicado em Setembro de 2018, faz propostas muito concretas de transições profundas nos sectores da produção energética e agroalimentar. Os autores do relatório apelam também à rejeição do imperativo do crescimento destrutivo pelo actual sistema político e económico e a uma mudança cultural para uma sociedade baseada na suficiência e em formas de democracia participativa: “We need a different system as a whole. This requires new narratives, a different cultural approach – putting sufficiency at its heart – and of course, transforming our political and economic systems – away from the destructive growth imperative that lies at the heart of the current system. CIDSE’s arguments and vision for a new paradigm are based on values such as integral ecology, justice, and good governance, as also defined by Catholic Social Teaching and in the Papal Encyclical Laudato SI’. Equity, Common But Differentiated Responsibilities, as well as communities’ involvement and participation in decision-making processes are some of the principles that must lie at the heart of the change needed.”
O Papa Francisco acabou de publicar uma carta dirigida a jovens economistas e empreendedores desafiando-os a construir um pacto global para uma nova economia “que dá vida e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a destrói”. Nesta missiva o Papa convida os jovens a participar num encontro que decorrerá em Março de 2020 (‘Economy of Francesco’) e declara que “tudo está intimamente conectado e a salvaguarda do ambiente não pode ser separada da justiça para com os pobres e da solução dos problemas estruturais da economia mundial. É necessário, portanto, corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das futuras gerações.”

Uma vez mais, o paradigma hegemónico do crescimento é posto em causa e parece estar assim a formar-se um consenso alargado sobre a necessidade imperativa de mudar o sistema económico para a construção de sociedades humanas sustentáveis. Agora só precisamos de definir como se porão em prática as medidas concretas que nos coloquem no caminho certo e quem as implementará.

sábado, 18 de maio de 2019

Eurovisão em Israel não é apenas questão política, é lixo travestido de entretenimento

Têm surgido algumas discussões sobre o facto da realização do festival da Eurovisão em Israel ser ou não ser uma questão política:
https://www.dw.com/en/opinion-should-the-eurovision-song-contest-be-politicized/a-48781995
Por mim, não tenho dúvida que tem um carácter político, com Israel a querer branquear as suas práticas políticas agressivas e ilegais que atentam contra os direitos humanos e o direito internacional. Atente-se às diversas polémicas que surgiram à volta da realização do certame e aos apelos de boicote:
https://www.dw.com/en/eurovision-in-israel-tel-aviv-caught-between-partying-and-politics/a-48722781
https://www.bbc.com/mundo/noticias-48316759
http://publico.pt/1869540
https://rr.sapo.pt/noticia/139309/tirem-a-eurovisao-de-israel-o-apelo-de-peter-gabriel-roger-waters-e-outros-artistas-a-bbc
Em Portugal, também houve apelos a que o representante nacional não actuasse em Israel:
http://publico.pt/1867154
e o Expresso divulgou um vídeo a explicar as razões do apelo ao boicote:
https://www.msn.com/pt-pt/video/ver/pediram-a-conan-os%C3%ADris-para-n%C3%A3o-atuar-na-eurovis%C3%A3o-sabe-porqu%C3%AA/vi-AAB7LXK
No entanto, mais do que tudo, a Eurovisão é um evento comercial de entretenimento que mostra como esta indústria se vergou ao lucro, sem grandes preocupações éticas ou estéticas (ou sombra de decência). Basta considerar o facto de nenhum dos 41 concorrentes ter boicotado o evento, ou o facto da pretensa 'rainha do pop' ter aceite actuar no evento (em troca de uma quantia choruda!), embora tenha havido vários pedidos para que não actuasse e a organização do certame tenha exigido que a cantora não fizesse quaisquer comentários sobre as polémicas*.
Mas o que é muito menos discutido e é aquilo que salta à vista de quem tenha um mínimo de sensibilidade musical ou estética, é a manifesta falta de qualidade das canções (quase nenhuma cantada na língua do país de origem...) e o gritante mau gosto e vulgaridade da maioria das 'performances', que deveriam envergonhar os cidadãos dos países representados. Todavia, até o jornalista da DW, autor da notícia citada no início, se refere aos participantes como 'fascinating pop singers' e ao evento como 'musical extravaganza'! Podem invocar que se trata apenas de música pop festiva e inofensiva, sem quaisquer pretensões de erudição, mas isso não justifica o espectáculo degradante e aberrante de hedonismo acéfalo em que se tornou aquele evento e mostra o estado calamitoso a que chegou a cultura musical popular europeia. Deviam chamar ao festival da Eurovisão aquilo que ele é realmente: Eurotrash! O lema desta edição, 'Dare to dream', é o eufemismo perfeito para tentar esconder o verdadeiro pesadelo audiovisual em que se converteu.
* Já depois de publicar este post soube que Madonna afinal causou algum incómodo ao governo israelita com a sua actuação - menos mal:
https://www.dn.pt/cultura/interior/eurovisao-ministra-israelita-critica-uso-de-bandeira-palestiniana-em-atuacao-de-madonna-10916479.html
Mas nem todos ficaram impressionados com a prestação da cantora:
https://www.theguardian.com/tv-and-radio/2019/may/19/madonna-was-excruciating-eurovision-2019

