sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Reflexões para inaugurar o ano

Collins English Dictionary
Aproveito este início de 2023 para partilhar alguns escritos com que me cruzei recentemente e que lançam alguma luz sobre temas que tenho aflorado neste blog (bem como no seu antecessor). Atendendo a que as perspectivas em termos sociais, ambientais e políticos continuam a não ser animadoras, quer a nível nacional, quer a nível internacional, afigura-se-me de eventual proveito continuar a trazer aqui análises que ajudem a decifrar a realidade e a desvelar os véus que a ocultam ou a confundem. Como escrevi no meu post anterior, estamos afinal a viver sob os efeitos insidiosos e furtivos de um feitiço ou epidemia cultural (ou memética), dos quais precisamos de tomar consciência para poder esconjurá-lo ou curá-la. Um outro propósito deste meu empreendimento é aliás o de estimular ou de imaginar vias de resistência e de superação da policrise que nos acompanha desde há uns anos - o jornalista Jonathan Derbyshire do Financial Times escolheu esta palavra para resumir o ano de 2022, marcado pela confluência de múltiplas emergências globais, interligadas. Na verdade, a policrise já se converteu numa permacrise – palavra do ano 2022 para o Collins English Dictionary, que justifica a sua escolha por considerar que se trata de “um termo que incorpora adequadamente a sensação vertiginosa de passarmos de um evento sem precedentes para outro [de uma pandemia para uma guerra sem fim à vista], enquanto nos perguntamos desanimadamente que novos horrores podem estar ao virar da esquina”. Embora muitos prefiram o conformismo ou a alienação, ninguém consegue ficar indiferente – em particular, os 'economistas' (ver p.ex. aqui)!


No ensaio ‘The herd in the head’, o filósofo norte-americano de origem romena Costica Bradatan reflete sobre os aspectos mais ou menos positivos da socialização e do instinto gregário (ou comportamento de manada, ‘herding’ no original) nos seres humanos, em particular sobre as questões do conformismo e do empoderamento, e as suas consequências socioculturais e políticas. Bradatan invoca as facetas positivas do ‘comportamento de manada’ em termos evolutivos, mas alerta também para os seus perigos e facetas tóxicas – em especial, por um lado, nos comportamentos de submissão e obediência, e, por outro, nos de abuso de poder (exemplificado pelos fenómenos recentes de ‘bullying’, de ‘scapegoating’ ou de ‘cancelling’). O autor dirige a sua reflexão para o mundo académico, e para o da filosofia em particular, destacando a importância dos não-conformistas e dos contestatários (‘contrarians’, no original) para o avanço do conhecimento e das sociedades (onde se incluem os parresiastas, ver meu post anterior). Sobre filósofos como Diógenes, Spinoza, Kierkegaard, Nietzsche, Walter Benjamin ou Simone Weil, Bradatan afirma: “Through what they did, such figures have kept the thinking alive in a world where everything, thinking included, tends to fall into patterns and routines, and eventually atrophy and die as a result. We are so made, apparently, that we need to have a thorn in the flesh to stay spiritually awake and intellectually alive. The contrarian thinkers gladly oblige to provide us the necessary discomfort.” O autor termina destacando e lamentando o conformismo e submissão que caracterizam hoje em dia uma grande parte do mundo académico e a relevância ainda maior dos excêntricos e dos contestatários: “Thinking, which was supposed to give us detachment from the working of the survival instinct, has now become indistinguishable from herding itself. We pursue knowledge not to keep our herding in check, but to better satisfy its demands. And to increase our power over others. (…) We [the scholarly mob] are seriously sick, and it is little consolation that the condition from which we suffer (chronic gregaritis) seems to have become the norm; a disease is no less serious just because almost everyone has it.” E conclui: “(…) what we need most badly now is something that’s most difficult to get in our age of compulsive conformism: an authentic contrarian spirit. It is from contrarians and dissenters and other pariahs that we can learn the craft of unherding…”


