domingo, 18 de dezembro de 2022

A apropriação mercantil da natureza e o extermínio da biodiversidade

Ao longo de toda a história humana, a natureza tem sido ‘O Comum’ de toda a sociedade que nos providencia os recursos culturais e naturais, incluindo processos físicos como o ar e a água. Mas agora, investidores privados pretendem subtrair esses bens, com alegações de estarem a agir em nome da ‘conservação e sustentabilidade’ de 30% do que apelidamos ‘áreas protegidas’ dos nossos preciosos bens naturais globais. Robert Hunziker

À medida que milhões de espécies são extintas, a biodiversidade que sustenta o ecossistema planetário, tal como o conhecíamos, está em perigo. Esta catástrofe não pode ser contida – muito menos revertida – dentro da atual cultura capitalista. Enfrentamos uma escolha clara: transformação política radical ou aprofundamento da extinção em massa. Ashley Dawson

É provável que não saibam, mas está a decorrer em Montreal desde o dia 7 de Dezembro a conferência da ONU para a biodiversidade (COP15) – ver p.ex. aqui. De facto, pouco se ouviu falar dela quando se compara com a cobertura mediática dada à outra conferência das Nações Unidas sobre o clima (COP27) que decorreu em Novembro no Egipto (ver meu post anterior). As conferências dedicadas à biodiversidade têm uma periodicidade bienal (daí a numeração distinta) e esta era suposto ter decorrido em 2020 na China, mas foi adiada devido à pandemia, mantendo a designação ‘2020 UN Biodiversity Conference’. As comparações entre os dois tipos de conferências não se ficam por aqui; na agenda da COP15 está um acordo ambicioso, o Quadro Global da Biodiversidade pós-2020, que almeja travar a perda de biodiversidade até 2030 e promover a regeneração dos ecossistemas até 2050, e que tem sido equiparado ao Acordo de Paris para o clima - ver p.ex. aqui ou aqui. Tal como na COP27, o secretário geral da ONU, António Guterres, fez um discurso na abertura desta COP15 recheado de frases chamativas e dramáticas - ver aqui ou aqui: “Nature is humanity’s best friend. Without nature, we have nothing. Without nature, we are nothing. (…) Multinational corporations are filling their bank accounts while emptying our world of its natural gifts. Ecosystems have become playthings of profit. With our bottomless appetite for unchecked and unequal economic growth, humanity has become a weapon of mass extinction. We are treating nature like a toilet. And ultimately, we are committing suicide by proxy.” (como nota à margem, o Público traduziu literalmente a penúltima frase de forma, no mínimo, caricata: “Estamos a tratar a natureza como uma casa de banho”!).

Lamentavelmente, tal como nas suas congéneres dedicadas ao clima, os resultados práticos das negociações das COP da biodiversidade têm ficado muito aquém do que seria necessário atendendo à dimensão e gravidade da crise de perda de biodiversidade, já sobejamente diagnosticada – ver p.ex. meus posts anteriores, aqui e aqui. De facto, na COP10 no Japão, em 2010, os governos tinham-se comprometido a cumprir os 20 Objetivos da Biodiversidade de Aichi até 2020, incluindo a redução da perda de habitats naturais para metade e a implementação de planos para o consumo e a produção sustentáveis. De acordo com um relatório de 2020, nenhuma dessas metas foi totalmente atingida (ver p.ex. aqui). Nesta reunião em Montreal, os 196 países participantes que ratificaram a Convenção sobre Diversidade Biológica, tencionam negociar um Quadro Global da Biodiversidade (QGB) que empurra algumas daquelas metas para 2030 ou 2050. Não é pois de estranhar que, apesar das palavras pungentes de António Guterres, muitos ambientalistas estejam pessimistas em relação às metas em cima da mesa de negociações, que incluem a redução do risco de extinção que ameaça mais de um milhão de espécies, a proteção de 30% dos ecossistemas terrestres e marinhos ou a eliminação dos subsídios governamentais prejudiciais ao meio ambiente – ver p.ex. aqui ou aqui. Tal como na COP27, um dos tópicos que dificilmente gerará consenso na actual COP15 é o estabelecimento de um fundo de apoio financeiro aos países do Sul global para a implementação dos objectivos do QGB. Além disso, parece-me manifestamente insuficiente e até ilusório querer resolver a questão da justiça ambiental global atirando milhões de dólares (ou euros) aos problemas.

De facto e do mesmo modo que as mudanças climáticas, também a perda de biodiversidade tem uma génese sistémica que não será possível mitigar apenas através de medidas técnicas ou financeiras. Tal como defendem muitos pensadores, investigadores e activistas que citei em posts anteriores (p.ex. aqui e aqui), os impactos ambientais destrutivos das actividades humanas - que incluem, quer a perda de biodiversidade, quer as alterações climáticas - resultam sobretudo dos padrões insustentáveis de produção e de consumo de uma parte privilegiada das populações humanas, em particular nos países do Norte global. Por sua vez, aqueles padrões têm a sua raiz no sistema económico globalizado baseado num modelo capitalista neoliberal dependente do crescimento desenfreado, do extrativismo depredador e da expansão da mercantilização, que se estende agora também aos bens comuns naturais. Seria portanto necessário abandonar este sistema económico ecocida, mas essa possibilidade não é sequer contemplada pelos delegados que se reúnem em Montreal.

