sábado, 27 de julho de 2024

Respigos de Primavera #3: Equívocos e lacunas no debate sobre imigração

Quem for contra a imigração é contra o desenvolvimento do país. Álvaro Mendonça e Moura (presidente da CAP)

Sem imigrantes a economia entrava em colapso. Francisco Assis (deputado do PS e ex-presidente do Conselho Económico e Social)

Em Portugal não há imigrantes a mais, há um problema de regularização de imigrantes e de acolhimento de imigrantes. Mariana Mortágua (dirigente do BE)


Tenho-me cruzado com vários escritos e tomadas de posição recentes sobre o tema da imigração em Portugal e lido muitas afirmações peremptórias que me deixaram incomodado ou perplexo. Sei que o assunto é complexo e que este tipo de afirmações já vem de há uns anos a esta parte – ver p.ex. aqui. Mas parece-me que existem vários mal-entendidos, contradições e mesmo alguma hipocrisia, com vieses ideológicos à mistura, nas abordagens ao tema. Uma daquelas afirmações repetida por pessoas de diferentes sectores e cores políticas é a de que ‘Portugal precisa de imigrantes’ ou, na sua versão ainda mais discutível, de que ‘a economia nacional colapsaria sem imigrantes’. A nuance entre os afiliados com a esquerda ou com a direita é que os primeiros defendem de forma mais veemente a legalização dos imigrantes, assim como salários justos e condições de trabalho e de vida dignos. No entanto, nem sempre apontam o dedo ao contexto económico e político que, não só não previne, como até promove, o oportunismo dos empregadores que se aproveitam da precariedade e fragilidade dos trabalhadores estrangeiros, pagando-lhes salários de miséria e não lhes oferecendo condições de trabalho dignas. Mas mais do que isso, não tenho encontrado reflexões mais aprofundadas sobre as consequências socioeconómicas e culturais da imigração precária a médio-longo prazo, ou sobre as suas causas profundas, nem que ponham em causa explicitamente o modelo de negócio dos empregadores, frequentemente mercantilista e neoliberal. Também não tenho encontrado nos debates sobre imigração quem questione a insustentabilidade ambiental e socioeconómica, dos sectores de actividade que empregam maioritariamente imigrantes, como a agricultura, a construção ou o turismo, e que necessitariam de profundas transformações. Em contraponto, tenho ouvido as crescentes investidas de sectores da chamada ‘extrema-direita’ que usam os imigrantes como bode expiatório para todos os males sociais ou económicos de que a sociedade portuguesa padece, recusando explicações menos simplistas como o oportunismo económico e a incompetência ou desfaçatez política, nomeadamente dos governantes do centrão que se revezam no poder há décadas e que são cúmplices ou fantoches do poder económico que beneficia da mão-de-obra precária.


Como exemplo do primeiro tipo de afirmações, recorro a artigos ou entrevistas recentes no jornal Público. Um deles (aqui) cita declarações do presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), Álvaro Mendonça e Moura, que afirmou taxativamente que “É muito importante percebermos todos que quem for contra a imigração é contra o desenvolvimento do país. Isto precisa de ser interiorizado”, tendo destacado a importância dos trabalhadores estrangeiros para sectores como a agricultura, turismo ou construção, que dependem desta mão-de-obra “para a sua sobrevivência”. O presidente da CAP defendeu ainda que se evitem populismos, nomeadamente a ideia de que Portugal poderia prescindir destes trabalhadores, o que disse ser “um disparate com gravíssimas implicações económicas”. Sobre as condições de trabalho e de vida dos imigrantes a laborar no sector agrícola, Mendonça e Moura defendeu que sejam contratados “em boa e devida forma”, com contratos de trabalho, e que os trabalhadores estrangeiros sejam “devidamente integrados, com condições de vida dignas e com respeito pelos seus direitos”. Já sobre o oportunismo e a falta de ética dos empregadores (e sub-contratadores) que exploram a mão-de-obra barata para maximizar os lucros nada disse! O mesmo artigo refere ainda que Mendonça e Moura criticou aquilo que afirma (demagogicamente) “ser um "extremismo ambiental" que não aceita a agricultura e que gostaria que toda a paisagem fosse "um sítio de lazer para o citadino ir uma vez por ano", vincando que não se pode fazer uma dissociação entre sustentabilidade ambiental, social e económica.” Claro que em relação ao modelo de agricultura praticado por muitos empregadores, em particular no Alentejo, esse sim verdadeiramente extremista, quer ambiental- quer socialmente, nada é dito – escrevi sobre este tema aqui.


Curiosamente, no mesmo dia, o redator principal do Público, Manuel Carvalho, escreveu um artigo de opinião onde denuncia a hipocrisia e indiferença no debate sobre a imigração, afirmando: “A imigração tornou-se assim objecto de reacções a quente, emocionais, por vezes sectárias. Não devia ser preciso um incêndio, um dislate de um político ou uma agressão bárbara para que nos obrigássemos a reflectir sobre as condições em que vive uma parte importante dos que nos procuram para viver e trabalhar. (…) Se essas pessoas são vítimas de racismo, a prova está na indiferença com que a sociedade portuguesa assiste à sua exclusão. Pode ser por causa de um sentimento de impotência, pelo egoísmo de dispor de serviços baratos ou por simples alheamento, mas a imigração recente deu lugar à banalização do abuso e à instituição da ilegalidade.” Estranhamente, não se refere às declarações do presidente da CAP, publicadas nesse mesmo dia… Carvalho defende ainda que: “Se a indiferença é pecado dos cidadãos, a responsabilidade do que está a acontecer é principalmente do Estado. A ideia onírica de abrir as portas a imigrantes sem acautelar as condições para os legalizar, acolher, encaminhar e proteger foi um crime contra o país e contra as pessoas.” Concordo com a denúncia da indiferença dos cidadãos e da negligência de entidades públicas e decisores políticos, mas faltou claramente apontar o dedo à falta de escrúpulos e ao oportunismo dos empregadores. O autor conclui assim: “Ficámos reféns do extremismo racista da direita ou do relativismo hipócrita da esquerda. O primeiro, um instrumento ideológico, o segundo, uma falácia porque, como escreveu Francisco Mendes da Silva [advogado e comentador], «a imigração é mesmo a única matéria em que a esquerda portuguesa é a favor da desregulação ultraliberal dos mercados».” Concordo em parte com esta última afirmação, como desenvolverei mais à frente, mas, mais uma vez, isentam-se os empregadores oportunistas e sem escrúpulos de culpas no cartório. Também não senti um questionamento do sistema económico que supostamente depende da mão-de-obra imigrante para a sua sobrevivência. Lamentavelmente, a afinidade de Manuel Carvalho pelo modelo agrícola industrial desenvolvido por grandes sociedades, multinacionais ou fundos de investimento internacionais, ‘baseado em tecnologia e ciência’ e que alega ser sustentável, mas que se alimenta da mão-de-obra barata e da devastação ambiental, tinha ficado patente em anteriores artigos seus, onde defende (sem espírito crítico) aquelas práticas agrícolas, apelidando-as de ‘revolução silenciosa’ (aqui) e de serem o ‘lado sexy’ da agricultura nacional (aqui)!


Numa entrevista recente, Francisco Assis, actual deputado (e ex-eurodeputado) do PS, e ex-presidente do Conselho Económico e Social, assume uma postura semelhante à de Mendonça e Moura: “A Europa precisa de imigrantes e Portugal precisa de imigrantes. Fui presidente do Conselho Económico e Social durante os últimos três anos e meio. E vi, variadíssimas vezes, os representantes nas reuniões da concertação social, os presidentes das confederações empresariais, da indústria, do turismo, do comércio e serviços da agricultura, apelar ao governo para que o governo fosse tomando providências no sentido de garantir a vinda mais fácil de imigrantes para Portugal, sob pena de alguns sectores da nossa actividade económica, pura e simplesmente entrarem em colapso.” Para além da sustentabilidade dos sectores de actividade nomeados, Assis menciona ainda a necessidade de compensar o que apelida de ‘recuo demográfico’, como justificação para a imprescindibilidade da imigração. Mais adiante afirma: “a ideia de que nós vamos agora aqui escolher os imigrantes é completamente absurda. A ideia de que nós precisamos de imigrantes altamente qualificados… é bom que venham pessoas altamente qualificadas, mas a verdade é que não é essa a preocupação fundamental dos nossos agentes económicos. Eles precisam de pessoas para trabalhar na indústria, pessoas para trabalhar nos restaurantes, nos cafés, nos hotéis, para trabalhar nas explorações agrícolas.” Assis não põe assim em causa a conduta oportunista dos ‘agentes económicos’ daqueles sectores de actividade, referindo-se antes à necessidade de legalizar e de proporcionar condições dignas para os trabalhadores estrangeiros, além de criticar os argumentos falaciosos da extrema-direita sobre os imigrantes.