Planeta em chamas: uma imagem que vale 1000 palavras

Foto de campo de golfe ('Beacon Rock Golf Course') junto à fronteira entre os estados norte-americanos do Oregon e Washington, durante um incêndio de grandes dimensões ('Eagle Creek fire') em 2017. Fonte: Kristi McCluer/Reuters.
Segundo esta entrevista à autora da fotografia publicada no jornal The Guardian, a imagem não pretendia ser uma metáfora da atitude de muitos decisores políticos e gente privilegiada em relação à mudança climática (o fogo retratado foi provocado acidentalmente), mas acabou por tornar-se simbólica da negação em que muitas pessoas se colocaram perante o descalabro ambiental em curso e da nossa incapacidade colectiva de o enfrentar e resolver. Aquela imagem acabou por ser também premonitória dos incêndios que devastariam vastas áreas do estado da Califórnia no ano seguinte (2018), esses sim, claramente intensificados pelas mudanças climáticas.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

A mobilização dos jovens pelo futuro de todos

Na próxima 6ª-feira, dia 24 Maio, terá lugar a segunda mobilização mundial de jovens estudantes, inspirada pela activista sueca Greta Thunberg, para exigir acção urgente e eficaz no sentido da resolução da crise climática e ambiental global:
Iniciativa internacional: https://www.fridaysforfuture.org/

A primeira greve (15 Março) terá mobilizado mais de um milhão de jovens globalmente, cerca de 20 mil em Portugal, tendo contribuído para trazer o tema para o topo da actualidade politica e mediática em todo o mundo e para as sucessivas declarações de emergência climática em muitas cidades e alguns países:

No entanto, aquelas declarações não têm sido acompanhadas de medidas concretas para mitigar as alterações climáticas e os governos não fizeram da resolução da crise climática a sua prioridade, como reivindicado pelos jovens. As suas exigências vão mais longe e pedem uma "mudança radical de paradigma sócio-económico e a contenção da destruição das condições de habitabilidade do planeta (para humanos e não humanos) por interesses económicos sobrepostos a interesses humanos e naturais."

A Rede para o Decrescimento, da qual faço parte, apoia esta mobilização e emitiu um comunicado em que explica as razões para o seu apoio e destaca algumas das limitações ou insuficiências das reivindicações dos jovens: https://drive.google.com/open?id=1oAB10B3ZG8sRCJx-eiwUuNEFfzecsy9c

O movimento de contestação tem reunido apoios de diferentes sectores da sociedade. Em Portugal, está a ser apoiado por diversas organizações da sociedade civil:
por grupos de pais:
e de professores:

Internacionalmente, recebeu um apoio de peso de cientistas internacionais que publicaram uma carta de apreço na conceituada revista 'Science' e estão a promover um movimento internacional em solidariedade com as lutas dos estudantes:

O secretário geral da ONU, António Guterres, também veio dar razão ao protesto continuado dos jovens, tendo afirmado há poucos dias que as mudanças climáticas estão a acontecer mais depressa do que as acções para as combater devido ao esmorecer da vontade política :

Divulguem e/ou apoiem esta iniciativa - é o futuro de todos que está em causa.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

