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Cry me a river - ilustração de Jackie Morris (2015) |
Eu sou o rio e o rio sou eu. Provérbio Maori
You cannot dam a river and have it free. Suprabha Seshan
A atribuição de personalidade jurídica a elementos naturais como rios
ou montanhas tem sido divulgada nos últimos anos como uma importante conquista
dos movimentos ambientalistas, mas também das populações ribeirinhas (ver p.ex.
aqui ou aqui),
e foi acompanhada pelos movimentos mais abrangentes de reconhecimento
legal dos direitos da natureza, em geral (ver p.ex. aqui ou aqui), e dos rios, em particular
(Declaração Universal dos Direitos dos Rios, 2020). O processo teve início apenas recentemente na Nova
Zelândia com a designação do parque natural Te Urewera (2014) e do rio Whanganui (2017) como sujeitos legais de direitos. Processos idênticos
decorreram na Índia (rio Ganges e o seu afluente Yamuna), em comunidades locais
nos EUA, na Colômbia (rio Atrato)
e já este ano no Canadá (rio Muteshekau-shipu). Estas iniciativas pretendem reverter a ideia de que os
bens naturais são recursos que podem ser explorados e rentabilizados ao abrigo
do direito de propriedade consagrado nos sistemas legais, que valoriza aqueles
bens em função da sua utilidade ou da sua relevância para os seres humanos. Dar
personalidade jurídica aos bens naturais é reconhecer que têm valor intrínseco,
independentemente do uso ou função, e que são recursos finitos, mas também que a espécie
humana é parte – e não proprietária – dos ecossistemas. Esta visão integrada
entre humanos e natureza faz parte das cosmovisões de vários povos indígenas (consideradas, de forma redutora, como animistas), para quem as entidades naturais (florestas, rios, montanhas) são seres vivos,
com a sua agência e identidade próprias. Para muitos desses povos não há
dissociação da sua existência em relação à natureza (não-humana): convivem e compartilham com ela a
construção dos seus modos de viver, costumes e tradições. Por conseguinte, ao adoptar
esta perspectiva indígena e incorporá-la no sistema legal, reconhece-se que um
rio, por exemplo, é uma entidade viva dotada de personalidade, de direitos e
garantias. Pretende-se assim acautelar a proteção desse bem natural, cuja representação
legal passa a ser mediada por guardiões designados para o efeito (em geral,
representantes das populações que dele dependem directamente), agindo sempre no
seu melhor interesse e respeitando ao mesmo tempo o seu valor intrínseco.
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Rio Whanganui (Nova Zelândia) |
Convém notar que aquelas iniciativas só se materializaram nos últimos
anos, após décadas de acumulação de pensamento e conhecimento sobre ecologia, assim
como de reivindicações e conflitos, protagonizados quer pelos movimentos
ambientalistas, quer pelas comunidades indígenas. Por exemplo, a luta pela
reapropriação do rio neozelandês pelos Whanganui Iwi (povo indígena Maori)
durou mais de um século (iniciou-se na década de 1870)! Trata-se na verdade de
um confronto entre visões de mundo radicalmente diferentes: por um lado, a do
modelo socioeconómico globalizado (de matriz europeia, antropocêntrica e
colonial) baseado na ideologia neoliberal e na economia de mercado que promove
o materialismo, o utilitarismo, a acumulação e a usurpação, e, por outro, a das
sociedades indígenas cujas práticas quotidianas promovem o exercício colectivo
de responsabilidade em proteger, conservar, prosperar e melhorar no longo prazo
para assegurar o bem-estar das gerações futuras. Como realça o académico e
político Maori Pita Sharples: “Ambos os modelos de sociedade buscam aumentar o
valor, mas a diferença está em como cada um valoriza o recurso: pelo lucro que pode
ser obtido? Ou pelo contributo em taonga
(conceito Maori afim de património ou riqueza, material e imaterial) para a
sobrevivência do grupo?” (citado aqui) |
Rio Douro |
A actual crise ecológica global poderia ser uma oportunidade para
transformar os valores sociais e culturais, assim como os sistemas políticos,
jurídicos e económicos das sociedades contemporâneas que não foram capazes de impedir
a destruição e degradação dos bens naturais – bastaria invocar os desastres ambientais
que ocorreram no Estado de Minas Gerais como resultado da rotura das barragens
de Mariana (2015) e de Brumadinho (2019) que afectaram as bacias dos rios Doce
e Paraopeba, respectivamente (ver p.ex. aqui
e aqui). |
Rio Doce (Minas Gerais) |
A introdução de reformas no sistema jurídico com a incorporação dos direitos da
natureza e da atribuição de personalidade jurídica aos bens naturais são passos
importantes para uma reconciliação das leis humanas com as da natureza, mas são
claramente insuficientes (ver também aqui).
O que está em causa é também um sistema económico que é incompatível com a
sustentabilidade ambiental e a manutenção dos ecossistemas, assim como uma
visão dominante do mundo nascida do materialismo e racionalismo cartesiano e
intensificada pela hegemonia do paradigma tecnocientífico, que dessacralizou a
natureza e desvalorizou modos de vidas e cosmovisões considerados primitivos e
retrógrados. Precisamos pois de reconciliar o direito, mas também a economia e
a ética, com a ecologia. De recuperarmos uma visão de mundo ecocêntrica que
reconheça os humanos como parte integrante de um mundo-mais-do-que-humano cujas
componentes são interdependentes e têm valor intrínseco – ou seja, são
sagradas. Para que os nossos modos de vida e os nossos valores se realinhem com
a continuidade da vida e dos ecossistemas dos quais dependemos. |
Rio Erges (afluente do Tejo) |
Termino invocando um magnífico texto poético (‘Cry me a river’)
da educadora ambiental Suprabha Seshan, sedeada em Kerala (Índia), onde ela
tece uma elegia aos rios adoptando a voz de uma mulher junto ao rio Kabini que
se dirige às mulheres ao longo do rio Chalakudy (mais a Sul) que lutam contra a
construção da barragem de Athirapally. Transcrevo excertos das suas palavras inspiradas
e comoventes:“It
is said that the currents in the economies are more valuable than the currents
in the ecologies. All these flows (material and immaterial, invented and real),
are interchangeable. It is said that cash flow is like river flow, that money
equals currency equals flow equals ecology equals economy equals happiness
equals food equals dynamic business deals, equals the construction industry
equals upliftment of poverty.”
“It
is said that the living world is an illusion, and the electrified world is
real. It is said that the living world is needed to deliver us to the pinnacle
of prosperity exemplified by the machine world, and that this is our glorious
destiny.”
“Rivers
are not alive, it is said. They are, like factories and cars, systems that can
be taken apart and put together. It is said that the world’s economy needs the
world’s rivers, the world’s oceans, the world’s forests, and the world’s
people. That the world’s economy is infinitely more important than the world’s
ecology, which is now measured at $33 trillion (only). That the currents
between bank accounts flow sweeter than the waters of a river, enabling our
evolution as a species, by nourishing our bellies, our minds and hearts and
ever-demanding bodies. Nearly all the rivers in the world have been dammed,
what’s your worry, are you not being supported by the economy?”
“Rivers
are needed for progress, it is said. Communities along rivers can be sacrificed
for modern culture. Historical and continuing injustices are irrelevant, it is
said, for now there is progress. Resettlements, the disfigurement of ancient
homes and biomes, and the shunting of land-based cultures into digital smart
cities (unsmogged, unpolluted, uncrowded, uncriminal, unreliant on the earth)
are necessary undertakings (…) For powering the virtual flow, delivering more
goodness, happiness and wellbeing than the rivers could ever do if they were
free flowing.”
“Rivers
are transport systems for trade, it is said.
Rivers
are beautiful, it is said.
River-front
property is costly, it is said.
Rivers
attract millions of tourists, it is said.
You
can’t step into the same river twice, it is said.
Rivers
make great metaphors, it is said.
Life
is like a river, it is said.
Riverlike,
we flow, it is said.
Rivers
are the arteries of the planet, it is said.”
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