quinta-feira, 30 de março de 2023

Respigos de Março (2)

Nota: Esta é a 2ª parte de um post que inaugura uma nova secção de apontamentos das pesquisas deste Respigador, com chamadas para acontecimentos, artigos, entrevistas, livros ou vídeos com que me vou cruzando e que me pareceram merecedores de destaque e partilha. A 1ª parte está aqui e a 3ª aqui.

Ophris tenthredinifera (Fanhões)
Para ilustrar uma perspectiva sobre a relação entre activismo climático e mudança individual distinta daquela que é preconizada p.ex. por Emmanuel Cappelin (ver 1ª parte deste post), recorro a uma outra entrevista recente do jornal Público ao filósofo Gilles Lipovetsky, a propósito da publicação da tradução portuguesa do seu livro mais recente (A Sagração da Autenticidade) e de uma conferência que deu na Universidade Católica. Lipovetsky tem criticado (a meu ver, acertadamente) o pendor individualista, hedonista e (hiper)consumista das sociedades contemporâneas na medida em que, por um lado, não conduz necessariamente a níveis acrescidos de bem-estar e felicidade, além de ser ambientalmente nefasto. No entanto, critica agora as actuais tendências de conversão à “vida autêntica” – que envolvem comprar produtos ‘sustentáveis’, ‘autênticos’ ou ‘naturais’ – defendendo que as mudanças de comportamento não irão resolver a crise climática e que o activismo climático veio preencher um vazio ideológico das actuais sociedades materialistas. Considera ainda um erro a culpabilização do consumidor e não acredita na “conversão da população mundial à frugalidade”. Segundo ele, a resolução da crise climática, que julga ser “o grande desafio do século”, passará pela inovação económica e tecnocientífica (economia circular, transição energética, tecnologias inovadoras), contando com o papel regulador e estimulador do Estado, e com a participação de diferentes actores sociais. Embora concorde com Lipovetsky que o consumo ‘sustentável’ e ‘verde’ se reduz muitas vezes a mero ‘greenwashing’, que as mudanças individuais são insuficientes e que a adopção de um paradigma ecológico deverá envolver uma agenda política ambiciosa que não fique prisioneira das fidelidades ideológicas e partidárias, nos restantes aspectos discordo cabalmente da sua argumentação. Primeiro, porque escamoteia (propositadamente?) a raíz profunda da crise ambiental, ou seja, o sistema socioeconómico dominante, alimentado não só pelas práticas políticas e económicas, neoliberais e tecnocráticas, de Estados e corporações, como também pelas narrativas mediáticas e publicitárias que lhe estão associadas. Quanto às alegações de irrelevância das mudanças de comportamento individuais, do irrealismo duma conversão voluntária à frugalidade e de que os povos do sul global vão desejar experimentar os mesmos privilégios e modos de vida do norte global, tratam-se igualmente de narrativas falaciosas (bem conhecidas dos decrescentistas). Por um lado, porque nem todas as pessoas têm o mesmo nível de impacto (a pegada ecológica dos ‘ricos’ do norte global é muitíssimo maior do que a dos ‘pobres’ do sul), além de que as mudanças individuais e a frugalidade só fazem sentido no contexto de uma transformação colectiva de valores éticos, decidida democraticamente, e se forem acompanhadas de mudanças institucionais alinhadas e igualmente radicais. Por outro lado, Lipovetsky parece ignorar que as tendências hedonistas e consumistas actuais, que existem de facto quer no norte, quer no sul globais, não são meras manifestações de uma ‘natureza humana’ homogeneamente egoísta e gananciosa ou de “paixões individualistas” inatas, mas são na verdade produtos de uma cultura e de uma máquina de propaganda e de guerra económica globais que estimulam ou exacerbam aquelas facetas.