A emergência ambiental e as eleições europeias

Apesar das recentes declarações de emergência climática pelos parlamentos britânico e irlandês, o tema da crise ambiental global não é necessariamente um tema prioritário nos debates relacionados com as eleições europeias do próximo dia 26 Maio. No entanto, de acordo com uma sondagem divulgada pela agência DW, os europeus consideram a crise ambiental como o segundo maior desafio que a Europa enfrenta a seguir à questão da imigração, estando em 1º lugar para os alemães. A jovem Greta Thunberg também não tem dúvidas e propôs uma lista dos cinco temas prioritários para o futuro da Europa: "1. Climate and ecological breakdown; 2. Climate and ecological breakdown; 3. Climate and ecological breakdown; 4. Climate and ecological breakdown; 5. Climate and ecological breakdown; 6. Climate and ecological breakdown"!
É importante destacar a nuance de ter incluído o colapso ambiental e não apenas o colapso climático na sua lista. É que a crise ambiental é bem mais abrangente do que a sua componente climática, como se ficou a saber com a recente divulgação do relatório do painel internacional para a biodiversidade e os ecossistemas (IPBES).

Entretanto, a declaração de emergência climática está a revelar-se viral - a última região a fazê-lo foi o cantão de Zurique - embora haja quem se interrogue se não se trata apenas de mera retórica política:
https://climateemergencydeclaration.org/switzerland-climate-emergency-declarations-critisised-for-being-political-rhetoric/
Portugal também não quer ficar atrás, tendo sido apresentadas na AR duas propostas pelo BE e o PAN:
https://www.esquerda.net/artigo/governo-deve-declarar-estado-de-urgencia-climatica-e-agir-em-conformidade/61298
https://magg.pt/2019/05/12/sera-que-portugal-vai-declarar-estado-de-emergencia-climatica/
No entanto, o ministro do ambiente já se opôs à medida por considerá-la desnecessária, defendendo que Portugal já faz mais do que os países que aprovaram as declarações, que nem sequer são vinculativas:
https://ionline.sapo.pt/658278?source=social
O BE ripostou, e bem, listando as várias realidades (as centrais térmicas a carvão de Sines e do Pego; a agricultura intensiva e superintensiva no Alqueva; os furos para prospeção de petróleo e gás na Batalha e em Pombal; os projectos de mineração de lítio de grandes multinacionais sem quaisquer regras; as intervenções como as que estão em curso no Sado ou no Porto de Leixões; a produção e exportação de milhares de porcos para a China; a negociação para o aumento da importação de Gás de Fracking) que põem em causa as afirmações falaciosas do ministro: https://www.esquerda.net/artigo/assumir-emergencia-climatica-e-um-compromisso-com-o-futuro/61346

Antes do cimeira europeia da semana passada na Roménia (9 Mai), tinha sido divulgado um apelo conjunto para a acção climática dirigido aos líderes europeus por parte de dezenas de grupos e organizações da sociedade civil muito diversos - 'Climate Action Call':
Segundo o comunicado da Zero, os signatários do apelo "exigem que os líderes, atuais e futuramente eleitos, da UE respondam à mobilização cívica, comprometendo-se publicamente a tornar a ação climática uma prioridade durante o debate sobre o futuro da Europa e nos debates eleitorais."
As cinco prioridades de acção propostas ao novo Parlamento Europeu e à Comissão, bem como a todos os governos dos Estados-Membros da UE são:
- Compromisso de acelerar as acções necessárias para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa até 2030, e de atingir o objetivo de emissões líquidas nulas, logo que possível.
- Descontinuar o uso de combustíveis fósseis e fornecer um apoio forte à eficiência energética, às energias renováveis e aos cortes de emissões fora do sector de energia.
- Salvaguardar uma transição justa e garantir que a UE reforce o seu apoio aos países em desenvolvimento para a mitigação e adaptação às alterações climáticas.
- Aumentar os esforços para implantar a economia circular e aumentar a eficiência dos recursos.
- Reconhecer a protecção da biodiversidade e a recuperação de ecossistemas como um componente crucial da acção climática.
Uma vez mais, a sugestão de mudanças de fundo do sistema económico e financeiro fica de fora, tornando estas propostas pouco transformadoras.

