quinta-feira, 30 de março de 2023

Respigos de Março (1)

Orchis italica (Fanhões)
Since one cannot know a radically better world is not possible, are we not betraying everyone by insisting on continuing to justify and reproduce the mess we have today?” [Já que não se pode saber se um mundo radicalmente melhor não é possível, não estaremos a atraiçoar todos ao insistir em continuar a justificar e a reproduzir a trapalhada que temos hoje?] David Graeber (Fragments of an Anarchist Anthropology)

Inauguro uma nova secção de apontamentos das pesquisas deste Respigador - que designei por Respigos - com chamadas para acontecimentos, artigos, entrevistas, livros ou vídeos com que me vou cruzando e que me pareceram merecedores de destaque e partilha. Na verdade, no primeiro post deste ano já tinha ensaiado este formato. Dividi o presente post em três partes para facilitar a leitura (a 2ª parte está aqui e a 3ª aqui) e complementei as ilustrações dos temas com fotografias de diversas orquídeas silvestres que respiguei neste mês de Março em Lisboa e arredores.


Ainda no rescaldo do meu post anterior sobre a deserção como reacção e resistência às actuais sociedades trabalhistas e produtivistas, encontrei uma entrevista a Corinne Morel Darleux (ensaista e militante ecossocialista francesa, autora do ensaio «Plutôt couler en beauté que flotter sans grâce», que citei naquele post), além de um artigo seu no jornal Libération (ambos publicados em 2022), onde apela à construção de deserções fecundas como actos políticos capazes de se tornarem verdadeiras secessões, refreando os desejos (legítimos) de evasão desorientada. Transcrevo excertos da entrevista (traduzidos do francês): “(…) Bifurcar, se eu tivesse que resumir, é para mim vivenciar com sinceridade, mas sem rigidez, esse momento singular em que o cérebro encontra os punhos. Seja como for que se manifeste depois, nas escolhas individuais - ou infelizmente, porque nem todos temos as mesmas condições de existência, na ausência de escolha -, é nesse momento de discernimento, de lucidez, onde no fundo sentimos que não podemos continuar a viver como se não soubéssemos. (…) o apelo à raiva [devenir “furieux”] não é necessariamente sensato dado o barril de pólvora em que nos encontramos. É uma preocupação sincera: não vejo nenhuma explosão revolucionária, nenhum movimento social de grande porte, poucos coletivos organizados para politizar e canalizar essa raiva. A maioria das pessoas não sabe o que fazer com essas vontades de destruir tudo, essas indignações legítimas, nem como se proteger da escassez que se aproxima; por falta de saída, corre-se o risco de escolher o inimigo errado e colocar uns contra os outros. Desconfio do ressentimento que se instala, dos fenómenos de retração e de expiação de culpa [‘boucs-émissaires’/bodes expiatórios], um cenário muito perigoso no momento.”


As palavras de Darleux remeteram-me para o documentário ‘Une fois que tu sais’/‘Once you know’ escrito e realizado por um compatriota seu, o cineasta Emmanuel Cappelin, e estreado em 2022. Nesta obra autobiográfica, Cappelin, que escolheu um caminho particular de bifurcação por via do activismo ambiental, descreve o seu próprio processo de tomada de consciência, quer sobre a ligação entre a crise ecológica e o sistema socioeconómico dominante (crescentista, produtivista, extractivista, consumista), quer sobre o modo como este sistema nos levará ao colapso. O autor parte do relatório ‘The Limits to Growth’ e recorre ao testemunho de um conjunto restrito de intervenientes – o activista Pablo Servigne, a investigadora Susanne Moser, o autor Richard Heinberg, e os académicos e consultores Jean-Marc Jancovici e Saleemul Huq - não só para entender as diferentes dimensões inter-relacionadas da situação presente, como também para dar a conhecer algumas das propostas e projectos que estão ser experimentados. Perante a visão lúcida e desencantada do estado do mundo, Cappelin escolhe enumerar algumas das alternativas que se oferecem (ver o siteRoots of Resilience’ que complementa o filme), relatando o seu próprio percurso pessoal, mas deixando a cada um/uma a decisão de escolher o seu próprio caminho. Vale a pena consultar a ‘Árvore de Acções’ (na sua versão inglesa ou francesa), dividida em seis secções (Resistência, Regulação, Cooperação, Adaptação, Autonomia, Sobriedade), que transmite uma imagem inspiradora da extraordinária diversidade de propostas e de níveis de envolvimento que realmente existem, em contraste flagrante com o lema falacioso e estafado ‘Não há alternativa' (ao capitalismo neoliberal global) ou TINA (na sigla inglesa).


Antes de publicar um post que prometi sobre o tema da exaustão, remeto para uma entrevista recente dada pelo jornalista britânico Oliver Burkeman ao jornal Público, a propósito da publicação da tradução portuguesa do seu livro ‘4000 semanas – gestão de tempo para mortais’ (a que aludi no meu post anterior). Achei particularmente relevante o questionamento que o autor faz da chamada ’armadilha da eficiência’, assim como das técnicas de gestão de tempo – ferramentas das sociedades produtivistas e trabalhistas, das quais o próprio Burkeman foi, sucessivamente, agente e vítima. 
Excertos: “Cheguei a este assunto por uma espécie de obsessão com a gestão de tempo mais estreita: tentar encontrar técnicas e truques para organizar o dia de forma a conseguir fazer mais coisas. Uma grande razão para escrever este livro foi ter chegado aos limites dessa forma de pensar, ter esgotado as suas possibilidades e querer descobrir o que podia existir no seu lugar. (…) Muitas pessoas que usam estas técnicas fazem-no para chegarem a uma situação em que são capazes de fazer todas as coisas que sentem que têm de fazer, todas as coisas que querem fazer, todas as solicitações. Na verdade, o que estão a fazer é usá-las como uma forma de esquivamento psicológico: utilizam-nas para não serem confrontadas com o que significa ter uma quantidade de tempo limitada e um controlo limitado desse tempo. (…) E depois há as pressões económicas e a natureza do sistema económico em que vivemos que levam a que tenhamos de fazer uma quantidade impossível de coisas só para mantermos a cabeça acima da água. (…) Com frequência, no trabalho e fora dele, fazemos coisas que não nos preenchem acreditando que isso nos conduzirá a um momento, no futuro, em que tudo valerá a pena porque estaremos no controlo, teremos tudo o que precisamos — e aí poderemos viver realmente. Isso não é uma boa forma de pensar na vida porque não é possível controlar o que vai acontecer no futuro. (…) se apreciássemos mais o pouco tempo de que o nosso ser finito dispõe, seríamos muito menos tentados a procurar fazer tudo — e muitas coisas que não devíamos estar a fazer.” O autor demonstrou, quanto a mim, uma capacidade pouco habitual de humildade e de auto-crítica, compreendendo os limites das capacidades humanas de realização e de atenção. Ainda assim, o autor não conseguiu resistir a voltar a organizar as suas tarefas quotidianas em duas listas – aquelas que tem para fazer e as que se compromete a fazer!...

(continua...)

Cephalanthera longifolia (P.F. Monsanto)



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