Num ensaio (dividido em seis partes e um interlúdio) que intitulou ‘Handfuls of Dust and Splinters of Bone’, o autor e pensador norte-americano Charles Eisenstein, revisita o clássico de George Orwell ‘1984’ (e recupera e actualiza um escrito seu iniciado em 2010) para analisar os processos mentais/psicológicos, sociais e culturais que informam algo a que se poderia chamar ‘a origem do Mal’. O autor defende que o velho modelo da luta entre as forças do bem e do mal, mas que continua tremendamente actual, é um mito ilusório e esgotado, e que, quer os que vêem ‘o Mal’ como um conjunto de forças vastas e impessoais que procura destruir a vida e a beleza, quer os que o encaram como um conluio ou uma cabala de forças intencionalmente malignas, estão igualmente equivocados. Eisenstein propõe-se desconstruir estas ideias feitas e redutoras recorrendo à narrativa do livro ‘1984’ e em particular a uma análise do movimento de resistência chamado ‘Irmandade’, partindo do seguinte paradoxo: “Na grande batalha cósmica entre o bem e o mal, a arma mais poderosa do mal é a ideia de existe uma grande batalha cósmica entre o bem e o mal”. O autor começa por mostrar como a ideia simplista, mas recorrente, do triunfo das forças do bem sobre as do mal teve afinal consequências historicamente (auto)destrutivas e duradouras: “The apparent triumph of man over woman, of reason over feeling, of human over nature, of mind over matter, of quantity over quality, and of science over spirit has left a hollow husk of a world. None of the victors can truly be themselves without their counterpart; ultimately, the vilified and defeated other includes ourselves.” Por outro lado, Eisenstein considera que a divisão maniqueísta entre bem e mal está também na base das dinâmicas sociais da inclusão e da exclusão que, por sua vez, estão na origem de processos de discriminação e de exercício do poder: “One sign of the inextricable association of good and evil with belonging and exclusion is that any external enemy, whether a hostile tribe, a force of nature, a virus, or a foreign power, will always mirror an internal enemy(…) We have nearly won, it seems, the war against nature, only to find ourselves on the losing side.” Ao longo do ensaio, Eisenstein procura responder à seguinte pergunta: “The question that faces us today, as we begin to succumb to exhaustion in the War against Nature, the War against the Self, and what Steiner called the War of Each against All, is how to create the more beautiful world our hearts tell us is possible. How, when we face a monstrous Machine, can we create its opposite, when to fight that Machine brings into the world only more fighting?” Na parte final do ensaio, o autor responde assim à sua própria pergunta (“how to fight the manifestation of evil in the world without fighting”): “The kernel of the solution is to keep your inner heart inviolate. I do not suggest this as a substitute for action; on the contrary, courageous actions flow from it (and from nowhere else). But no matter what those actions are, even if they involve violence, you'll never do them in the spirit of fighting evil, or indeed for the sake of any abstract principle. To do that is to attempt to lead the heart with the mind, to make the servant into the master. By themselves, abstract principles turn us first into cowards and then into monsters. We become heartless. Whether on the political or the personal level it is the same. (…) To betray the heart causes an internal separation, a split in the self, and the evil that has been invented to threaten us becomes a reality. The soulless gaze of certain public figures hints at what has happened. As Orwell suggests, this split is even more profound than the abdication of sanity that is doublethink. What doublethink does on the level of mind, betrayal of love does on the level of soul.”