Aproveito finalmente para destacar o Manifesto de Emergência Climática do grupo GUE/NGL do PE, divulgado em Abril:
https://www.esquerda.net/artigo/manifesto-da-emergencia-climatica-lancado-em-estrasburgo/60860
https://www.guengl.eu/content/uploads/2019/04/Manifesto_Climate_web.pdf
É interessante constatar que entre as medidas apresentadas (semelhantes às do 'Climate Action Call') foi incluído um questionamento do modelo económico baseado no crescimento (pp.7-8), embora este detalhe não conste da notícia do site do BE.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

A toxicidade da 'cultura' norte-americana

Chegou-me um texto publicado no site 'Outras Palavras' (link mais abaixo) que cita estudos da Associação Americana de Psicologia a propósito do lançamento de mais um  filme da saga dos super-heróis da Marvel/DC-Comics ('Vingadores: Endgame') e do modelo de (hiper)masculinidade que difunde. 
Já não chegava a toxicidade da propaganda feita por todos os media que promove o lixo (pretensamente) cinematográfico da grande máquina hollywoodesca sem que ninguém se indigne - todos os jornais nacionais publicaram artigos sobre o filme, tecendo elogios e enaltecendo o êxito de bilheteira, sem que as pretensas notícias fossem assinaladas como 'conteúdo patrocinado'. Ou as campanhas de merchandising das corporações de fast-food e bebidas açucaradas que intoxicam os corpos dos jovens. Com efeito, o impacto tóxico é ampliado ainda mais pelos efeitos psicológicos desastrosos dos conteúdos visuais e psico-sociais nada subtis desta indústria letal norte-americana. A publicidade a perfumes, desodorizantes, etc., também ajuda à festa, promovendo os estereótipos mais simplistas. É trágico demais para ser verdade!... E depois ainda se admiram com os assédios, a violência nas relações e a misoginia... Vejam-se as recentes barbaridades praticadas nas Queimas das Fitas, que se vêm juntar às práticas humilhantes e sexistas das praxes*, que, por sua vez, são toleradas pelas universidades, mas também pela sociedade e pelas famílias, apesar das declarações de indignação ou de boas intenções de personalidades de diversos sectores. Claro que não posso afirmar que existe uma relação directa de causa-efeito entre os filmes de hollywood e o sexismo dos jovens portugueses, mas a normalização e promoção social daqueles tem certamente influência no tipo de valores e nas práticas de socialização dos grupos mais influenciáveis e vulneráveis. 

Toxicidade da cultura da hiper-masculinidade 'made in USA', Inês Castilho (Mai 2019):
"Marcada pela antifeminilidade e violência, a masculinidade tradicional afeta mental e psiquicamente os meninos, demonstra novo estudo. Que leva a indústria cultural a estimular uma hipermasculinidade, como em “Vingadores”? (...) [O filme] tomou de assalto o imaginário de crianças e jovens. E assaltou também a alimentação, numa sinistra ação de marketing Disney-McDonald’s que brinda o consumo de mac lanches com bonecos vingadores em miniatura. Colonização de corpos e mentes, transformados em fonte de lucros inimagináveis. (…) Mais de 40 anos de pesquisas mostram que a masculinidade tradicional é psicologicamente prejudicial e que a socialização dos meninos para reprimir emoções causa danos que repercutem interna e externamente, diz a APA (Assoc. Americana de Psicologia)."

Seguem links para um post e um video sobre o mesmo tema:
'Toxic Masculinity and American Culture', Emily Kirwin (2017):
“Too often we define masculine strength by who can blow away the most people, who can flex the most muscle, who can impose their will and inflict the most damage. But this cheapens the real definition of strength and toughness. (…)  we should respect the toughness and strength of men who challenge the myth of that being a real man requires putting up a false front, disrespecting others, and engaging in violent and self-destructing behavior.” Jason Katz
'Toxic Masculinity in Boys is Fueling an Epidemic of Loneliness' (NBC News 2018): https://youtu.be/RbX76n6A160