Num artigo de opinião, a economista Susana Peralta, invocou igualmente os argumentos do colapso de sectores-chave da economia e da reversão do declínio populacional para justificar a necessidade de acolher trabalhadores imigrantes, citando dados de um relatório do Observatório das Migrações do final de 2023. Mas a sua análise foca-se principalmente na denúncia das várias debilidades do apoio social aos imigrantes que não lhes garante as condições dignas para viverem e trabalharem, destacando a precariedade das associações de apoio aos imigrantes e a burocracia das entidades públicas, assim como as redes de tráfico de mão-de-obra e a falta de habitações dignas e acessíveis. Peralta afirma: “A falta de meios das organizações causa-me bastante perplexidade porque a dignidade dos imigrantes devia ser uma prioridade absoluta das nossas políticas públicas… (…) os imigrantes estão expostos a maior precariedade, relações laborais mais instáveis, salários mais baixos e maior sinistralidade em setores como a construção civil, hotelaria e restauração, serviço doméstico: outra ótima razão para deixar as organizações de apoio continuarem o seu trabalho.” A validade destes argumentos é confirmada por notícias mais recentes - ver p.ex. aqui. A autora denuncia ainda as bandeiras típicas do discurso xenófobo e anti-imigração, exemplificadas pela moção “Portugal precisa de mais portugueses” apresentada na convenção nacional do Chega. No entanto, Peralta não faz menção ao carácter mercantilista e oportunista dos empregadores dos sectores que empregam mão-de-obra pouco qualificada, nem questiona a nossa aposta e consequente dependência daqueles sectores de actividade económica ou a ineficácia (ou inexistência) da sua regulação ou fiscalização. Talvez não seja de espantar a ausência de um questionamento mais explícito do modelo económico neoliberal por parte da autora, docente numa instituição de ensino (a NOVA School of Business and Economics) que é subserviente daquele mesmo modelo económico – ver p.ex. aqui.

Num registo não muito diferente, mas muito focadas na questão da necessidade de legalização dos imigrantes presentes no território nacional ou a nível europeu, foram as declarações e opiniões expressas por dirigentes do BE (Mariana Mortágua, Graça M. Pinto, Fabian Figueiredo) em artigos no site esquerda.net ou no Público, dirigindo críticas a documentos como o Pacto Europeu das Migrações (aqui) ou o Plano de Ação para as Migrações (PAM) proposto pelo actual governo (aqui e aqui), ou à actuação da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA, ex-SEF)(aqui). As falhas sucessivas da AIMA são evidentes e têm vindo a ser devidamente denunciadas – ver p.ex. aqui ou aqui. No entanto, reduzir o problema à questão da legalização dos imigrantes e à inoperância das entidades públicas, parece-me claramente insuficiente para o caracterizar adequadamente. No artigo em que alerta para os perigos da imigração ilegal, Mariana Mortágua afirma: “«Imigração ilegal» é o que acontece quando o Estado recusa acolher as pessoas que a economia convocou.” Por seu lado, em declarações sobre o PAM, Fabian Figueiredo afirma: “[a AIMA] não responde às necessidades dos imigrantes em Portugal, que são tão importantes, nomeadamente, para a economia do país, tal como já reconheceu o presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal, e para a sustentabilidade da Segurança Social.” Quer a primeira, quer o segundo, reforçam a ideia da indispensabilidade dos imigrantes para ‘a economia’ sem no entanto referir explicitamente ou questionar o tipo de economia em que os imigrantes se integrariam após a legalização. Pior esteve Fabian Figueiredo ao invocar a argumentação do presidente da CAP (cujas declarações comentei acima) ou a sustentabilidade da Segurança Social.

É evidente que o modelo económico e os poderes políticos dominantes promovem ou permitem as situações de grande injustiça e precariedade que têm sido denunciadas, mas infelizmente (e convenientemente) rapidamente esquecidas, como as que resultam da actuação de máfias do tráfico de mão-de-obra de imigrantes, muitas vezes com o conluio dos empregadores ou dos sub-contratadores – ver exemplos referentes ao sector agrícola relatados aqui, aqui, aqui ou aqui. No entanto, acho que é fundamental rebater frontalmente a afirmação de que 'a economia' precisa de imigrantes, pois é a natureza dessa mesma economia que terá de de ser questionada. Aquilo de que precisamos seria uma economia que servisse as pessoas - imigrantes ou não - nos seus territórios e que as fixasse nesses mesmos territórios, promovendo a justiça social e a sustentabilidade ambiental.

Embora esteja mais ou menos de acordo com algumas das diferentes opiniões que detalhei acima, sinto falta de uma maior abertura e abrangência nos debates sobre o tema obviamente complexo da imigração, que incluam questões de fundo como: as consequências para todos os trabalhadores assalariados, imigrantes ou não, da prática oportunista dos agentes económicos que provocam a redução de salários e das regalias sociais, desencadeando descontentamento social generalizado; a natureza mercantilista e predatória do modelo socioeconómico dominante que promove práticas económicas que tiram proveito e fomentam a precariedade laboral, sem que os governos locais tenham capacidade ou vontade política para as regular; as causas profundas dos movimentos migratórios, que incluem nomeadamente o modelo socioeconómico dominante globalmente e a dinâmica geopolítica resultante, que conduzem a profundas desigualdades e injustiças sociais ou ao desencadear de conflitos nos países de origem (que são muitas vezes, por sua vez, consequência das políticas financeiras e económicas dos países ocidentais de destino dos imigrantes); os impactos sociais e culturais da presença de pessoas com valores e práticas culturais muito diversas das dos países de acolhimento e como conciliá-las com o respeito pela diversidade, pela coexistência e pela identidade cultural de cada região. Sei que é um aspecto controverso, mas em relação a este último ponto, considero especialmente relevante que se abram discussões sobre os impactos da presença de muitos imigrantes cuja presença no nosso país é temporária, porque serve apenas como trampolim para países europeus com melhor nível de vida ou porque se destina meramente a fazer o dinheiro suficiente para regressar ao país de origem, não havendo assim uma ligação duradoura ao território ou à cultura, tendo como consequência uma progressiva descaracterização ou até degradação desses mesmos territórios, como acontece p.ex. em certas regiões urbanas do Algarve ou em zonas suburbanas dos arredores de Lisboa. É evidente que cuidar do território e das comunidades locais deve ser uma tarefa colectiva de todos os que o habitam, imigrantes ou não, assim como das instituições aí sedeadas, mas se não existir uma ligação forte ou afinidade cultural com esse território existem fortes probabilidades de que ele se descaracterize ou se degrade. Existem vários exemplos em países europeus com uma história de imigração mais antiga (como a França, a Holanda ou a Suécia) e que se debatem com várias destas questões e com níveis de descontentamento social que têm favorecido a ascenção de partidos políticos populistas e xenófobos. Para concluir, transcrevo o excerto final do artigo de Manuel Carvalho que citei acima: "[há que] discutir sem medo a imigração tal como ela está a acontecer e as suas consequências. Ter medo do debate aberto é dar trunfos à extrema-direita."

domingo, 30 de junho de 2024

Respigos de Primavera #2: O descalabro dos ODS e o futuro incerto

Devemos acelerar a ação para os ODS — e não temos tempo a perder
. António Guterres

Desenvolvimento sustentável significa um mundo que é economicamente próspero, socialmente justo, ambientalmente sustentável e em paz. E nós não temos nada disso actualmente. Jeffrey Sachs

Não é a África que é um problema, mas sim o mundo. Logo, no centro dos ODS deveria estar o funcionamento desse mundo. Elísio Macamo

Foram publicados em Junho dois relatórios que fazem uma avaliação ou balanço da chamada Agenda 2030 dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), lançada pela ONU em 2015 (ver p.ex. aqui): o ‘Sustainable Development Report 2024’ (SDR 2024), publicado pela ‘Sustainable Development Solutions Network’ (SDSN) a 17 de Junho, e o ‘Sustainable Development Goals Report 2024’ (SDG 2024), divulgado pela ONU a 28 de Junho. Já tinha abordado a temática dos ODS em dois posts meus em 2019 (aqui) e em 2023 (aqui), onde destaquei algumas críticas àquela agenda.

As conclusões dos dois relatórios não são muito diferentes: os 17 ODS, assim como a maioria (pelo menos 70%) das correspondentes 167 metas, não serão presumivelmente cumpridos até 2030. As razões alegadas para esse falhanço drástico são várias: dificuldades em monitorizar o progresso nos diferentes países, descoordenação internacional, crises externas – pandemia, guerra na Ucrânia, inflação -, constrangimentos financeiros, desfasamento entre propostas técnicas e científicas e falhas na sua implementação pelo poder político. Sem grande surpresa, os ODS mais longe de serem atingidos prendem-se com questões ambientais e sociais, e com a paz.