Por falar em activismo ambiental, neste mês de Março assistiu-se a um novo desenvolvimento preocupante das tentativas de denegrir e desmobilizar lutas ambientais que intentam proteger os recursos naturais comuns e evitar a destruição de ecossistemas essenciais ou de comunidades locais. Em Janeiro, aconteceu nas minas de lenhite da região de Lützerath na Alemanha (ver p.ex. aqui ou aqui) e agora foi em França: uma acção de protesto em Sainte-Soline contra a apropriação de recursos hídricos pela construção de grandes reservatórios de água para irrigação de explorações agrícolas intensivas, degenerou em confrontos e repressão violenta – ver p.ex. aqui ou aqui. Os ambientalistas e ONGs que acompanharam os acontecimentos contestam a desproporção e violência do dispositivo policial militarizado que foi mobilizado (ver p.ex. aqui ou aqui), assim como a reacção de membros do governo francês que apelidaram as organizações que convocaram os protestos de ‘ecoterroristas’ (ver p.ex. aqui). Este tipo de difamação e desacreditação, com acusações de radicalismo e de terrorismo, já tinha ocorrido anteriormente, quer por parte de governantes, quer pela imprensa francesa, desencadeando reacções de indignação que levaram um grupo alargado de personalidades e de organizações a elaborar uma carta aberta (subscrita por mais de 3000 pessoas) de apoio às acções de protesto e de contestação contra diversas agressões ambientais flagrantes, essas sim, verdadeiros actos de ecoterrorismo. Para saber mais sobre a legitimidade e relevância da contestação actual às mega-bacias no centro-oeste de França, recomendo a consulta de diversos artigos publicados no site Reporterre – ver p.ex. aqui. Ver P.S. no final deste post.

Sainte-Soline © Les Soulèvements de la Terre

Durante este mês de Março os
bancos e o sistema financeiro global voltaram a dar mostras da sua insustentabilidade e dos seus podres. Depois do colapso de dois bancos norteamericanos de média dimensão (o Silicon Valley Bank e o Signature Bank) no início do mês ter colocado o sistema bancário à beira de uma crise como a de 2008 e ter causado alguns danos colaterais noutros países (p.ex. colapso do Crédit Suisse, que foi comprado pelo UBS com apoio do Estado suiço), ficámos agora a saber de um esquema de evasão fiscal por diversos bancos europeus, em conluio com outras instituições financeiras, por via de uma investigação das autoridades francesas.


As falências (fraudulentas?) do SVB e do Signature levaram a uma intervenção de emergência do governo federal norteamericano e do respectivo banco central (Federal Reserve) por via do FDCI (fundo de garantia de depósitos), alegadamente para impedir o contágio e o pânico no sistema financeiro. Só que a aplicação daquele mecanismo violou as regras que foram criadas para impedir que o descalabro de 2008 se repetisse, já que foram resgatados todos os depósitos nos bancos falidos e não apenas até ao montante para o qual havia garantia legal (250.000 US$). De notar que mais de 90% dos depósitos no SVB excediam aquele valor! Daí que, embora os accionistas não tenham sido ‘salvos’, se fale daquela intervenção como um ‘bailout’, apesar do presidente Biden ter rejeitado essa designação, garantindo que o sistema bancário é seguro.


Mas claro que há muito mais detalhes sórdidos e intrincados, relatados em diversas notícias, que recorreram a palavras ou expressões dramáticas como ‘contágio’, ‘efeito dominó’, ‘rough ride ahead’, ‘Lehman moment’: ver aqui, aqui, aqui e aqui. Entre os pormenores que demonstram o falhanço da regulação bancária e as disfuncionalidades do sistema financeiro que não foram sanadas desde 2008, destaco: o facto do CEO do SVB ter vendido acções do próprio banco duas semanas antes da falência (aqui) e ter feito lobbying no sentido de aliviar as medidas de regulação que afectaram o SVB (aqui); o facto da consultora KPMG ter feito auditorias ao SVB e Signature, sem detectar riscos, semanas antes da falência (aqui); o facto da revista Forbes (aqui ou aqui) e de agências de notação (aqui ou aqui) terem dado classificações elevadas ao SVB até às vésperas da falência; o facto do ex-congressista democrata Roger Frank (co-autor da lei Dodd-Frank que incrementou a regulação do sistema financeiro durante a administração Obama) ter entrado para o conselho de administração do Signature Bank dois anos após ter deixado o congresso e ter apoiado publicamente alterações à lei que ele próprio ajudou a elaborar no sentido de aliviar as medidas de regulação a aplicar a bancos de dimensão intermédia, como o Signature, aprovadas durante a administração Trump (aqui). Não é de admirar que análises e perspectivas muito diversas e complementares tenham surgido, cada uma com os seus vieses – ver p.ex. os seguintes vídeos: aqui, aqui, aqui (a partir dos 10 min) ou aqui. Atestando o falhanço flagrante da supervisão pública sobre o sector financeiro, deixo uma citação de Tim Canova, professor de direito e finanças públicas na Nova Southeastern University (Florida): “The present crisis reveals some of the big shortcomings in the 2008 bailout approach - starting with a failure to nationalize and prosecute fraudster bankers; a refusal to close down the derivatives markets, cronyism and revolving doors between D.C. policymakers, regulators and banks; and the Federal Reserve’s trickle-down monetary policy, printing money to bailout banks and subsidize financial markets and a casino economy. (…) There are indications that the Federal Reserve may use the present crisis to try to usher in central bank digital currency (CBDC) and a centralized system of social credit and social control.”