* Ver p.ex. uma notícia recente, uma entrevista e um artigo de opinião:
https://www.jn.pt/local/noticias/porto/porto/interior/excessos-e-sexismo-nas-noites-da-queima-do-porto-10877625.html
https://observador.pt/especiais/nao-facas-a-cadeira-dele-sexismo-assedio-discriminacao-e-racismo-nas-universidades-portuguesas/
https://www.publico.pt/2014/01/27/p3/cronica/o-problema-das-praxes-nao-tem-nada-a-ver-com-praxes-1819031

terça-feira, 7 de maio de 2019

Relatório IPBES – a natureza em vias de extinção

[Nota: o subtítulo original deste post - 'um retrato esmagador do estado da biodiversidade e dos ecossistemas planetários' - foi substituído a 30 Mai]
O relatório da plataforma intergovernamental para a biodiversidade e os ecossistemas (IPBES – ‘Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services’) foi ontem (6 Mai) divulgado na sede da UNESCO em Paris e demonstra de forma categórica aquilo que já sabíamos - estamos a destruir, a um ritmo acelerado e sem precedentes, o mundo natural do qual fazemos parte e do qual dependemos: https://www.ipbes.net/news/Media-Release-Global-Assessment
O IPBES, conhecido como ‘o IPCC para a biodiversidade’, é uma plataforma criada em 2012 e que reúne representantes dos governos de mais de 130 países, sob os auspícios das Nações Unidas, para reflectir e propor medidas para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade e dos ecossistemas. Os seus membros estiveram reunidos em Paris entre 29 Abril e 4 Maio para ratificar o relatório, preparado durante três anos por 150 peritos de 50 países, sendo o primeiro documento desta envergadura a nível internacional desde o ‘Millenium Ecossystem Assessment’ publicado em 2005. As manchetes escolhidas para encabeçar o comunicado de imprensa são bem expressivas: Declínio perigoso da Natureza ‘sem precedentes’; Taxas de extinção de espécies ‘em aceleração’; Resposta global actual insuficiente; Mudanças transformadoras serão necessárias para restaurar e proteger a natureza; Oposição por parte de ‘interesses instalados’ terá de ser superada para o bem público; Um milhão de espécies ameaçadas de extinção!
A principal mensagem do relatório é enfatizada num artigo no The Guardian assinado pelo coordenador do IPBES (Richard Watson) onde defende que a perda de biodiversidade e de ecossistemas induzida pelas actividades humanas é tão devastadora como as alterações climáticas e que os dois desafios não podem ser resolvidos isoladamente. Watson lembra ainda que os avisos sobre a situação calamitosa descrita no relatório já tinham sido dados por ambientalistas, cientistas e povos indígenas, e admite que governantes e empresários, ou não ligaram e não fizeram nada, ou se fizeram alguma coisa foi insuficiente.

O diagnóstico traçado pelo relatório é exaustivo e desolador: um milhão de espécies de animais e plantas estão ameaçadas de extinção num prazo de poucas décadas; a abundância de espécies nativas nos habitats terrestres desceu pelo menos 20% desde 1900; mais de 40% dos anfíbios, 33% dos mamíferos marinhos e dos corais estão em risco de extinção; as taxas de extinção actuais são dezenas a centenas de vezes superiores ao seu valor nos últimos 10 milhões de anos; 75% dos ambientes terrestres e 66% dos ambientes marinhos foram alterados significativamente pelas actividades humanas, com a notável excepção das áreas ocupadas ou geridas por povos indígenas ou comunidades locais; mais de um terço da superfície terrestre e quase três quartos dos recursos de água doce foram convertidos para a produção agrícola e animal; a produtividade global dos solos caiu 23%, não só devido ao empobrecimento em nutrientes resultante da agricultura intensiva como também devido à perda de insectos que desempenham um papel crucial na polinização; um terço das reservas marinhas de peixe estão a pescar-se a níveis insustentáveis e outros 60% no limite máximo da sustentabilidade. É possível consultar uma súmula das principais estatísticas do relatório em: https://www.ipbes.net/news/Media-Release-Global-Assessment#_By_the_Numbers
Apesar de não ‘dourarem a pílula’, as divulgações do relatório não recorrem à expressão ‘Sexta extinção em massa’ que tem sido muito usada para descrever a extensão e gravidade dos processos de perda de biodiversidade em curso, com destaque para o livro da jornalista Elizabeth Kolbert (‘A sexta extinção’) publicado este ano em Portugal*. Outro aspecto que me parece relevante é que continua patente neste relatório uma visão antropocêntrica do mundo, que se manifesta nomeadamente na sobrevalorização dos efeitos da destruição da natureza no bem-estar e sobrevivência humanos – como se a destruição de espécies e ecossistemas fosse um mero efeito colateral indesejado.