Mas vamos por partes. O primeiro relatório (SDR 2024) foi apresentado durante a conferência internacional “Paving the Way to the Pact of the Future” organizada pela SDSN-Portugal e que decorreu em Lisboa nos dias 17 e 18 Junho. Esta conferência antecede a grande ‘Cimeira do Futuro’, convocada por António Guterres para Setembro na sede das Nações Unidas em Nova Iorque, onde será apresentado o chamado ‘Pacto para o Futuro’ que tem como objectivo “voltar a colocar o mundo no caminho certo para alcançar os ODS” (ver p.ex. aqui e aqui). O Público dedicou-lhe um extenso artigo que resume assim o diagnóstico feito no relatório: “A análise mostra que não apenas não estamos no caminho para atingir nenhum dos ODS a nível global, como ainda existem «grandes desafios» em seis dos 17 objectivos: fim da fome (ODS 2), saúde e bem-estar (3), comunidades e cidades sustentáveis (11), vida marinha (14), vida terrestre (15) e paz, justiça e instituições fortes (16). As metas relacionadas com os sistemas alimentares e terrestres, distribuídas por diferentes ODS, estão «particularmente fora de rumo», nota o relatório. Os restantes objectivos mantêm-se estagnados. Para o objectivo nº 10, de redução das desigualdades, não há sequer dados para fazer uma avaliação rigorosa sobre a tendência. Em suma, não estamos nada bem. (…) Tendo em conta que já se ultrapassou metade do tempo para fazer cumprir a Agenda 2030, as velocidades extremamente díspares [em diferentes países] são particularmente penosas de observar.” Mais à frente pode ler-se: “Ao observar os objectivos e as metas, os que mais avançaram parecem estar relacionados com mercados e dinheiro – energia limpa (ODS 7) e indústria, inovação e infra-estrutura (ODS 9) –, enquanto os aspectos sociais, ambientais e da paz parecem estar em retrocesso”. Ainda no mesmo artigo destacam-se alguns factores que terão contribuído para o incumprimento dos ODS: as crises externas, a inexistência de dados e métricas adequados, a ausência de convergência entre os ODS e as políticas nacionais e europeias, e as lacunas no financiamento aos países mais pobres. Grande parte da análise pareceu-me bastante superficial, sem aflorar aspectos que fazem parte das criticas de fundo aos ODS que detalharei mais adiante, sendo as incongruências entre os diferentes ODS mencionadas apenas indirectamente.

Na verdade, o aspecto que mais me surpreendeu no artigo foi a invocação do tema do ‘pós-crescimento’ e da crítica ao PIB como métrica de performance económica (‘Beyond GDP’ foi o tema de uma das sessões do primeiro dia da conferência que se realizou em Lisboa – ver aqui, aos 4h48min), assim como o questionamento da economia de mercado, em particular pelo presidente da SDSN, o economista Jeffrey Sachs, que deu em simultâneo uma extensa entrevista ao Público. No artigo citado acima escreve-se: “Um dos grandes obstáculos para que os ODS sejam considerados prioritários é que «organizámos a economia mundial em grande parte como um sistema de mercado de propriedade privada», explicou Jeffrey Sachs (…). Apesar de o Estado ter um papel importante em países como os da União Europeia, «as forças políticas dominantes continuam a ser impulsionadas pelos mercados».” E, na entrevista, Sachs afirma quando questionado sobre a pertinência do decrescimento: “Aprendemos que existem limites planetários — podemos agradecer aos cientistas por nos terem explicado isso de forma mais clara — e precisamos de viver dentro deles. O que é que isso significa em relação ao crescimento? O crescimento é simplesmente uma taxa de mudança de algo. Decrescimento significa que já não há mudanças? Não. Significa que não há mudança nas coisas prejudiciais. Precisamos de decrescimento nos combustíveis fósseis, sem dúvida. Precisamos de decrescimento na desmatação para criar pastagens, com certeza. Precisamos de decrescimento na utilização da informação digital? Não, porque há pessoas no mundo que não têm acesso a ela actualmente — mais informação será melhor. Decrescimento dos serviços de saúde? Claro que não — precisamos de mais serviços de saúde, porque há milhares de milhões de pessoas sem cobertura adequada. Acho que a discussão sobre o decrescimento não é muito precisa.” Jeffrey Sachs revela grande desconhecimento sobre o que é o decrescimento (ver p.ex. aqui), mas estas suas afirmações não são de estranhar: ele assume-se como social-democrata e tecnocrata, que acredita no recurso a instrumentos económicos para atingir objectivos pré-definidos, executados por especialistas e sem constrangimentos ideológicos ou políticos. Aos cidadãos fica reservado o papel de observadores atentos: “O cidadão comum deve compreender os objectivos, perceber se o seu governo está a fazer um bom trabalho ou não, exigir eficiência no governo, sem esbanjamento, corrupção ou guerras inúteis.

Já tinha escrito aqui sobre a agenda do ‘pós-crescimento’ e faço notar que a própria ONU publicou em 2023 o relatório “Valuing what counts - UN System-wide Contribution on Beyond GDP”. Numa secção intitulada ‘Sustentabilidade ou PIB’, o artigo do Público que referi acima consultou também Maria João Rauch, gestora da Rede Nacional para o Desenvolvimento Sustentável (SDSN Portugal): “Há uma desadequação destes modelos e das métricas que medem o desenvolvimento e a realidade. (…) No fundo, nós temos um modelo de desenvolvimento que é baseado na produção da riqueza e que é um modelo pós-guerra.” Mais à frente pode ler-se: “A conclusão é que não basta aumentar o financiamento para investir nos ODS – é preciso introduzir métricas suplementares ao PIB que valorizem [as conquistas sociais] (e penalizem os retrocessos). Ou seja, é preciso uma harmonização entre as várias áreas de política em torno de uma visão conjunta sobre para onde caminha a economia. Ao perder-se essa matriz social, as populações mais desfavorecidas têm sido mais atingidas ao longo do tempo por esta falta de redistribuição. (…) Também nas questões ambientais se vêem as limitações da forma como medimos a saúde das nossas economias, «chegando ao ponto ridículo de que, quando se cortam florestas na Amazónia, o PIB do Brasil sobe, porque estamos a produzir mais». «Dá cabo do planeta, mata gente, mas não faz mal, porque faz subir o PIB».” Não admira pois a afirmação de Sachs durante a entrevista e que citei na abertura do post. O problema é que a agenda dos ODS não vai à raiz da insustentabilidade do sistema socioeconómico dominante, além de vários ODS serem incompatíveis entre si. Mas já lá vamos.

O segundo relatório (SDG 2024), produzido pela ONU, foi apresentado em Nova Iorque com a presença de António Guterres, que fez uma declaração de abertura com algumas das suas já habituais tiradas dramáticas – ver p.ex. aqui ou aqui. Como disse acima, as conclusões são semelhantes às do SDR 2024, mas a sua divulgação foi acompanhada da publicação de imagens-resumo sobre os diferentes ODS, com mensagens bem pungentes – seguem-se alguns exemplos:

Guterres frisou que apesar de melhorias em alguns indicadores (paridade entre géneros, acesso a recursos digitais e internet, controlo das infecções por HIV e produção de vacinas contra a malária, transição para fontes renováveis na produção eléctrica), a velocidade e escala da mudança para um verdadeiro desenvolvimento sustentável ainda são demasiado lentas, além de haver indicadores ambientais e alimentares em retrocesso. Defendeu que serão necessárias acções mais abrangentes e céleres em áreas chave como a paz, a acção climática, a conectividade e economia digital, o envolvimento dos jovens e o financiamento. Em relação a este último tópico, defendeu ainda a aposta na estratégia ‘SDG Stimulus’ para financiar os países em desenvolvimento e que deve incluir a redução da sua dívida. Algumas daquelas propostas de acção já são apregoadas há décadas, mas sem resultados palpáveis, enquanto outras parecem-me demasiado genéricas para promover a mudança necessária.

