terça-feira, 7 de maio de 2019

Relatório IPBES – a natureza em vias de extinção

[Nota: o subtítulo original deste post - 'um retrato esmagador do estado da biodiversidade e dos ecossistemas planetários' - foi substituído a 30 Mai]
O relatório da plataforma intergovernamental para a biodiversidade e os ecossistemas (IPBES – ‘Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services’) foi ontem (6 Mai) divulgado na sede da UNESCO em Paris e demonstra de forma categórica aquilo que já sabíamos - estamos a destruir, a um ritmo acelerado e sem precedentes, o mundo natural do qual fazemos parte e do qual dependemos: https://www.ipbes.net/news/Media-Release-Global-Assessment
O IPBES, conhecido como ‘o IPCC para a biodiversidade’, é uma plataforma criada em 2012 e que reúne representantes dos governos de mais de 130 países, sob os auspícios das Nações Unidas, para reflectir e propor medidas para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade e dos ecossistemas. Os seus membros estiveram reunidos em Paris entre 29 Abril e 4 Maio para ratificar o relatório, preparado durante três anos por 150 peritos de 50 países, sendo o primeiro documento desta envergadura a nível internacional desde o ‘Millenium Ecossystem Assessment’ publicado em 2005. As manchetes escolhidas para encabeçar o comunicado de imprensa são bem expressivas: Declínio perigoso da Natureza ‘sem precedentes’; Taxas de extinção de espécies ‘em aceleração’; Resposta global actual insuficiente; Mudanças transformadoras serão necessárias para restaurar e proteger a natureza; Oposição por parte de ‘interesses instalados’ terá de ser superada para o bem público; Um milhão de espécies ameaçadas de extinção!
A principal mensagem do relatório é enfatizada num artigo no The Guardian assinado pelo coordenador do IPBES (Richard Watson) onde defende que a perda de biodiversidade e de ecossistemas induzida pelas actividades humanas é tão devastadora como as alterações climáticas e que os dois desafios não podem ser resolvidos isoladamente. Watson lembra ainda que os avisos sobre a situação calamitosa descrita no relatório já tinham sido dados por ambientalistas, cientistas e povos indígenas, e admite que governantes e empresários, ou não ligaram e não fizeram nada, ou se fizeram alguma coisa foi insuficiente.

O diagnóstico traçado pelo relatório é exaustivo e desolador: um milhão de espécies de animais e plantas estão ameaçadas de extinção num prazo de poucas décadas; a abundância de espécies nativas nos habitats terrestres desceu pelo menos 20% desde 1900; mais de 40% dos anfíbios, 33% dos mamíferos marinhos e dos corais estão em risco de extinção; as taxas de extinção actuais são dezenas a centenas de vezes superiores ao seu valor nos últimos 10 milhões de anos; 75% dos ambientes terrestres e 66% dos ambientes marinhos foram alterados significativamente pelas actividades humanas, com a notável excepção das áreas ocupadas ou geridas por povos indígenas ou comunidades locais; mais de um terço da superfície terrestre e quase três quartos dos recursos de água doce foram convertidos para a produção agrícola e animal; a produtividade global dos solos caiu 23%, não só devido ao empobrecimento em nutrientes resultante da agricultura intensiva como também devido à perda de insectos que desempenham um papel crucial na polinização; um terço das reservas marinhas de peixe estão a pescar-se a níveis insustentáveis e outros 60% no limite máximo da sustentabilidade. É possível consultar uma súmula das principais estatísticas do relatório em: https://www.ipbes.net/news/Media-Release-Global-Assessment#_By_the_Numbers
Apesar de não ‘dourarem a pílula’, as divulgações do relatório não recorrem à expressão ‘Sexta extinção em massa’ que tem sido muito usada para descrever a extensão e gravidade dos processos de perda de biodiversidade em curso, com destaque para o livro da jornalista Elizabeth Kolbert (‘A sexta extinção’) publicado este ano em Portugal*. Outro aspecto que me parece relevante é que continua patente neste relatório uma visão antropocêntrica do mundo, que se manifesta nomeadamente na sobrevalorização dos efeitos da destruição da natureza no bem-estar e sobrevivência humanos – como se a destruição de espécies e ecossistemas fosse um mero efeito colateral indesejado.

