quinta-feira, 17 de novembro de 2022

O ‘Mundial da vergonha’ no Qatar

No mesmo fim-de-semana em que termina a COP27 no Egipto terá início o mundial de futebol (masculino) no Qatar e as atenções mediáticas desviar-se-ão rapidamente para este novo espectáculo de impacto global (ver p.ex.
aqui ou aqui). Nunca escondi o meu desinteresse e desapreço em relação ao chamado ‘desporto-rei’ (ver p.ex. aqui ou aqui), uma expressão que o coloca desde logo em pé de desigualdade com outras modalidades. Acontece que esta edição do mundial vem ensombrada por diversos aspectos nada auspiciosos, que vão desde os escândalos de corrupção dentro da FIFA e na escolha do país anfitrião (ver p.ex. aqui ou aqui), até às condições de trabalho deploráveis da mão-de-obra migrante importada pelo Qatar para as diversas empreitadas que ali decorrem há mais de uma década (ver p.ex. aqui ou aqui). A expressão ‘Mundial da vergonha’ foi mesmo adoptada pelo jornalista francês Nicolas Kssis-Martov para título do seu livro recente sobre o mundial, assim como para uma série documental de quatro episódios da cadeia pública alemã ARD (‘WDR Sport Inside’, original em alemão; disponível também no canal YT da Sportschau: ver aqui; é possível activar legendas noutras línguas).
Uma lista das diversas aberrações que caracterizam este mundial no Qatar foi compilada numa notícia recente no site francês Reporterre, que menciona o livro de Kssis-Martov – ver aqui. Entre elas destaco a construção de raíz de 7 dos 8 estádios onde decorrerão os jogos, a maioria dos quais não terão uso no futuro e estão destinados a ser desmantelados (o conceito de ‘elefante-branco’ é certamente familiar para os portugueses na sequência dos estádios-fantasma que herdámos da organização do Euro 2004); a necessidade de climatização dos estádios devido às condições climatéricas adversas naquele país quente e desértico (que obrigaram aliás a adiar a data do evento para uma altura do ano menos agreste); a necessidade de alojar os espectadores em países vizinhos, devida à capacidade limitada de alojamento no próprio país, que obrigará à realização de mais de uma centena e meia de voos de vaivém diários; as falsas promessas de ‘neutralidade carbónica’ por parte dos organizadores; para além dos reconhecidos atropelos dos direitos do trabalho e dos direitos humanos, que ainda subsistem naquele país árabe, apesar de alegadas reformas e promessas do governo local. A tudo isto acrescento o custo faraónico da realização do evento, que envolveu a construção de raíz de infraestruturas hoteleiras e de transportes, para além dos estádios, e até de uma cidade inteira (Lusail – apelidada Qatar’s Future City ou The City of Football), elevando os custos estimados para mais de 200 mil milhões de dólares (equivalente ao PIB de Portugal, ver aqui), o que torna este mundial o mais caro de sempre – recorde-se que os mundiais anteriores terão custado 12 (Rússia) e 15 (Brasil) mil milhões de dólares (ver aqui ou aqui).
A questão que tem motivado maior polémica e contestação prende-se com as condições desumanas em que vivem e trabalham os milhares de migrantes contratados para as inúmeras empreitadas, oriundos principalmente de países asiáticos (Índia, Nepal, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka), mas também africanos, como o Quénia, as quais poderão ter provocado, directa ou indirectamente, milhares de mortes desde 2010, segundo investigações da Amnistia Internacional – ver aqui ou aqui – ou do jornal The Guardian – ver aqui. Apesar das incertezas em volta dos números apresentados (ver p.ex. aqui), as violações flagrantes dos direitos humanos têm sido investigadas e denunciadas por diversas ONGs, como a Human Rights Watch – ver aqui ou aqui – ou a Equidem – ver aqui ou aqui – para além da Amnistia. Foram também objecto de escrutínio num artigo recente de Matt Sullivan na Rolling Stone (que cita os relatórios da HRW e Equidem), no livro “Les Esclaves de l’Homme Pétrole” dos jornalistas Sébastian Castelier e Quentin Muller (mencionado na notícia da France24 que citei acima) ou num documentário da cadeia noticiosa alemã DW – ver aqui. Os organizadores do mundial e as autoridades do Qatar refutaram as diversas acusações de que foram alvo alegando reformas substanciais e mecanismos de supervisão, que no entanto têm sido denunciadas como manobras de branqueamento, não correspondendo à realidade no terreno – ver p.ex. aqui ou nos artigos da Reporterre e Rolling Stone já citados.
No entanto, o problema de fundo, que é de natureza sistémica, permanece – o mundo do futebol global deixou de servir o desporto e passou a servir os beneficiários dos rios de dinheiro que mobiliza a nível mundial, tendo sido tomado pela corrupção, pelos oligarcas árabes do petróleo e por fundos de investimento abutres, e tendo transformado organizações internacionais como a FIFA ou a UEFA em antros de tráfico de influências, que se estenderam ao mundo da finança e da política. Estas conclusões são corroboradas num artigo de fundo de Tim Murhpy (Power Ball), que foi capa do número mais recente da revista norteamericana Mother Jones, assim como no recente documentário da cadeia Netflix, ‘FIFA Uncovered’ – ver resenhas aqui ou aqui.
Muito provavelmente, nada disto demoverá as centenas de milhares de fãs que, movidos por sentimentos nacionalistas e tribais, se preparam para quatro semanas de entretenimento que ofuscarão as atrocidades e absurdos de mais este espectáculo mercantil global. Carmen Rocío García Ruiz, vice-decana da Faculdade de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade de Loyola Andalucía, chama-lhe ‘espectáculo de desumanidade’ e escreve (ver aqui): “Assistiremos a cerimónias deslumbrantes, a modernas instalações e a eventos faustosos, conscientemente ignorantes do custo humano envolvido. A nossa indiferença perante o sofrimento destes cidadãos sem rosto, com os quais sentimos ter pouco em comum, endossará o abuso deste e de outros Estados, sabendo como é fácil comprar o silêncio e a cumplicidade perante a sua barbárie. A desumanização dessas pessoas, as atrocidades de muitas outras e a ambição excessiva de tantos trouxeram-nos até aqui. A nossa indiferença dá-lhes alento. Liguem a televisão e desfrutem do espectáculo – o da nossa desumanidade.”



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