Acontece que a noção de que as metas dos ODS não iriam ser cumpridas já existe desde o lançamento inicial da Agenda 2030 em 2015, tendo mesmo havido diversas críticas ao seu carácter neocolonialista e neoliberal - ver p.ex. aqui ou aqui. No ano passado, em que se cumpria o meio-caminho do período de vigência da Agenda 2030, o relatório ‘Global Sustainable Development Report 2023’ já indiciava o incumprimento da maioria dos ODS – ver p.ex. aqui ou aqui. As principais conclusões são aliás muito semelhantes às dos relatórios deste ano. Nessa altura, alguns académicos defenderam que os ODS são demasiado ambiciosos, mas que deveriam funcionar como orientação para as políticas regionais ou nacionais, desde que os decisores sigam as propostas técnicas dos estudos académicos e científicos, o que não terá acontecido – ver p.ex. aqui e aqui. Este último artigo cita Charles Kenny, investigador senior do “Center for Global Development”, que afirma: “A razão pela qual estamos a ficar para trás nos ODS é que eles eram super, super ambiciosos. E embora pudéssemos ter a capacidade técnica para cumpri-los, não implementámos agendas políticas super, super ambiciosas aos níveis nacional e global em parte alguma…”. E acrescenta: “talvez a única coisa pior do que não conseguir alcançar os ODS seria não perguntar como acreditámos que eles seriam alcançáveis”.


Tendo surgido na sequência da agenda precedente da ONU dos (oito) Objectivos do Milénio (2000-2015), que não foi cumprida (ver p.ex. aqui), os ODS foram uma tentativa bem-intencionada de integrar as dimensões ambiental, social e económica para desenhar estratégias para o bem-estar e prosperidade universais. No entanto, vários autores têm alertado para as incongruências e para a ‘agenda oculta’ dos ODS, que promovem uma visão de desenvolvimento ocidentocentrica e neoliberal. Para além dos dois artigos citados no início do parágrafo anterior, destaco o relatório “Stockholm+50: Unlocking a better future”, publicado pelo ‘Stockholm Environmental Institute’ em 2022, que destaca a incompatibilidade entre os limites dos sistemas biofísicos e sociais e a agenda de crescimento económico e de bem-estar universal inerente aos ODS: “the world's social and natural biophysical systems cannot support the aspirations for universal human well-being embedded in the SDGs”. Por seu lado, no capítulo sobre integridade planetária do livro “The Political Impact of the Sustainable Development Goals” de 2022, Louis J. Kotzé e colaboradores defendem que os ODS não dão suficiente prioridade à proteção ambiental: “não reconhecem que as preocupações com o planeta, as pessoas e a prosperidade fazem parte de um único sistema terrestre, e que a protecção da integridade planetária não deve ser um meio para um fim, mas um fim em si mesmo” e que “permanecem fixados na ideia de que o crescimento económico é fundamental para alcançar todos os pilares do desenvolvimento sustentável”.  Os autores destacam também as seguintes deficiências no desenho da agenda dos ODS: “o número de objetivos, a estrutura do quadro de objetivos (por exemplo, a sua estrutura não hierárquica), a (in)coerência entre os objetivos, a especificidade ou mensurabilidade das metas, a linguagem utilizada no texto e a sua aposta num desenvolvimento sustentável baseado no sistema económico neoliberal como sua orientação central.” A outra fraqueza da agenda dos ODS apontada pelos mesmos autores prende-se com as orientações éticas baseadas em noções modernistas (ocidentais) de desenvolvimento: “soberania dos seres humanos sobre o seu ambiente (antropocentrismo), individualismo, competição, liberdade (direitos em vez de deveres), interesse próprio, crença no mercado que conduz ao bem-estar colectivo, propriedade privada (protegida pelos sistemas legais), recompensas baseadas no mérito, materialismo, quantificação de valor e instrumentalização do trabalho.

No post que escrevi em 2019, citei um artigo do sociólogo moçambicano Elísio Macamo que critica o viés neocolonialista da agenda dos ODS a partir da perspectiva da sua aplicação em África. Macamo questiona: “É a África que precisa deles ou a burocracia internacional do desenvolvimento e da caridade remunerada que precisa de uma África que precise dos ODS?” e afirma: “Ao invés de lograr o desenvolvimento através da deliberação e da confrontação de projectos alternativos, os ODS sufocam o debate premiando aqueles que com eles concordam”, destacando que “o maior problema consistiu na fraca capacidade africana de gerir os efeitos das soluções.” Põe também em causa a prossecução de fins em detrimento da discussão sobre os meios para os atingir: “A África, hoje, não é pobre por ser pobre. É pobre porque é objecto de intervenção institucional para acabar com a pobreza.” O autor questiona ainda o próprio conceito de pobreza, assim como a estratégia para a mitigar (aspecto que destaquei no meu post de 2023): “Porque nunca nos passou pela cabeça que seja a riqueza o problema? A pobreza é o problema não porque o seja realmente, mas sim porque o sistema económico que gere o mundo assim a torna. (…) é fácil explicar porque a África devia rejeitar os ODS. Eles definem fins que definham o espaço político, impedindo uma discussão sobre os meios. Hoje, a pobreza é activamente produzida pelo modo dominante de gestão do mundo. (…) É suspeito querer resolver um problema criado por uma certa estrutura sem mexer nessa estrutura. Não é a África que é um problema, mas sim o mundo. Logo, no centro dos ODS deveria estar o funcionamento desse mundo.

A definição desadequada do conceito de pobreza e a desconsideração dos factores que para ela contribuem foram também aspectos negativos destacados pelo economista britânico (decrescentista) Jason Hickel logo em 2015 (aqui). No entanto, a sua crítica mais veemente prende-se com a incompatibilidade do crescimento económico com a sustentabilidade ambiental e a justiça social. Hickel considera que os ODS são não só uma oportunidade perdida, mas também activamente perigosos porque fazem depender a agenda de desenvolvimento global de um modelo económico falido. O autor destaca que o crescimento económico não reduz a pobreza e não resolve, antes intensifica, as desigualdades inerentes ao sistema neoliberal dominante, que são praticamente ignoradas pela Agenda 2030. Num artigo de 2024, Sam Markert defende igualmente que a promoção do crescimento a qualquer custo conduz a um desenvolvimento ambiental- e socialmente insustentável, em contradição com os objectivos daquela agenda. Confundindo a sustentabilidade com o progresso em áreas como a eco-eficiência, os ODS incentivam contra-intuitivamente um desenvolvimento insustentável e desigual. Markert defende a necessidade de experimentar modelos económicos alternativos, como a economia de estado estacionário, o decrescimento ou a ‘Doughnut Economics’, que abraçam a sustentabilidade e a prosperidade sem a dependência do crescimento económico, contribuindo para um futuro onde o desenvolvimento humano e a preservação ambiental são possíveis em simultâneo.

Existem várias propostas para tentar salvar, ou, pelo menos, realinhar, a agenda dos ODS que serão discutidas na ‘Cimeira do Futuro’ em Setembro, onde será apresentado o ‘Pacto para o Futuro’ – ver p.ex. aqui ou aqui. Muitas delas parecem-me meramente cosméticas por não fazerem face às questões fundamentais que acabei de mencionar. A discussão em volta do ‘pós-crescimento’ e da substituição do PIB soa-me mais promissora, mas não será claramente suficiente. Um outro indício mais ousado é referido no artigo do Público que citei no início, onde é mencionada uma proposta avançada no relatório ‘SDR 2024’ de restruturação das próprias Nações Unidas (incluiria a reforma da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança, bem como a criação de outros conselhos) e de reforma da arquitectura financeira global. Duvido que seja possível reformar ou mesmo eliminar instituições, como o FMI ou o Banco Mundial, mas seriam sem dúvida passos fundamentais para transformar o sistema financeiro global que, há décadas, beneficia os países do Norte global e penaliza os do Sul. Finalmente, na ONU já se discute qual deverá ser a estratégia pós-2030. Uma ideia, que se baseia em estudos sobre as interações entre os ODS, é o enfoque num número menor de objetivos transversais, incluindo o bem-estar humano, a descarbonização energética e economias sustentáveis e justas (ver p.ex. aqui). Atendendo ao caminho percorrido até agora, duvido que os actuais líderes políticos tivessem a capacidade ou a ousadia de agir no sentido de alcançar a definição desenvolvimento sustentável resumida por Jeffrey Sachs: “um mundo que é economicamente próspero, socialmente justo, ambientalmente sustentável e em paz” - como se viu p.ex. na recente cimeira do G7 (ver p.ex. aqui). A obsessão de Guterres (e de outros líderes mundiais) com a velocidade (“Devemos acelerar a ação para os ODS”) e com chavões vazios (“não deixar ninguém para trás”), são claramente fastidiosos e inconsequentes. Uma gralha no título de um artigo de 2016 que faz a apologia dos ODS acaba por descrever inadvertidamente a sua verdadeira natureza – “Unsustainable Development Goals” (em vez de “UN Sustainable Development Goals”)!


quinta-feira, 27 de junho de 2024

Respigos de Primavera #1: Dia mundial do ambiente, a indignação de Guterres, o meteoro e os dinossauros

No caso do clima, nós não somos os dinossauros. Nós somos o meteoro. Não estamos apenas em perigo - nós somos o perigo. António Guterres

O Dia Mundial do Ambiente (DMA), assinalado no dia 5 de Junho, teve este ano como lema “Our Land, Our Future. We are #GenerationRestoration”, com apelos a 'acelerar' o restauro dos territórios, a resiliência à seca e à desertificação (todo um programa…) – ver p.ex. aqui ou aqui. Na ocasião, o secretário-geral da ONU fez mais um dos seus discursos em registo dramático – ver aqui, aqui ou aqui. Como já aconteceu em várias outras ocasiões (de que dei nota aqui ou aqui), Guterres voltou a avisar que o mundo caminha para um “inferno climático” e que a humanidade está num “momento decisivo” na luta contra as mudanças climáticas, enfatizando que a acção global deve ser “sem precedentes” e recomendando o que as empresas e os países — especialmente do G7 e do G20 — deverão fazer durante os próximos 18 meses para garantir um “futuro habitável para a humanidade”. Talvez por ter feito estas declarações no Museu de História Natural em Nova Iorque, Guterres recorreu a uma analogia com o meteoro que levou à extinção dos dinossauros: “Nós somos o meteoro. (…) Nós somos o perigo” (ver citação no início do post). Como referi anteriormente (p.ex. aqui), fazer esta afirmação sem a contextualizar acarreta o risco de dar a entender que aquele “nós” é toda a humanidade, quando, na verdade, os verdadeiros responsáveis são uma minoria dos seres humanos que se vêm comportando como agentes do ecocídio global. Só que ao contrário do que afirmou Guterres, ‘nós’ também somos os dinossauros, pois faremos igualmente parte da lista de vítimas do ecocídio em curso – ver p.ex. aqui.


Como realçado no artigo do Público citado acima, Guterres indignou-se desta vez contra os que apelidou de “padrinhos do caos climático”, ou seja, as indústrias de combustíveis fósseis (CFs) que fazem greenwashing, lobbying e publicidade quando e onde bem lhes apetece, ao mesmo tempo que arrecadam lucros recorde e recebem milhões em subsídios financiados pelos governos. A autora do artigo (Andréia A. Soares) destaca a comparação feita por Guterres entre a ‘normalização’ da publicidade ao tabaco no passado e a da publicidade actual às petrolíferas, e afirma: “Achávamos normal. Hoje ficaríamos escandalizados ao ver um desportista a promover algo que vicia, provoca doenças e pode matar. Ainda que muitos carreguem nos ombros, nas suas camisolas, nomes de casas de apostas ou marcas de bebidas.” A jornalista parece esquecer-se que p.ex. a Emirates (estampada nas camisetas de jogadores e adeptos) patrocina o Benfica, para além do Real Madrid, o AC Milan ou o Arsenal, entre outros. E o transporte aéreo é dos que mais contribuem para as emissões globais!... Ou seja, alinha com a proibição da publicidade a CFs, mas nada diz sobre estendê-la às companhias aéreas e outras indústrias poluentes... Mais à frente escreve: “O paralelo que Guterres estabelece entre o tabaco e os combustíveis fósseis faz sentido. E o mesmo se pode dizer da proibição de anúncios ou patrocínios vindos de empresas ligadas ao petróleo, gás ou carvão. Um grupo internacional de médicos publicava nas nossas páginas, esta semana, um artigo de opinião reivindicando exactamente isso: a urgência de mobilizar a União Europeia para proibir a publicidade a combustíveis fósseis, a exemplo do que se fez há mais de duas décadas relativamente ao tabaco.” Estranhamente (ou nem tanto), quando é para boicotar a pérfida Rússia e o seu líder demoníaco, podem reabrir-se centrais a carvão e continuar a extraí-lo da terra, como fez a Alemanha... Também já percebemos que o Pacto Ecológico Europeu é sacrificado face às contingências políticas e económicas do momento – como testemunham Jannick Janssen (analista do Centro Jacques Delors) e Viriato S. Marques (VSM), citados neste outro artigo. Janssen defende: “O que temos visto na campanha para as eleições europeias, no entanto, é «um recuo substancial» dos compromissos ambientais, notou. «Partidos liberais e conservadores defendem muitas vezes a reversão de medidas importantes do Pacto Ecológico Europeu, como a eliminação gradual das vendas de veículos com motor de combustão até 2035»”. Por seu lado, VSM afirma sem rodeios: “Os projectos que o Governo do PS aceitou com aplausos, e que o Governo do PSD vai também aceitar, de mirtilo intensivo, olival intensivo, amendoal intensivo, abacate, em terrenos semidesérticos, no Algarve e no Alentejo, são financiados por capitais privados de fundos de investimento — dinheiro que é feito para se reproduzir o mais rápido possível — e por financiamento europeu. (…) Tornar os populistas os responsáveis por isto seria uma caricatura, não é? (…) Não foram os populistas que impediram a aprovação no PE da legislação para controlar os produtos químicos que causam a morte das abelhas. Foi a indústria química, que produz esses produtos. O PE e a Comissão Europeia são permanentemente alvos de pressões, seduções e de recompensas por parte dos sectores económicos mais significativos”. Resumindo as afirmações de VSM, o artigo destaca que “É preciso pedir responsabilidades aos partidos do centro, aqueles que têm governado — Portugal e a Europa. «Custa-me que as pessoas que tinham a obrigação de ter uma visão mais aberta dos riscos que corremos venham, em nome dos galões democráticos, fazer dos populistas o bode expiatório da sua própria incompetência»”.


O artigo do Público citado no início deste post remata assim: “Ofereço um exemplo: há um quarto de século, a selecção portuguesa de futebol tem como patrocinadora oficial uma petrolífera. Hoje achamos normal. Quando ficaremos escandalizados?” A minha resposta a esta última pergunta é que, pela forma como as pessoas foram condicionadas a aceitar as falácias do marketing sem se questionarem, fazendo mesmo de si próprias veículos de publicidade (e pagando para isso!), talvez não tão cedo... Principalmente, se os media dominantes não passarem a assumir uma posição crítica perante os poderes instalados, proporcionando uma efectiva elucidação dos seus públicos.


Voltando ao seu discurso por ocasião do DMA, o líder da ONU agradeceu aos jovens activistas climáticos que pressionam os decisores políticos para agir: “Vocês estão do lado certo da história. Vocês falam pela maioria. Continuem assim; não percam a coragem, não percam a esperança”. Se as palavras (ou os protestos) dos jovens tiverem tanto efeito como as de Guterres, não vamos longe!... Quanto à possibilidade de mitigar de facto a catástrofe ambiental em curso, a inconsequência dos sucessivos discursos dramáticos de António Guterres e o completo desdém por parte do poder político e económico em relação às suas mensagens e apelos (ver também o que escrevi aqui), levam-me a questionar se o próprio Secretário Geral da ONU não será já olhado por muitos como um dinossauro em vias de extinção…

P.S. Num artigo de opinião recente, Ana Cristina Leonardo listou, em tom irónico, as múltiplas e profundas preocupações que Guterres tem expressado publicamente de forma pungente ao longo da sua carreira na ONU.

sábado, 30 de março de 2024

Guerras sem fim – quem as promove e quem beneficia?

War is a drug, and [the media] have chosen to be the dealers. David Bromwich (2023)

If wars can be started by lies… peace can be started by truth. Julian Assange (2011)

The war is not meant to be won, it is meant to be continuous. George Orwell (in ‘1984’)

Este post surgiu como meio de expressar a minha estupefação e indignação perante a recente sucessão de conflitos armados, nomeadamente os da Ucrânia e de Gaza, e as narrativas concertadas usadas pelos governantes e media ocidentais – verdadeiros belicistas (‘warmongers’) – para justificar o seu apoio a uma das forças beligerantes (a Ucrânia, no primeiro caso, e Israel, no segundo), em vez de advogarem as vias diplomáticas de reconciliação. A minha indignação advém não só da hipocrisia gritante daquelas narrativas e da manipulação da opinião pública, mas também da forma como são ocultados os verdadeiros ganhadores das guerras perpétuas (‘forever wars’) – em particular, o chamado complexo militar-industrial (ver p.ex. aqui) – e de como estas distraem a generalidade das pessoas dos outros riscos existenciais prementes, como as catástrofes ambiental e social em curso (ver p.ex. artigos de David Bromwich e Tom Engelhardt que citarei mais adiante). Já tinha aflorado estes tópicos há um ano atrás neste post. Darei aqui ênfase ao papel dos EUA e seus aliados europeus na promoção da guerra, pois é nesse contexto socio-cultural que me insiro, no qual sempre ouvi apregoar a superioridade moral do Ocidente na defesa dos valores da paz, da liberdade e da democracia. É evidente que belicistas e ‘war profiteers’ existem noutras regiões do mundo, incluindo nas potências militares da Rússia e da China. No entanto, não pode haver  desculpa para o modo como os governantes ocidentais têm subvertido os seus alegados valores benévolos, instigando a guerra e manipulando as suas populações para justificar a hostilização, dominação e destruição de outros povos e territórios.


As extensas e acaloradas discussões nos media e redes sociais sobre geopolítica (assunto em que parece haver cada vez mais gente versada…) e sobre quem são ‘os bons’ e ‘os maus’, os anjos e os diabos, nos conflitos em curso, são na sua generalidade superficiais, maniqueístas ou demagógicas, e constituem muitas vezes um impedimento para uma verdadeira elucidação das suas causas profundas (em particular, através da descontextualização histórica) e para revelar a identidade daqueles que os promovem e que deles lucram. Felizmente, existem diversos sites ou media digitais independentes anglófonos que me têm permitido aceder a leituras mais heterodoxas e críticas, como p.ex. Rising/The Hill, The Grayzone, Countercurrents, Counterpunch, Real News Network, Real Left, Other News, Jacobin, TomDispatch, Glen Greenwald, Kim Iversen, Katie Halper, Caitlin Johnstone, entre outros.


A história do aproveitamento pelos EUA (e seus aliados) dos conflitos internacionais para fortalecer a sua posição geoestratégica e para alimentar a sua economia e a sua indústria de armamento, por via do complexo militar-industrial, é infelizmente já longa e anterior aos conflitos actuais. E tem sido documentada e elucidada por diversos jornalistas, investigadores e até militares ou políticos – menciono apenas os livros de Norman SolomonWar made easy” (2005) e “War made invisible” (2023), os livros de William BlumFreeing the World to Death” (2004) e “Rogue State” (2005), o livro de William D. HartungProphets of War: Lockheed Martin and the Making of the Military-Industrial Complex” (2012) e o livro de Tom EngelhardtA Nation Unmade by War” (2018). Nestes livros, os seus autores denunciam não só o conluio entre políticos norte-americanos e os interesses das indústrias militares e de armamento, mas também o lobbying por estas empresas, assim como o papel dos media dominantes na disseminação concertada das narrativas oficiais sobre os conflitos em que os EUA (e países aliados da NATO) estiveram directa ou indirectamente envolvidos (Iraque, Afeganistão, Yemen, Síria, etc.), muitas vezes sem qualquer contraditório ou reflexão crítica. A principal consequência desta atitude e deste modus operandi é um mundo cada vez mais caótico e inseguro, e mais próximo de um conflito generalizado – como afirmou aliás o secretário-geral das Nações Unidas o mês passado, alertando para o facto de o mundo estar a entrar numa “era de caos” e denunciando um Conselho de Segurança incapaz de agir perante a catástrofe humanitária em Gaza (ver aqui ou aqui). A outra consequência é a infantilização e balcanização da opinião pública, submetida a narrativas simplistas e maniqueístas que estreitam a compreensão da complexidade dos contextos históricos e promovem uma amnésia colectiva que requer apenas uma adesão ao lado dos justos e virtuosos, defensores dos valores ocidentais da liberdade e democracia.


O envolvimento dos principais media internacionais na disseminação de informação parcial e na manipulação da opinião pública de forma concertada é do conhecimento público desde a guerra do Vietnam e, mais recentemente, no caso da guerra do Iraque e da promoção da narrativa das ‘armas de destruição maciça’, que afinal não existiam, mas levaram ao arrastar de um conflito que envolveu a presença militar dos EUA durante quase nove anos (2003-2011), com a morte de cerca de 185000 civis iraquianos e o desalojamento de outros dois milhões, para além da morte de 4500 militares norte-americanos - ver p.ex. aqui e também os livros de Norman Solomon citados acima.


Um jornalista que sempre questionou e denunciou a manipulação da opinião pública mundial pelos chamados ‘neocons’ (abreviatura de neo-conservadores, ver p.ex. aqui), com o apoio crucial dos media dominantes ocidentais, foi o repórter e documentarista veterano australiano John Pilger (falecido em Dezembro de 2023), em particular no seu documentário de 2010 “The war you don’t see” - ver também esta retrospectiva recente da sua carreira. Pilger foi um crítico feroz do expansionismo imperialista norte-americano e um activista pelos direitos humanos e pelo jornalismo livre, e denunciou mais recentemente o papel dos EUA e dos media por si controlados na manipulação da opinião pública mundial em relação à guerra na Ucrânia, assim como na hostilização da China por via de Taiwan – ver esta entrevista conduzida por Katie Halper ou esta outra entrevista ao South China Morning Post, ambas de 2023. Neste excerto da entrevista a Katie Halper, Pilger fornece algumas pistas para reconhecer e desconstruir as tácticas propagandísticas mais usadas pelos media, nomeadamente a descontextualização histórica e a mentira descarada. Também a jornalista australiana Caitlin Johnstone tem feito um trabalho notável de análise crítica das narrativas dominantes sobre os conflitos recentes na Ucrânia e em Gaza (aqui e aqui). Destaco este post de 2023 onde caracteriza e desconstrói as estratégias de propaganda mediática na promoção das narrativas do poder, na normalização da insensatez, da injustiça e da guerra, e na indução da aquiescência e da passividade na opinião pública. Excertos: “Propaganda is administered in western nations, by western nations, across the political spectrum — and the really blatant and well-known examples of its existence make up only a small sliver of the propaganda that our civilization is continuously marinating in. (…) it excludes voices that are critical of the established status quo from being heard and influencing people, it amplifies voices (many of whom have packing foam for brains) which support the status quo, and, most importantly, it creates the illusion that the range of political opinions presented are the only reasonable political opinions to have.”


Um outro jornalista australiano, Julian Assange, o conhecido fundador do site ‘WikiLeaks’, teve também um papel-chave na exposição das atrocidades norte-americanas no Iraque e no Afeganistão – ver p.ex. aqui -, que levou os EUA a lançar um mandato de captura internacional e pedido de extradição em 2010, a que se seguiu o seu asilo na embaixada do Equador durante 7 anos, a sua detenção e encarceramento pelas autoridades britânicas em 2019 e o subsequente processo judicial que se arrasta desde então nos tribunais britânicos e que se aproxima agora de um desfecho (ainda incerto) – ver p.ex. aqui ou aqui. Como afirma Chris Hedges neste último artigo, a provação de Assange é uma vingança contra o exercício do jornalismo livre e contra a denúncia de crimes de Estado: “Erase Julian from the public consciousness. Demonize him. Criminalize those who expose government crimes. Use Julian’s slow motion crucifixion to warn journalists that no matter their nationality, no matter where they live, they can be kidnapped and extradited to the U.S. Drag out the judicial lynching for years until Julian, already in a precarious physical and mental condition, disintegrates.” O facto dos media dominantes terem abandonado Assange e deixado de cobrir as evoluções recentes do seu caso, é também uma retaliação pelas duras acusações que ele dirigiu ao jornalismo ‘mainstream’ em 2011, quando afirmou: “Let us ask ourselves of the complicit media, which is the majority of the mainstream press, what is the average death count attributed to each journalist? When we understand that wars come about as a result of lies peddled to the British public and the American public and the publics all over Europe and other countries then who are the war criminals? «Journalists Are War Criminals!» It is not just leaders, it is not just soldiers, it is journalists; journalists are war criminals. And while one might think that that should lead us to a state of despair, that the reality that is constructed around us is constructed by liars, is constructed by people who are close to those that they are meant to be policing, it should lead us also to an optimistic understanding because if wars can be started by lies, truth can be started, peace can be started by truth. So that is our task and it is your task, go and get the truth, get into the ballpark and get the ball and give it to us and we’ll spread it all over the world.(citação retirada daqui).


No que se refere à invasão russa da Ucrânia em Fevereiro de 2022 e a guerra que persiste desde então – na realidade, uma guerra por procuração entre os EUA/NATO e a Rússia -, é importante lembrar as narrativas usadas pelos media ocidentais que insistiram que se tratou de um ataque não-provocado, perpetrado pelo criminoso e diabólico Vladimir Putin. Quaisquer tentativas de contextualizar historicamente o conflito, destacar a expansão da NATO para leste, realçar as divisões internas na Ucrânia, ou questionar as facções neo-nazis do exército ucraniano ou as posturas autoritárias do presidente Zelensky, foram quase sempre descartadas ou descredibilizadas como argumentação pró-russa ou com acusações de ‘putinismo’. Caitlin Johnstone denunciou a forma drástica e despudorada como a narrativa mediática sobre a Ucrânia mudou para servir os objectivos dos EUA/NATO num artigo de 2023. Por outro lado, o apoio financeiro e militar do ocidente à Ucrânia (que, no caso dos EUA, já durava desde 2014) foi justificado como sendo uma forma de defender a democracia e a liberdade na Europa (os famigerados ‘valores ocidentais’) contra o autoritarismo e expansionismo do tirano Putin, que quereria alegadamente restaurar o Império Russo (ou a União Soviética). Não irei aqui entrar em detalhes, mas recomendo a leitura de alguns textos que desmontam as falácias e apresentam argumentações fundamentadas e detalhadas: artigo de fundo de Kristin Christman (“independent researcher on US foreign policy and peace”) que faz uma análise do documento “Project for the New American Century (PNAC) - Rebuilding America’s Defenses: Strategy, Forces and Resources for a New Century” escrito em 2000 e compara as declaradas ambições belicistas e expansionistas dos EUA nele expressas com textos de Putin que têm sido usados para alegar as suas ambições imperiais; artigo de opinião de Viriato Soromenho Marques que invoca o documento da Rand Corporation “Extending Russia - Competing from Advantageous Ground”, publicado em 2019, para demonstrar que as intenções dos EUA de usar a Ucrânia como peão contra a Rússia já estavam definidas muitos antes da invasão russa de 2022; no mesmo artigo, Soromenho Marques acusa ainda a Europa de colapso moral e de rendição face aos interesses norte-americanos: “(…) lançar a mentira incendiária de que a Rússia quer atacar a NATO é criminoso. Putin sabe que isso desencadearia uma autodestruição generalizada. Esta guerra, além de ter enterrado o Pacto Ecológico Europeu, significou uma total subordinação europeia aos interesses do complexo militar-industrial e energético que governa os EUA. O europeísmo foi engolido pela máquina trituradora do belicismo”; já anteriormente Soromenho Marques tinha denunciado, quer a hipocrisia ocidental na sua tentativa de descontextualização do conflito (aqui), quer os riscos anunciados do alargamento da NATO para os países do Leste europeu (aqui); artigo de opinião de David Bromwich onde o autor denuncia o papel dos EUA na instigação da guerra na Ucrânia e o apoio servil dos media na promoção da sua agenda, onde cita um artigo de Gorbachev de 2018 em que este afirma: “The United States has in effect taken the initiative in destroying the entire system of international treaties and accords that served as the underlying foundation for peace and security following World War II.”


Quanto ao ataque do Hamas em Outubro de 2023 e a subsequente ofensiva devastadora de Israel contra Gaza e os palestinos, a hipocrisia do ocidente, e, em particular, dos EUA, para justificar o seu apoio a Israel foi ainda mais chocante e deplorável. A argumentação que havia sido usada para condenar a ofensiva russa na Ucrânia e a crueldade de Putin deixou de ser válida para criticar a reacção desproporcional de Israel e a obstinação vingativa e criminosa de Netanyahu e do seu governo de direita fanática e radical. Com a agravante de terem tentado branquear as décadas de atrocidades de Israel contra o povo palestino (ver p.ex. aqui), que já tinha transformado a Faixa de Gaza numa prisão a céu aberto – ver p.ex. aqui ou aqui. Também neste caso houve conluio dos media dominantes ao tentarem descontextualizar o ataque do Hamas, adjectivando-o de “unprovoked terrorist attack” ou “Israel’s 9/11”, ao descreverem a ofensiva israelita como “Israel’s self-defense retaliation” ou ao terem usado a acusação de anti-semitismo para tentar desacreditar e demonizar quaisquer críticas ou manifestações públicas contra Israel – ver p.ex. aqui (Alexandra Lucas Coelho) ou aqui (Robert Falk). Felizmente, a opinião pública de muitos países ocidentais não se deixou intimidar e tem continuado a manifestar o seu repúdio pelas atrocidades de Israel sobre os habitantes de Gaza, no que foi acompanhada por grande parte comunidade internacional que acusa Israel de genocídio (ONU e Tribunal Penal Internacional). Recomendo a leitura dos seguintes artigos que descrevem o massacre em curso e denunciam a hipocrisia dos EUA e seus aliados europeus: dos autores anglófonos Binoy Kampark (aqui), Jonathan Cook (aqui), Chris Hedges (aqui e aqui), Justin Podur (aqui), bem como dos portugueses Pedro Levi Bismarck (aqui) e Viriato Soromenho Marques (aqui). Destaco apenas o parágrafo final do texto de Kampark: “As the battle rages, Israeli politicians can reflect on some common ground with their counterparts in the United States who fund them well. Both have endeavoured to embrace models of existence that caricature peace even as they ennoble the conditions of war. The United States and Israel share that same tendency that had defined their power for decades: the conditions of peace are always underwritten by a permanent, warlike impetus. The expression from historian Charles Beard, expressed in 1947, never seems to date: «perpetual war for perpetual peace.»” Num artigo mais recente, Andrés Piqueras desconstrói o equivocado ‘sentimento de culpa’ do governo alemão, que continua a dar o seu apoio incondicional a Israel e a hostilizar a Rússia.


Não sou ‘líder político’, nem especialista em diplomacia ou geopolítica, mas proporia que o Ocidente se deixasse de hipocrisias de uma vez por todas e passasse a ser coerente na sua (alegada) defesa dos direitos humanos, da democracia(?) e da autodeterminação, apelando à negociação e não à escalada da guerra usando argumentos falaciosos (o que é válido também para a guerra na Ucrânia); que sancionasse o estado de Israel pelas suas atrocidades e incumprimento do Direito Internacional e das resoluções da ONU; e que acabasse com o financiamento e apoio às guerras perpétuas (e às indústrias de armamento)! Tenho noção da complexidade da situação e dos ressentimentos mútuos entre israelitas e palestinos, mas se o Ocidente quisesse realmente a paz e não fosse conivente com os interesses políticos e financeiros dos judeus sionistas, as coisas podiam talvez ser diferentes e o massacre não teria durado tanto tempo, nem custado tantas vidas civis e tanta destruição.


Mas claro que há uma questão fulcral que ainda não abordei e que é a de saber afinal quem lucra com estas guerras. Cui bono? A velha máxima ‘follow the money’ creio que fornece as pistas que faltavam. Podemos começar por constatar que os EUA têm não só o maior número de bases militares espalhadas pelo mundo (entre 600 e 900, conforme as fontes) como têm o maior orçamento militar de qualquer país (em 2022 as despesas militares dos EUA foram 40% do total mundial, seguidas das da China com 13%) – ver pex. aqui, aqui ou aqui. Por outro lado, os EUA são o maior exportador de armamento do mundo – ver p.ex. este artigo de William Hartung baseado na análise do relatório anual do ‘Stockholm International Peace Research Institute’. Em dois artigos mais recentes (aqui e aqui) e no seu livro “Prophets of War” (citado acima), Hartung revela como o complexo militar-industrial norte-americano é, na verdade, o grande ganhador das guerras que tiveram o envolvimento militar dos EUA, com apoio quer de Republicanos, quer de Democratas, no desbloqueamento do necessário financiamento. De facto, as principais receitas de empresas como a Lockeed-Martin, Raytheon (RTX), Boeing, Northrop-Grumman e General Dynamics, provêm do Pentágono – ver p.ex. aqui. Num artigo para o New York Times em 2023, Eric Lipton fez um resumo da forma como a indústria de armamento norte-americana tem lucrado com as sucessivas intervenções dos EUA no Médio Oriente (Iraque, Afeganistão), assim como com os conflitos mais recentes na Ucrânia e em Gaza. Transcrevo um excerto: “The conflict between Israel and Hamas is just the latest impetus behind a boom in international arms sales that is bolstering profits and weapons-making capacity among American suppliers. The surge in sales is providing the Biden administration with new opportunities to tie the militaries of other countries more closely to the United States, the world’s biggest arms exporter, while also raising concerns that a more heavily armed world will be prone to careen into further wars. Even before Israel responded to the deadly Hamas attack, the combination of Russia’s invasion of Ukraine and the perception of a rising threat from China was spurring a global rush to purchase fighter planes, missiles, tanks, artillery, munitions and other lethal equipment. The surge in sales is also being driven by the rapid pace of technological change in warfighting, pressuring even well-armed nations to buy new generations of equipment to stay competitive. The push to supply more weapons to Israel comes as American military contractors are already struggling to keep up with demand to resupply Ukraine in its war against Russia and help other U.S. allies in Europe like Poland bolster their own defenses. Billions of dollars in orders are pending from allies in Asia, driven by the perception of a rising threat from China.A mesma tese foi defendida por Chris Rea num artigo mais recente onde denuncia o belicismo do ministro da defesa do Reino Unido, o principal e mais fiel aliado dos EUA. Para além do livro de William Hartung (“Prophets of War”), focado nos EUA e citado acima, recomendo ainda o livro Shadow World” (2011) do jornalista Andrew Feinstein sobre o negócio mundial do armamento e a corrupção dos políticos que promovem a guerra – é também possível visionar o documentário de 2016 com o mesmo nome e baseado nesse mesmo livro.