Uma outra evidência de que muitos bancos deixaram de ser instituições fidedignas surgiu esta semana com a notícia de que uma rede de bancos e outras instituições lesaram diversos Estados europeus em milhares de milhões de euros (p.ex. aqui ou aqui). As autoridades francesas realizaram, esta terça-feira, uma série de buscas nas sedes de vários dos maiores bancos a operar no país, incluindo o Société Générale, o BNP Paribas ou o HSBC. Em causa estão suspeitas de que estas instituições estarão ligadas a um escândalo financeiro de evasão fiscal e de branqueamento de capitais, denunciado pela 1ª vez em 2018 por um consórcio de jornalistas, designado por CumEx Files. Essa investigação revelou que, através de um complexo esquema de fraude fiscal, vários bancos, corretoras e investidores obtiveram milhares de milhões de euros de lucros indevidos. Em Dezembro passado, o advogado alemão Hanno Berger, considerado o mentor do esquema, foi condenado por fraude fiscal a oito anos de prisão (ver p.ex. aqui). Mas até agora foi o único a ser acusado e condenado, e parece que foram precisos cinco anos para as autoridades francesas reunir indícios e elaborar acusações; resta saber quantos mais serão necessários para julgar e condenar os culpados… Entretanto, são os contribuintes europeus que sofrem as consequências - p.ex. com cortes sucessivos nos gastos sociais dos respectivos Estados.

(continua...)

Orchis antropophora (Fanhões)

P.S. Na sequência da intenção de dissolver o movimento Soulèvements de la Terre, foi lançado um apelo a subscrever um abaixo-assinado (publicado no jornal Le Monde). A versão PT pode ser consultada e subscrita aqui.

Respigos de Março (1)

Orchis italica (Fanhões)
Since one cannot know a radically better world is not possible, are we not betraying everyone by insisting on continuing to justify and reproduce the mess we have today?” [Já que não se pode saber se um mundo radicalmente melhor não é possível, não estaremos a atraiçoar todos ao insistir em continuar a justificar e a reproduzir a trapalhada que temos hoje?] David Graeber (Fragments of an Anarchist Anthropology)

Inauguro uma nova secção de apontamentos das pesquisas deste Respigador - que designei por Respigos - com chamadas para acontecimentos, artigos, entrevistas, livros ou vídeos com que me vou cruzando e que me pareceram merecedores de destaque e partilha. Na verdade, no primeiro post deste ano já tinha ensaiado este formato. Dividi o presente post em três partes para facilitar a leitura (a 2ª parte está aqui e a 3ª aqui) e complementei as ilustrações dos temas com fotografias de diversas orquídeas silvestres que respiguei neste mês de Março em Lisboa e arredores.


Ainda no rescaldo do meu post anterior sobre a deserção como reacção e resistência às actuais sociedades trabalhistas e produtivistas, encontrei uma entrevista a Corinne Morel Darleux (ensaista e militante ecossocialista francesa, autora do ensaio «Plutôt couler en beauté que flotter sans grâce», que citei naquele post), além de um artigo seu no jornal Libération (ambos publicados em 2022), onde apela à construção de deserções fecundas como actos políticos capazes de se tornarem verdadeiras secessões, refreando os desejos (legítimos) de evasão desorientada. Transcrevo excertos da entrevista (traduzidos do francês): “(…) Bifurcar, se eu tivesse que resumir, é para mim vivenciar com sinceridade, mas sem rigidez, esse momento singular em que o cérebro encontra os punhos. Seja como for que se manifeste depois, nas escolhas individuais - ou infelizmente, porque nem todos temos as mesmas condições de existência, na ausência de escolha -, é nesse momento de discernimento, de lucidez, onde no fundo sentimos que não podemos continuar a viver como se não soubéssemos. (…) o apelo à raiva [devenir “furieux”] não é necessariamente sensato dado o barril de pólvora em que nos encontramos. É uma preocupação sincera: não vejo nenhuma explosão revolucionária, nenhum movimento social de grande porte, poucos coletivos organizados para politizar e canalizar essa raiva. A maioria das pessoas não sabe o que fazer com essas vontades de destruir tudo, essas indignações legítimas, nem como se proteger da escassez que se aproxima; por falta de saída, corre-se o risco de escolher o inimigo errado e colocar uns contra os outros. Desconfio do ressentimento que se instala, dos fenómenos de retração e de expiação de culpa [‘boucs-émissaires’/bodes expiatórios], um cenário muito perigoso no momento.”