Uma das conclusões importantes do relatório é que a mudança climática não é a principal causa para a perda de biodiversidade e destruição dos ecossistemas, cujos principais determinantes são a usurpação de vastas áreas terrestres e marinhas para uso humano (desflorestação para agricultura e pecuária, expansão da ocupação humana, etc.) e a exploração directa dos organismos, para além da introdução de espécies invasoras. Um corolário igualmente importante desta constatação é que as crises climática e de perda de biodiversidade estão ligadas e fazem parte de uma crise ecológica mais abrangente, que, por sua vez, está ligada às outras crises globais (social, económica, ética) e é uma consequência de um modelo civilizacional hegemónico que colocou os interesses de muito poucos à frente do bem-estar de todos – humanos e não-humanos, presentes e futuros. E, como não me canso de relembrar, esse modelo civilizacional globalizado está, por sua vez, apoiado num modelo de desenvolvimento sócio-económico dependente do crescimento permanente da produção e consumo, com o consequente esgotamento de recursos e destruição ambiental generalizada, como veio reforçar este novo relatório. Curiosamente, a questão da insustentabilidade do sistema financeiro e económico e da sua dependência do crescimento surge apenas timidamente no final do comunicado de imprensa: “a key element of more sustainable future policies is the evolution of global financial and economic systems to build a global sustainable economy, steering away from the current limited paradigm of economic growth”. Convém lembrar que a agenda dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU inclui o crescimento no seu oitavo objectivo: ‘emprego digno e crescimento económico’.
O outro aspecto que surge de forma indirecta no relatório é o facto de os responsáveis pela destruição em curso representarem apenas uma parte minoritária da humanidade que vive à custa da desigualdade, da miséria e do sofrimento da grande maioria dos seres humanos e da extinção de muitos outros seres vivos e de ecossistemas inteiros. Portanto, quando se diz que é o ‘nosso’ apetite insaciável por recursos e consumo que provocou a actual crise ecológica é imprescindível precisar quem é esse ‘nós’: as populações privilegiadas dos países ditos desenvolvidos. De frisar que o relatório conclui que são afinal as comunidades indígenas, muitas vezes ainda consideradas como primitivas ou subdesenvolvidas, que gerem de forma mais sustentável os seus territórios. Uma novidade interessante do relatório foi aliás que, para além dos 15000 artigos científicos e relatórios oficiais analisados, também foram considerados os saberes e práticas de povos indígenas e de comunidades locais.
Finalmente o relatório aponta para a necessidade de serem tomadas medidas que terão de ser ambiciosas e imediatas, já que as simulações realizadas mostraram um agravamento dos indicadores em todos os cenários considerados, excepto naquele que prevê mudanças profundas e abrangentes nas políticas globais. A expressão usada é ‘mudanças transformadoras’, com a qual querem significar uma reorganização radical e sistémica no âmbito tecnológico, económico e social, mas também ao nível dos paradigmas, objectivos e valores. Admitem que, pela sua natureza, estas mudanças terão forte oposição por parte dos interesses instalados que querem manter o statu quo a qualquer preço, mas que o bem comum terá de prevalecer e vencer essas resistências. A pressão continuada e o envolvimento da sociedade civil serão cruciais para se conseguir minorar ou reverter o mal que já foi feito.

* Escrevi um artigo sobre a sexta extinção em massa que intitulei ‘O asteróide somos nós’ para o número 6 da revista Flauta deLuz (2019), que será lançado no dia 21 Maio na Faculdade de Letras da Univ. de Lisboa (integrado no Colóquio ‘As Linhas da Terra’).

Seguem-se links para notícias ou artigos de opinião sobre o relatório:

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