A hipocrisia dos sucessivos governos norte-americanos (presididos quer por Obama, Trump ou Biden) sobre a suposta selectividade nas vendas de armas pelos EUA, que alegadamente cumpririam a função de lutar contra as autocracias e promover a paz no mundo, é liminarmente desmascarada ao analisar os destinatários do armamento fornecido, que incluem regimes autoritários como a Arábia Saudita ou os Emirados Árabes Unidos – ver p.ex. aqui ou aqui. No caso do conflito na Ucrânia, uma outra justificação para o apoio financeiro fornecido àquele país nem sequer é disfarçada publicamente – segundo declarações do Ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano (aqui) e da ex-Subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, Victoria Nuland (aqui), a ajuda militar dos EUA seria “boa para economia americana” e para os trabalhadores das empresas de armamento! Só não revelaram que a principal fatia dos lucros fica na verdade para os administradores e accionistas daquelas empresas, enquanto o custo humano conta-se em vidas perdidas e na devastação de territórios– ver p.ex. aqui ou aqui. Convém ainda não esquecer que os territórios e infraestruturas destruídos pela guerra terão de ser reconstruídos e esse esforço envolverá necessariamente investimentos avultados. No caso da Ucrânia, o seu actual presidente apressou-se a convidar para esse serviço as gigantes multinacionais norte-americanas de gestão de investimentos, como a BlackRock, JP Morgan e Goldman Sachs, afirmando que a reconstrução da Ucrânia será uma grande oportunidade de negócio: “the largest economic project of our time in Europe” (sic) ou “land of surprising opportunity”– ver p.ex. aqui ou aqui.


Mas não são apenas as empresas de armamento e fundos de investimento que ganham (ou virão a ganhar) com a guerra; já em 2023, as empresas multinacionais do sector energético tinham registado lucros recorde, a reboque do conflito na Ucrânia – ver p.ex. aqui, aqui ou aqui.


Quanto ao belicismo norte-americano e à sua postura imperialista (patentes também nos documentos da Rand Corporation e PNAC, já citados), não podiam ser melhor ilustrados do que nas palavras do presidente Joe Biden no seu discurso à nação a 19 de Outubro de 2023, em que afirmou: “American leadership is what holds the world together; American Alliances is what keep us Americans safe; American values are what make us a partner that other nations want to work with; to put all that at risk if we walk away from Ukraine, if we turn our backs on Israel, it's just not worth it...” ou Just as in World War II, today patriotic American workers are building the arsenal of democracy and serving the cause of freedom.” (invocando a expressão ‘arsenal of democracy’ usada pelo presidente Roosevelt durante a 2ª Grande Guerra, a qual Biden já tinha aliás invocado para descrever as vacinas Covid produzidas nos EUA).


Para ilustrar a questão do desvio da atenção em relação à catástrofe ambiental, recorro a artigos de dois autores norte-americanos. Num texto que citei anteriormente (‘Living on a war planet and managing not to notice’), David Bromwich relembra o papel das guerras na destruição ambiental para enfatizar a irresponsabilidade e malignidade de quem as promove. O autor escreve: “A new war, a new alibi. When we think about our latest war — the one that began with the Russian invasion of Ukraine, just six months after our Afghan War ended so catastrophically — there is a hidden benefit. As long as American minds are on Ukraine, we are not thinking about planetary climate disruption. This technique of distraction obeys the familiar mechanism that psychologists have called displacement. An apparently new thought and feeling becomes the substitute for harder thoughts and feelings you very much want to avoid. Every news story about Ukrainian President Volodymyr Zelensky’s latest demand for American or European weaponry also serves another function: the displacement of a story about, say, the Canadian fires which this summer destroyed a forest wilderness the size of the state of Alabama and 1,000 of which are still burning as this article goes to press.” Bromwich denuncia também a hipocrisia da alegação de que a causa climática seria beneficiada pela corte da dependência da importação de gás e petróleo russo, relembrando: “That theory got tested a year ago, with the underwater sabotage of Russia’s Nordstream natural gas pipelines in the Baltic Sea. (…) As of late summer, all reporting on the Nordstream disaster seems to have stopped. (…) The Nordstream wreck was only one attention-getting catastrophe within the greater horror that a war always is. An act of industrial sabotage on a vast scale, it was also an act of environmental terrorism, causing the largest methane leak in the history of the planet.” E conclui assim: “the lesson for the United States should be simple enough: the survival of the planet cannot wait for the world’s last superpower to complete our endless business of war.” Outro autor que tem escrito sobre este tema é Tom Engelhardt, p.ex. em “Are We the Dinosaurs of the 21st Century? And How Our Wars Distract Us”, onde afirma: “At a moment when peace couldn’t be more needed so that we could focus on our imperiled future, war (and the threat of ever more of it) seems once again to be what we’re all too willing to put at the very heart of things, including of our news reports.” E reforça: “humanity is now making war on itself, using fossil fuels as its slow-motion weapon of long-term atmospheric devastation, while distracting itself with more localized wars on this planet. And thanks to that, it has no longer become totally absurd to talk about our possible extinction. In a sense, you might say that, with our own special form of brilliance, humanity has managed to create both a devastatingly fast and a spectacularly slow way of doing ourselves (and so much else) in. I’m talking, of course, about those nuclear weapons and climate change. And thanks at least in part to our inability to stop fighting wars among ourselves, we seem to be ensuring that climate change won’t be the full-scale focus of our attention as it should be.”


Finalmente, tenho de confessar a minha profunda consternação em relação à completa decadência e descredibilização dos líderes políticos europeus e ao afastamento total dos tão apregoados ‘valores ocidentais’ – tal como Viriato Soromenho Marques resumiu cabalmente no seu artigo desencantado “A Ocidente, uma desolada paisagem” (já citado acima). Ainda mais chocante tem sido a desfaçatez com que esses mesmos líderes anunciam agora uma nova escalada do conflito com a Rússia, como se fosse algo inevitável e para o qual os cidadãos europeus se devem preparar – ver p.ex. o artigo recente do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, ou o artigo de opinião do ex-Ministro da Administração Interna, Nuno Severiano Teixeira. Chris Rea denuncia essa mesma atitude bélica por parte do governo britânico, num artigo já citado acima, no qual apela também à construção de um novo movimento anti-guerra. A cedência e o servilismo dos líderes europeus aos interesses norte-americanos por via da NATO estão a colocar a Europa à beira de uma guerra com a Rússia, como denuncia a jornalista Abby Martin neste vídeo recente para a revista Jacobin. Não posso ainda deixar de repudiar o apoio de jornais de referência como o Público na promoção desta agenda sociopata, como se pode constatar num recente podcast com o título elucidativo “Como se prepara a opinião pública para o regresso da guerra à Europa?”, onde participa a jornalista veterana Teresa de Sousa, uma apoiante fanática do imperialismo norte-americano e do servilismo europeu. Constata-se pois que os media continuam, lamentavelmente, a desempenhar o papel de apologistas das guerras ‘justas’, ‘inadiáveis’ e ‘inevitáveis’, tocando os tambores da guerra para captar audiências e angariar financiamentos publicitários, vendendo mentiras e promovendo cobardemente as narrativas das elites no poder. Faço ainda notar os óbvios paralelismos nas estratégias usadas para manipular a opinião pública no caso dos dois conflitos recentes: a descontextualização histórica (o 1º teria começado a 22 Fev 2022 e o 2º a 7 Out 2023), a demonização dos alegados agressores (Putin ou Hamas) e a descredibilização das vozes discordantes (como 'putinistas' ou anti-semitas). É por tudo isto - líderes belicistas e media coniventes -  que estamos novamente à beira de um conflito mundial, com a agravante de terem sido ressuscitados os espectros do holocausto nuclear e da Guerra Fria.


Concluo invocando novamente as palavras premonitórias de Julian Assange em 2011: “The goal is an endless war not a successful war. (…) we have to prevent it becoming normal for there to be a constant War. Very soon within the next few years it will become the normal for there to be a constant war in the West. People will reach maturity and adulthood under the understanding that there is always a war and at that point war will not be something that is unusual or surprising or horrifying, war will become The New Normal.” Proponho ainda, para terminar num tom menos desesperançado, a leitura de dois apelos à paz (em prosa) – o primeiro de Kristin Christman (“Paradigm for peace applied to Russia, Ukraine and the US: Proposal for a peaceful pathway forward”) e o segundo de Bahrat Dogra (“The urgent need for a Peace Movement”) - e um terceiro em forma de poema, da autoria de Robert Cable (“Make all wars cease
”), do qual transcrevo algumas estrofes: “May war in Gaza and Ukraine be unreal dream! / May all wars everywhere be anatheme! / I pray this prayer today with all my heart. / May all wars end and no more ever start.