Uma das conclusões importantes do relatório é que a mudança climática não é a principal causa para a perda de biodiversidade e destruição dos ecossistemas, cujos principais determinantes são a usurpação de vastas áreas terrestres e marinhas para uso humano (desflorestação para agricultura e pecuária, expansão da ocupação humana, etc.) e a exploração directa dos organismos, para além da introdução de espécies invasoras. Um corolário igualmente importante desta constatação é que as crises climática e de perda de biodiversidade estão ligadas e fazem parte de uma crise ecológica mais abrangente, que, por sua vez, está ligada às outras crises globais (social, económica, ética) e é uma consequência de um modelo civilizacional hegemónico que colocou os interesses de muito poucos à frente do bem-estar de todos – humanos e não-humanos, presentes e futuros. E, como não me canso de relembrar, esse modelo civilizacional globalizado está, por sua vez, apoiado num modelo de desenvolvimento sócio-económico dependente do crescimento permanente da produção e consumo, com o consequente esgotamento de recursos e destruição ambiental generalizada, como veio reforçar este novo relatório. Curiosamente, a questão da insustentabilidade do sistema financeiro e económico e da sua dependência do crescimento surge apenas timidamente no final do comunicado de imprensa: “a key element of more sustainable future policies is the evolution of global financial and economic systems to build a global sustainable economy, steering away from the current limited paradigm of economic growth”. Convém lembrar que a agenda dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU inclui o crescimento no seu oitavo objectivo: ‘emprego digno e crescimento económico’.
O outro aspecto que surge de forma indirecta no relatório é o facto de os responsáveis pela destruição em curso representarem apenas uma parte minoritária da humanidade que vive à custa da desigualdade, da miséria e do sofrimento da grande maioria dos seres humanos e da extinção de muitos outros seres vivos e de ecossistemas inteiros. Portanto, quando se diz que é o ‘nosso’ apetite insaciável por recursos e consumo que provocou a actual crise ecológica é imprescindível precisar quem é esse ‘nós’: as populações privilegiadas dos países ditos desenvolvidos. De frisar que o relatório conclui que são afinal as comunidades indígenas, muitas vezes ainda consideradas como primitivas ou subdesenvolvidas, que gerem de forma mais sustentável os seus territórios. Uma novidade interessante do relatório foi aliás que, para além dos 15000 artigos científicos e relatórios oficiais analisados, também foram considerados os saberes e práticas de povos indígenas e de comunidades locais.
Finalmente o relatório aponta para a necessidade de serem tomadas medidas que terão de ser ambiciosas e imediatas, já que as simulações realizadas mostraram um agravamento dos indicadores em todos os cenários considerados, excepto naquele que prevê mudanças profundas e abrangentes nas políticas globais. A expressão usada é ‘mudanças transformadoras’, com a qual querem significar uma reorganização radical e sistémica no âmbito tecnológico, económico e social, mas também ao nível dos paradigmas, objectivos e valores. Admitem que, pela sua natureza, estas mudanças terão forte oposição por parte dos interesses instalados que querem manter o statu quo a qualquer preço, mas que o bem comum terá de prevalecer e vencer essas resistências. A pressão continuada e o envolvimento da sociedade civil serão cruciais para se conseguir minorar ou reverter o mal que já foi feito.

* Escrevi um artigo sobre a sexta extinção em massa que intitulei ‘O asteróide somos nós’ para o número 6 da revista Flauta deLuz (2019), que será lançado no dia 21 Maio na Faculdade de Letras da Univ. de Lisboa (integrado no Colóquio ‘As Linhas da Terra’).

Seguem-se links para notícias ou artigos de opinião sobre o relatório: