sexta-feira, 30 de abril de 2021

Escolas de economia e gestão: reformar ou demolir?

Ilustração de Michael Kirkham
O título deste
post foi inspirado num artigo do professor de gestão britânico Martin Parker (autor do livro ‘Shut Down the Business School: What’s Wrong with Management Education’), publicado em 2018 no The Guardian, onde propõe um destino radical para as escolas de economia e gestão – encerramento ou demolição: ‘Why we should bulldoze the business school’ (uma outra versão do mesmo artigo está disponível aqui). O autor defende que o ensino nas escolas de gestão foi dominado nas últimas décadas por uma visão de mundo e um modelo económico (capitalista, neoliberal e mercantil) apregoados como hegemónicos e que se converteram em profecias autocumpridas (‘self-fulfilling prophecies’). Para além do currículo explícito, que apresenta o sistema dominante como incontornável e onde as visões alternativas e questões como a sustentabilidade ou a justiça social são meramente acessórias, aquelas escolas professam um currículo oculto na forma como aqueles conteúdos são transmitidos, validando os comportamentos competitivos e gananciosos como os mais adequados para prosperar e aplicar no ‘mundo real’. Parker sugere ainda que apesar de haver alguma crítica interna aos conteúdos e modelos de ensino por parte por exemplo de cientistas sociais, essa crítica é minoritária e acaba por ficar nas prateleiras ou a preencher os currículos dos seus autores, não se reflectindo em mudanças práticas das próprias instituições.
Seguem-se alguns excertos (mas recomendo a leitura do artigo completo):
(…) in the business school, both the explicit and hidden curricula sing the same song. The things taught and the way that they are taught generally mean that the virtues of capitalist market managerialism are told and sold as if there were no other ways of seeing the world. If we educate our graduates in the inevitability of tooth-and-claw capitalism, it is hardly surprising that we end up with justifications for massive salary payments to people who take huge risks with other people’s money. If we teach that there is nothing else below the bottom line, then ideas about sustainability, diversity, responsibility and so on become mere decoration. The message that management research and teaching often provides is that capitalism is inevitable, and that the financial and legal techniques for running capitalism are a form of science. This combination of ideology and technocracy is what has made the business school into such an effective, and dangerous, institution.
(…) The problem is that business ethics and corporate social responsibility are subjects used as window dressing in the marketing of the business school, and as a fig leaf to cover the conscience of B-school deans – as if talking about ethics and responsibility were the same as doing something about it. They almost never systematically address the simple idea that since current social and economic relations produce the problems that ethics and corporate social responsibility courses treat as subjects to be studied, it is those social and economic relations that need to be changed.
(…) The easiest summary of all of the above, and one that would inform most people’s understandings of what goes on in the B-school, is that they are places that teach people how to get money out of the pockets of ordinary people and keep it for themselves. In some senses, that’s a description of capitalism, but there is also a sense here that business schools actually teach that “greed is good”.
(…) Having an MBA might not make a student greedy, impatient or unethical, but both the B-school’s explicit and hidden curriculums do teach lessons. Not that these lessons are acknowledged when something goes wrong, because then the business school usually denies all responsibility. That’s a tricky position, though, because, as a 2009 Economist editorial put it, “You cannot claim that your mission is to ‘educate the leaders who make a difference to the world’ and then wash your hands of your alumni when the difference they make is malign”.
(…) Most business schools exist as parts of universities, and universities are generally understood as institutions with responsibilities to the societies they serve. Why then do we assume that degree courses in business should only teach one form of organization – capitalism – as if that were the only way in which human life could be arranged? The sort of world that is being produced by the market managerialism that the business school sells is not a pleasant one. It’s a sort of utopia for the wealthy and powerful, a group that the students are encouraged to imagine themselves joining, but such privilege is bought at a very high cost, resulting in environmental catastrophe, resource wars and forced migration, inequality within and between countries, the encouragement of hyper-consumption as well as persistently anti-democratic practices at work.

Outros autores partilham da visão de Parker (p.ex.
Kean Birch da York University), mas as suas críticas às instituições universitárias estendem-se também ao ensino de economia. Dou apenas como exemplo um manifesto publicado em 2017 onde são apresentadas 33 teses que põem em causa a ideologia económica dominante (neo-clássica) com propostas para uma visão pluralista da economia na sociedade e no ensino. Os seus promotores (Rethinking Economics e New Weather Institute) defendem uma reforma do sistema actual que fomente o pensamento crítico e a reflexão sobre as diferentes visões económicas que existem, em pé de igualdade com a ideologia e prática hegemónicas – sugiro a leitura do comentário de Margarida Chagas Lopes a este manifesto no blog Areia dos Dias.

NOVA-SBE: um caso paradigmático nacional
O artigo de Martin Parker começa com uma referência ao facto dos edifícios das escolas de gestão serem muitas vezes os mais modernos (ou os mais ostensivos!) num campus universitário, o que, segundo o autor, resultaria da capacidade de captar financiamentos em consonância com a sua missão de ensinar a lucrar no mundo dos negócios. Um bom exemplo recente no nosso país foi o ‘upgrade’ da faculdade de economia e gestão da Universidade Nova de Lisboa (mais conhecida pela designação baseada na sigla derivada do inglês, como manda o marketing), que se transferiu do velho edifício de Campolide para as novas instalações inauguradas com pompa e circunstância em 2018 (ver aqui ou aqui). A construção de um campus de estilo 'californiano' foi muito contestada e mediatizada pelo seu impacto e custo faraónico (ver aqui ou aqui). Um dos grandes atractivos da Nova SBE (e que lhe valeu a colagem à Califórnia) é a sua localização junto à praia de Carcavelos (com túnel directo e informação sobre a altura das ondas no seu website), como é destacado em notícias publicadas na altura no jornal Público – ver aqui ou aqui. Este mesmo jornal destacou ainda os impactos naquela zona, nomeadamente em termos do mercado imobiliário, que também foram alvo de contestação (ver aqui). Neste caso, a adesão ao paradigma económico dominante nunca foi camuflada, como se pode ler num artigo de Setembro de 2018 que faz uma análise crítica do modelo neoliberal da Nova SBE e da polémica campanha de angariação de fundos. De facto, embora pertencendo a uma universidade pública, a sua construção foi co-financiada por instituições ou empreendedores da ‘congregação global’ (ver aqui ou aqui).
Tratando-se de mais um templo da ‘igreja universal do economismo’, destinado a formar novos acólitos, não é de estranhar que, para além de um claustro (sic), tenha vários espaços aos quais foram atribuídos os nomes dos seus principais mecenas, como a ‘Biblioteca Teresa e Alexandre Soares dos Santos’, o ‘Santander Hall’ ou o ‘Jerónimo Martins Grand Auditorium’. Para completar o quadro, está em vista uma parceria com a ‘Singularity University’ (ver aqui), consumando a conjugação do culto ao neoliberalismo e ao trans-humanismo num só local! Como se pode ler num dos artigos citados acima, esta academia de formação das futuras elites do admirável mundo novo corporativo pode não ser Fátima, mas já fez milagres para o mercado imobiliário da região!
Mas como ‘no melhor pano cai a nódoa’, um relatório de uma comissão independente à NOVA-SBE, divulgado este ano (2021), revelou diversas situações de conflitos de interesses dos seus docentes em relação a instituições financeiras com as quais mantinham diferentes tipos de ligações (ver aqui). A notícia citada dá como exemplo o seu próprio director, Daniel Traça, que era administrador do Santander, onde auferiu 143 mil euros por essas funções durante o ano de 2019 que acumulou com o seu salário como docente, sendo aquele banco uma das empresas que financiou a construção do campus de Carcavelos. Para não pintar uma imagem demasiado negra daquela instituição, destaco a divulgação recente do relatório “Portugal: Balanço Social 2020” elaborado por Susana Peralta, Bruno P. Carvalho e Mariana Esteves, membros do ‘Economics for Policy Knowledge Center’ da Nova SBE, que traça um retrato socioeconómico das famílias portuguesas, revelando as situações de pobreza e exclusão social no país, e, em particular, alguns dos impactos sociais nefastos das medidas de mitigação da pandemia da Covid-19 (ver aqui e aqui). Uma das autoras deste estudo, Susana Peralta, que escreve artigos semanais de opinião para o Público, alguns dos quais críticos para com empresas privadas que são mecenas da Nova SBE, como o Novo Banco ou a EDP, esteve na origem de um parecer interno do Concelho de Catedráticos que aconselhava os seus docentes a não assinarem artigos de opinião com o nome da faculdade (noticiado no artigo do Público citado acima).

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Ser rio - reconciliar o sistema legal com a ecologia

Cry me a river - ilustração de Jackie Morris (2015)
Eu sou o rio e o rio sou eu. Provérbio Maori

You cannot dam a river and have it free. Suprabha Seshan

A atribuição de personalidade jurídica a elementos naturais como rios ou montanhas tem sido divulgada nos últimos anos como uma importante conquista dos movimentos ambientalistas, mas também das populações ribeirinhas (ver p.ex. aqui ou aqui), e foi acompanhada pelos movimentos mais abrangentes de reconhecimento legal dos direitos da natureza, em geral (ver p.ex. aqui ou aqui), e dos rios, em particular (Declaração Universal dos Direitos dos Rios, 2020). 
O processo teve início apenas recentemente na Nova Zelândia com a designação do parque natural Te Urewera (2014) e do rio Whanganui (2017) como sujeitos legais de direitos. Processos idênticos decorreram na Índia (rio Ganges e o seu afluente Yamuna), em comunidades locais nos EUA, na Colômbia (rio Atrato) e já este ano no Canadá (rio Muteshekau-shipu). Estas iniciativas pretendem reverter a ideia de que os bens naturais são recursos que podem ser explorados e rentabilizados ao abrigo do direito de propriedade consagrado nos sistemas legais, que valoriza aqueles bens em função da sua utilidade ou da sua relevância para os seres humanos. Dar personalidade jurídica aos bens naturais é reconhecer que têm valor intrínseco, independentemente do uso ou função, e que são recursos finitos, mas também que a espécie humana é parte – e não proprietária – dos ecossistemas.
Esta visão integrada entre humanos e natureza faz parte das cosmovisões de vários povos indígenas (consideradas, de forma redutora, como animistas), para quem as entidades naturais (florestas, rios, montanhas) são seres vivos, com a sua agência e identidade próprias. Para muitos desses povos não há dissociação da sua existência em relação à natureza (não-humana): convivem e compartilham com ela a construção dos seus modos de viver, costumes e tradições. Por conseguinte, ao adoptar esta perspectiva indígena e incorporá-la no sistema legal, reconhece-se que um rio, por exemplo, é uma entidade viva dotada de personalidade, de direitos e garantias. Pretende-se assim acautelar a proteção desse bem natural, cuja representação legal passa a ser mediada por guardiões designados para o efeito (em geral, representantes das populações que dele dependem directamente), agindo sempre no seu melhor interesse e respeitando ao mesmo tempo o seu valor intrínseco.
Rio Whanganui (Nova Zelândia)
Convém notar que aquelas iniciativas só se materializaram nos últimos anos, após décadas de acumulação de pensamento e conhecimento sobre ecologia, assim como de reivindicações e conflitos, protagonizados quer pelos movimentos ambientalistas, quer pelas comunidades indígenas. Por exemplo, a luta pela reapropriação do rio neozelandês pelos Whanganui Iwi (povo indígena Maori) durou mais de um século (iniciou-se na década de 1870)! Trata-se na verdade de um confronto entre visões de mundo radicalmente diferentes: por um lado, a do modelo socioeconómico globalizado (de matriz europeia, antropocêntrica e colonial) baseado na ideologia neoliberal e na economia de mercado que promove o materialismo, o utilitarismo, a acumulação e a usurpação, e, por outro, a das sociedades indígenas cujas práticas quotidianas promovem o exercício colectivo de responsabilidade em proteger, conservar, prosperar e melhorar no longo prazo para assegurar o bem-estar das gerações futuras. Como realça o académico e político Maori Pita Sharples: “Ambos os modelos de sociedade buscam aumentar o valor, mas a diferença está em como cada um valoriza o recurso: pelo lucro que pode ser obtido? Ou pelo contributo em taonga (conceito Maori afim de património ou riqueza, material e imaterial) para a sobrevivência do grupo?” (citado aqui)
Rio Douro
A actual crise ecológica global poderia ser uma oportunidade para transformar os valores sociais e culturais, assim como os sistemas políticos, jurídicos e económicos das sociedades contemporâneas que não foram capazes de impedir a destruição e degradação dos bens naturais – bastaria invocar os desastres ambientais que ocorreram no Estado de Minas Gerais como resultado da rotura das barragens de Mariana (2015) e de Brumadinho (2019) que afectaram as bacias dos rios Doce e Paraopeba, respectivamente (ver p.ex. aqui e aqui).
Rio Doce (Minas Gerais)
A introdução de reformas no sistema jurídico com a incorporação dos direitos da natureza e da atribuição de personalidade jurídica aos bens naturais são passos importantes para uma reconciliação das leis humanas com as da natureza, mas são claramente insuficientes (ver também aqui). O que está em causa é também um sistema económico que é incompatível com a sustentabilidade ambiental e a manutenção dos ecossistemas, assim como uma visão dominante do mundo nascida do materialismo e racionalismo cartesiano e intensificada pela hegemonia do paradigma tecnocientífico, que dessacralizou a natureza e desvalorizou modos de vidas e cosmovisões considerados primitivos e retrógrados. Precisamos pois de reconciliar o direito, mas também a economia e a ética, com a ecologia. De recuperarmos uma visão de mundo ecocêntrica que reconheça os humanos como parte integrante de um mundo-mais-do-que-humano cujas componentes são interdependentes e têm valor intrínseco – ou seja, são sagradas. Para que os nossos modos de vida e os nossos valores se realinhem com a continuidade da vida e dos ecossistemas dos quais dependemos.
Rio Erges (afluente do Tejo)
Termino invocando um magnífico texto poético (‘Cry me a river’) da educadora ambiental Suprabha Seshan, sedeada em Kerala (Índia), onde ela tece uma elegia aos rios adoptando a voz de uma mulher junto ao rio Kabini que se dirige às mulheres ao longo do rio Chalakudy (mais a Sul) que lutam contra a construção da barragem de Athirapally. Transcrevo excertos das suas palavras inspiradas e comoventes:
“It is said that the currents in the economies are more valuable than the currents in the ecologies. All these flows (material and immaterial, invented and real), are interchangeable. It is said that cash flow is like river flow, that money equals currency equals flow equals ecology equals economy equals happiness equals food equals dynamic business deals, equals the construction industry equals upliftment of poverty.”

“It is said that the living world is an illusion, and the electrified world is real. It is said that the living world is needed to deliver us to the pinnacle of prosperity exemplified by the machine world, and that this is our glorious destiny.”

“Rivers are not alive, it is said. They are, like factories and cars, systems that can be taken apart and put together. It is said that the world’s economy needs the world’s rivers, the world’s oceans, the world’s forests, and the world’s people. That the world’s economy is infinitely more important than the world’s ecology, which is now measured at $33 trillion (only). That the currents between bank accounts flow sweeter than the waters of a river, enabling our evolution as a species, by nourishing our bellies, our minds and hearts and ever-demanding bodies. Nearly all the rivers in the world have been dammed, what’s your worry, are you not being supported by the economy?”

“Rivers are needed for progress, it is said. Communities along rivers can be sacrificed for modern culture. Historical and continuing injustices are irrelevant, it is said, for now there is progress. Resettlements, the disfigurement of ancient homes and biomes, and the shunting of land-based cultures into digital smart cities (unsmogged, unpolluted, uncrowded, uncriminal, unreliant on the earth) are necessary undertakings (…) For powering the virtual flow, delivering more goodness, happiness and wellbeing than the rivers could ever do if they were free flowing.”

“Rivers are transport systems for trade, it is said.

Rivers are beautiful, it is said.
River-front property is costly, it is said.
Rivers attract millions of tourists, it is said.
You can’t step into the same river twice, it is said.
Rivers make great metaphors, it is said.
Life is like a river, it is said.
Riverlike, we flow, it is said.
Rivers are the arteries of the planet, it is said.”