As palavras de Darleux remeteram-me para o documentário ‘Une fois que tu sais’/‘Once you know’ escrito e realizado por um compatriota seu, o cineasta Emmanuel Cappelin, e estreado em 2022. Nesta obra autobiográfica, Cappelin, que escolheu um caminho particular de bifurcação por via do activismo ambiental, descreve o seu próprio processo de tomada de consciência, quer sobre a ligação entre a crise ecológica e o sistema socioeconómico dominante (crescentista, produtivista, extractivista, consumista), quer sobre o modo como este sistema nos levará ao colapso. O autor parte do relatório ‘The Limits to Growth’ e recorre ao testemunho de um conjunto restrito de intervenientes – o activista Pablo Servigne, a investigadora Susanne Moser, o autor Richard Heinberg, e os académicos e consultores Jean-Marc Jancovici e Saleemul Huq - não só para entender as diferentes dimensões inter-relacionadas da situação presente, como também para dar a conhecer algumas das propostas e projectos que estão ser experimentados. Perante a visão lúcida e desencantada do estado do mundo, Cappelin escolhe enumerar algumas das alternativas que se oferecem (ver o siteRoots of Resilience’ que complementa o filme), relatando o seu próprio percurso pessoal, mas deixando a cada um/uma a decisão de escolher o seu próprio caminho. Vale a pena consultar a ‘Árvore de Acções’ (na sua versão inglesa ou francesa), dividida em seis secções (Resistência, Regulação, Cooperação, Adaptação, Autonomia, Sobriedade), que transmite uma imagem inspiradora da extraordinária diversidade de propostas e de níveis de envolvimento que realmente existem, em contraste flagrante com o lema falacioso e estafado ‘Não há alternativa' (ao capitalismo neoliberal global) ou TINA (na sigla inglesa).


Antes de publicar um post que prometi sobre o tema da exaustão, remeto para uma entrevista recente dada pelo jornalista britânico Oliver Burkeman ao jornal Público, a propósito da publicação da tradução portuguesa do seu livro ‘4000 semanas – gestão de tempo para mortais’ (a que aludi no meu post anterior). Achei particularmente relevante o questionamento que o autor faz da chamada ’armadilha da eficiência’, assim como das técnicas de gestão de tempo – ferramentas das sociedades produtivistas e trabalhistas, das quais o próprio Burkeman foi, sucessivamente, agente e vítima. 
Excertos: “Cheguei a este assunto por uma espécie de obsessão com a gestão de tempo mais estreita: tentar encontrar técnicas e truques para organizar o dia de forma a conseguir fazer mais coisas. Uma grande razão para escrever este livro foi ter chegado aos limites dessa forma de pensar, ter esgotado as suas possibilidades e querer descobrir o que podia existir no seu lugar. (…) Muitas pessoas que usam estas técnicas fazem-no para chegarem a uma situação em que são capazes de fazer todas as coisas que sentem que têm de fazer, todas as coisas que querem fazer, todas as solicitações. Na verdade, o que estão a fazer é usá-las como uma forma de esquivamento psicológico: utilizam-nas para não serem confrontadas com o que significa ter uma quantidade de tempo limitada e um controlo limitado desse tempo. (…) E depois há as pressões económicas e a natureza do sistema económico em que vivemos que levam a que tenhamos de fazer uma quantidade impossível de coisas só para mantermos a cabeça acima da água. (…) Com frequência, no trabalho e fora dele, fazemos coisas que não nos preenchem acreditando que isso nos conduzirá a um momento, no futuro, em que tudo valerá a pena porque estaremos no controlo, teremos tudo o que precisamos — e aí poderemos viver realmente. Isso não é uma boa forma de pensar na vida porque não é possível controlar o que vai acontecer no futuro. (…) se apreciássemos mais o pouco tempo de que o nosso ser finito dispõe, seríamos muito menos tentados a procurar fazer tudo — e muitas coisas que não devíamos estar a fazer.” O autor demonstrou, quanto a mim, uma capacidade pouco habitual de humildade e de auto-crítica, compreendendo os limites das capacidades humanas de realização e de atenção. Ainda assim, o autor não conseguiu resistir a voltar a organizar as suas tarefas quotidianas em duas listas – aquelas que tem para fazer e as que se compromete a fazer!...

(continua...)

Cephalanthera longifolia (P.F. Monsanto)