O terceiro texto, da autoria do escritor e pensador britânico Paul Kingsnorth, é na verdade uma revisão e um resumo de uma série de escritos que ele tem vindo a publicar desde Abril de 2021 no blog que mantém no Substack e que intitulou ‘The story so far’. Trata-se de um projecto dedicado a explanar a sua perspectiva pessoal sobre a história da modernidade ocidental, cujo culminar é a actual sociedade tecnológica e que Kingsnorth designa por ‘the Machine’, dividido em três partes, duas das quais ficaram agora concluídas (Dezembro de 2022). No primeiro conjunto de posts o autor procedeu à caracterização histórica da ‘Máquina’ e dos seus fundamentos, e no segundo às suas manifestações culturais e políticas contemporâneas, apoiando-se frequentemente em textos de outros autores - filósofos, historiadores, escritores, tão diversos como Lewis Mumford, Jacques Ellul, Jean Baudrillard ou Rupert Sheldrake. Kingsnorth define assim o objecto de estudo da sua série de ensaios: “The ultimate project of modernity, I believe now, is to replace nature with technology, and to rebuild the world in purely human shape, the better to fulfill the most ancient human dream: to become gods. What I call the Machine is the nexus of power, wealth and technology that has emerged to make this happen. We are increasingly unable to escape our total absorption by this thing, and we are reaching the point where its control over nature, both wild and human, is becoming unstoppable. The Machine we are building is taking us at warp speed into a new way of being human. Away from the spiritual, towards the material; away from nature, towards technology; away from organic culture towards a planned technocracy. It is nearly impossible to even keep up with the pace and scale of change now.” É com o intuito de tentar fazer algum sentido das transformações profundas e vertiginosas geradas pelo projecto da modernidade que Kingsnorth se lançou nesta empreitada que tenciona completar durante o ano de 2023, com um terceiro conjunto de ensaios onde irá explorar as possibilidades de atravessar o futuro desenhado pela Máquina e em particular os caminhos para lhe resistir.


Being dumped’ é um ensaio de 2019 da autoria do filósofo Michael Marder que intenta também ele uma caracterização muito própria da contemporaneidade, comparando-a a uma lixeira (‘dump’, que na língua inglesa é também um verbo que significa descartar). Neste texto, Marder faz uma leitura dos vários níveis da existência moderna – psicológico, cultural, social e ambiental – que ele considera estarem igualmente afectados por níveis tóxicos dos despojos e subprodutos da devastação causada pela sociedade industrial e de consumo global: “We live and die on a dump of ideas, bodies, dreams, materials, snippets of relations, sound bites and memes, decontextualized and dehistoricized, produced as waste, clipped, isolated and thrown together in a massive jumble in the wake of what used to be a world.” Marder considera que a cultura globalizada do descarte e do excesso está a danificar de forma dificilmente reversível, não só o meio ambiente, como todos os níveis das sociedades modernas, assim como todos os indivíduos que nelas vivem (independentemente da classe social ou geografia), quer a nível físico, quer psicológico, naquilo que ele apelida de ‘toxicidade ontológica’: “Living on a dump, we are moved, produced, and reproduced by the dump, as by ourselves. For the most part and albeit technically alive, we are dying there, dismembered, thrown out, trashed, alienated from our alienation, coming to love it or altogether indifferent, apathetic, no longer involved, anaesthetized with pharmaceutically and ideologically manufactured painkillers. The dump lives us, lives for us. It takes over the movement, production, and reproduction of world-destruction, wrecking the very being-world of the world.” Marder vê na aparente tendência humana para o auto-envenenamento uma manifestação, não de uma natureza humana primordial ou das forças do mal, mas de um desligamento dos seres humanos em relação, não só à sua psique, como também ao mundo ‘natural’ do qual fazem parte, produto dum modelo de sociedade, insustentável e neurótico, infectado pela tal ‘toxicidade ontológica’.


Como se poderá notar, existem fortes convergências, assim como evidentes afinidades temáticas, entre os quatro ensaios que citei, nas suas visões lúcidas, ainda que desencantadas, da modernidade e das sociedades contemporâneas. 

Não posso ainda deixar de invocar aqui duas efemérides que se cumpriram durante o ano de 2022 e que se referem à publicação de dois livros considerados como marcos fundacionais dos movimentos ambientalistas do século XX e que deram contributos fulcrais para a compreensão dos impactos nefastos, ainda que não premeditados, da modernidade, das sociedades industriais e dos modelos hegemónicos de desenvolvimento e progresso. Refiro-me ao 60º aniversário da publicação do livro ‘Silent Spring’ de Rachel Carson (ver aqui ou aqui), citado no ensaio de Marder, e ao 50º aniversário da publicação do estudo ‘The Limits to Growth’, obra marcante para o desenvolvimento da crítica decrescentista (ver aqui ou aqui).


Para não deixar que fique a pairar apenas um sentimento de pessimismo e de fatalidade (‘doom & gloom’, como dizem os anglófonos) perante os desafios do momento que atravessamos, faço ainda aqui menção a um conjunto de três posts da autoria do jornalista francês Gaspard d’Allens para o site sobre temas ambientais Reporterre, com o título genérico ‘La Grande Démission’. Nele o autor descreve diversas iniciativas de insubmissão, de objeção de consciência ou de rejeição da narrativa civilizacional dominante, que estão a surgir nos mundos académico e laboral (em França, mas também noutros países ocidentais). Como curiosidade, destaco que o termo ‘quiet quitting’, que descreve a recusa do carreirismo e de trabalhar para além do que está definido nos termos contratuais, fez parte da ‘shortlist’ de palavras do ano do Collins English Dicitonary a que me referi no início deste post (ver p.ex. aqui). Irei dedicar a este tema um próximo post, mas deixo aqui uma breve antevisão para enfatizar que o modelo socioeconómico dominante está a desmoronar-se sob o seu próprio peso e que os germes duma contra-sociedade começam a tornar-se visíveis: “A ‘deserção’ é o sinal dos nossos tempos, o derradeiro gesto de resistência numa época onde reina a devastação e onde a violência policial se abate sobre os movimentos sociais. A deserção é uma ética individual, uma nova forma de objeção de consciência. «Hoje em dia trata-se de parar de prejudicar. Isso passa por deixar de cooperar com o sistema», afirma Corinne Morel Darleux no seu ensaio ‘Plutôt couler en beauté que flotter sans grâce’. «Devemos recuperar a nossa capacidade de fazer escolhas autónomas, de reinvestir a nossa soberania como indivíduos. É o primeiro passo de uma emancipação coletiva em relação às normas que nos são impostas pela sociedade». Os desertores escapam como recrutas fugindo do exército. «A deserção não é tanto uma derrota, mas uma forma de nos livrarmos do elemento gregário em nós», escreve o escritor Dénetem Touam Bona, em ‘La Sagesse des lianes’. Diante da miséria do mundo, não buscamos construir oásis ou nichos abrigados da fúria, mas sim reposicionar-nos para melhor lutar contra a megamáquina e escapar das suas garras. «Fugir, mas ao fugir, buscar uma arma», como escreveu o filósofo Gilles Deleuze.

Juliette de Montvallon / Reporterre

Finalizo invocando um post que eu próprio escrevi em 2018 sobre a diferença ténue que separa a esperança da desesperança e que terminava assim: “Atendendo a que parte dos problemas que vivemos resultam em grande medida da falta de consciência ou recusa em ver muitos desses mesmos problemas, que são escamoteados ou ocultados pelos ‘media’ convencionais – encontramo-nos afinal em plena era da pós-verdade e das ‘fake news’, e não sou eu que o afirmo –, acredito que as minhas missivas são relevantes e úteis. Suspeito que as ‘Cassandras’ e os ‘Velhos do Restelo’ deste mundo tiveram, e continuam a ter, um papel importante na nossa história colectiva e assumo a minha modesta contribuição para continuar esse trabalho. Não tenho ilusões ou pretensões de que vou ‘salvar o mundo’, mas irei prosseguir o meu caminho de conhecer e sentir o mundo à minha volta, que dá sentido à minha vida e me traz alguma paz de espírito. Por isso, continuarei a partilhar a diversidade de vozes de pensadores e activistas a quem peço emprestado os ‘óculos’ que me ajudam a ver e a pensar o mundo tal como ele [vai sendo], estimulando a reflexão e o espírito crítico. Talvez não seja a forma mais eficaz de activismo, mas como disse José Saramago numa entrevista: «Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado,… Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar e parece-me que sem ideias não vamos a parte nenhuma.»

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