Como referi acima, uma das medidas a ser discutida durante esta COP15 é a proteção de 30% das áreas naturais. Acontece que algumas das propostas de implementação desta medida avançadas nos últimos anos e englobadas nas chamadas ‘nature-based solutions’ (soluções de base natural, ver aqui ou aqui) – onde se incluem a abordagem designada por ‘New Deal for Nature’ ou as ‘Natural Asset Companies’ (empresas de activos naturais), muito acarinhadas pelo sector corporativo – têm encontrado forte oposição por parte de alguns ambientalistas mais radicais, que as têm denunciado como meros estratagemas, não só para manter o ‘business as usual’ do produtivismo e do mercantilismo capitalista global, como também para a apropriação dos bens comuns naturais pelas corporações financeiras internacionais – ver p.ex. artigos de opinião de Stephen Corry (Survival International), de Riccardo Petrella (Ágora de los habitantes de la Tierra) ou de Robert Hunziker. É evidente também aqui um claro paralelismo com as abordagens de mitigação da crise climática, nomeadamente as que se inserem no chamado ‘capitalismo verde’ – ver p.ex. aqui ou aqui.

Também Justin McBrien (aqui), que propôs mudar a designação de ‘Sexta extinção’, frequentemente atribuída à actual crise de perda de biodiversidade (ver p.ex. aqui), por ‘Primeiro extermínio em massa’, atribui este evento aos efeitos colaterais do capitalismo global. Essa tese havia sido defendida anteriormente por Ashley Dawson no seu livro ‘Extinction: A Radical History’ publicado em 2016 (ver p.ex. aqui ou aqui). Nele Dawson começa por reconhecer que the extinction crisis is at once an environmental issue and a social justice issue, one that is linked to long histories of capitalist domination over specific people, animals, and plants.” O autor defende que a constante necessidade de expansão do sistema capitalista global para evitar a sua própria extinção levou-o a estender a sua empreitada de apropriação aos bens comuns naturais: “Nature, the wonderfully abundant and diverse wild life of the world, is essentially a free pool of goods and labor that capital can draw on.Dawson relembra que: “As critics such as Michael Hardt and Antonio Negri have argued, aggressive policies of trade liberalization in recent decades have been predicated on privatizing the commons — transforming ideas, information, species of plants and animals, and even DNA into private property.” O autor conclui: “The destruction of global biodiversity needs to be framed, in other words, as a great, and perhaps ultimate, attack on the planet’s common wealth. Indeed, extinction needs to be seen, along with climate change, as the leading edge of contemporary capitalism’s contradictions. (…) There are at present no effective institutions to deal with the ‘cancerous degradation’ of the global environment that David Harvey argues is brought about by capital’s need for continuous exponential growth. And yet capital of course depends on continuous commodification of this environment to sustain its growth.Segundo o autor, as únicas soluções viáveis passam por uma transformação política radical recorrendo a abordagens pós-capitalistas de conservação fundadas na justiça social e ambiental.

De notar que a crítica à apropriação mercantil dos bens naturais e à sua valorização exclusivamente em termos económicos foi feita pelo próprio IPBES (Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services), órgão da ONU equivalente ao IPCC, no seu relatório sobre a valorização dos bens naturais ‘Assessment Report on the Diverse Values and Valuation of Nature’, publicado este ano. Nele os autores concluem pela necessidade, não só de abandonar o foco dominante nos lucros de curto prazo e no crescimento económico, como também de considerar múltiplas formas de valorização dos bens naturais nas decisões políticas sobre a sua gestão.

Como antídotos e alternativas às abordagens economicistas e mercantis, têm surgido recentemente diversas propostas baseadas na justiça económica e no envolvimento dos povos indígenas e das comunidades locais na gestão da biodiversidade, como o “Marseille Manifesto: a people’s manifesto for the future of conservation”, elaborado por membros da plataforma ‘Survival International’ no congresso ‘Our Land, Our Future’ em 2021, ou o conceito de ‘Convivial conservation’, elaborado por Bram Büscher and Robert Fletcher em 2019. Tenciono desenvolver este tema num próximo post.


Recursos audiovisuais adicionais:

Extinction: A Radical History (OR Books, 2016): https://youtu.be/CPXShU9Zp2c (2’30)

The Big Green Lie (Survival International, 2021): https://youtu.be/xRc7Ez8uY7A (3’)

The Case for Convivial conservation (Bord&Stift, 2019): https://youtu.be/AIHRdJmURdc (3’23)


P.S. Acaba de ser publicado um artigo no site do projecto 'Navdanya International', fundado e liderado por Vandana Shiva, que traça um historial da Convenção para a Diversidade Biológica e das conferências das NU para a biodiversidade, denunciando a implantação progressiva nos últimos anos de uma agenda que prioriza a mercantilização e a financeirização na definição de estratégias de mitigação da crise ambiental global, cuja leitura recomendo.

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