No mesmo fim-de-semana
em que termina a COP27 no Egipto terá início o mundial de futebol (masculino)
no Qatar e as atenções mediáticas desviar-se-ão rapidamente para este novo
espectáculo de impacto global (ver p.ex. aqui ou aqui). Nunca escondi
o meu desinteresse e desapreço em relação ao chamado ‘desporto-rei’ (ver p.ex. aqui
ou aqui),
uma expressão que o coloca desde logo em pé de desigualdade com outras
modalidades. Acontece que esta edição do mundial vem ensombrada por diversos
aspectos nada auspiciosos, que vão desde os escândalos de corrupção dentro da
FIFA e na escolha do país anfitrião (ver p.ex. aqui
ou aqui),
até às condições de trabalho deploráveis da mão-de-obra migrante importada pelo
Qatar para as diversas empreitadas que ali decorrem há mais de uma década (ver
p.ex. aqui
ou aqui).
A expressão ‘Mundial da vergonha’
foi mesmo adoptada pelo jornalista francês Nicolas Kssis-Martov para título do
seu livro recente sobre o mundial, assim como para uma série documental de quatro episódios da cadeia pública alemã ARD (‘WDR Sport Inside’,
original em alemão; disponível também no canal YT da Sportschau: ver aqui; é possível activar legendas
noutras línguas).
Uma lista das diversas aberrações que caracterizam este
mundial no Qatar foi compilada numa notícia recente no site francês Reporterre, que menciona o livro de Kssis-Martov – ver
aqui.
Entre elas destaco a construção de raíz de 7 dos 8 estádios onde decorrerão os
jogos, a maioria dos quais não terão uso no futuro e estão destinados a ser
desmantelados (o conceito de ‘elefante-branco’ é certamente familiar para os
portugueses na sequência dos estádios-fantasma que herdámos da organização do
Euro 2004); a necessidade de climatização dos estádios devido às condições
climatéricas adversas naquele país quente e desértico (que obrigaram aliás a
adiar a data do evento para uma altura do ano menos agreste); a necessidade de
alojar os espectadores em países vizinhos, devida à capacidade limitada de
alojamento no próprio país, que obrigará à realização de mais de uma centena e
meia de voos de vaivém diários; as falsas promessas de ‘neutralidade carbónica’
por parte dos organizadores; para além dos reconhecidos atropelos dos direitos
do trabalho e dos direitos humanos, que ainda subsistem naquele país árabe,
apesar de alegadas reformas e promessas do governo local. A tudo isto
acrescento o custo faraónico da realização do evento, que envolveu a construção
de raíz de infraestruturas hoteleiras e de transportes, para além dos estádios,
e até de uma cidade inteira (Lusail – apelidada
Qatar’s Future City ou The City of Football), elevando os custos estimados para
mais de 200 mil milhões de dólares (equivalente ao PIB de Portugal, ver aqui),
o que torna este mundial o mais caro de sempre – recorde-se que os mundiais
anteriores terão custado 12 (Rússia) e 15 (Brasil) mil milhões de dólares (ver aqui
ou aqui).
A questão que tem
motivado maior polémica e contestação prende-se com as condições desumanas em
que vivem e trabalham os milhares de migrantes contratados para as inúmeras
empreitadas, oriundos principalmente de países asiáticos (Índia, Nepal,
Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka), mas também africanos, como o Quénia, as
quais poderão ter provocado, directa ou indirectamente, milhares de mortes
desde 2010, segundo investigações da Amnistia Internacional – ver aqui ou aqui
– ou do jornal The Guardian – ver aqui.
Apesar das incertezas em volta dos números apresentados (ver p.ex. aqui),
as violações flagrantes dos direitos humanos têm sido investigadas e denunciadas
por diversas ONGs, como a Human Rights Watch – ver aqui
ou aqui
– ou a Equidem – ver aqui ou aqui – para além
da Amnistia. Foram também objecto de escrutínio num artigo recente de Matt Sullivan na Rolling Stone (que cita os relatórios da HRW e
Equidem), no livro “Les Esclaves de l’Homme Pétrole” dos jornalistas Sébastian Castelier e Quentin
Muller (mencionado na notícia da France24 que citei acima) ou num documentário
da cadeia noticiosa alemã DW – ver aqui.
Os organizadores do mundial e as autoridades do Qatar refutaram as diversas acusações
de que foram alvo alegando reformas substanciais e mecanismos de supervisão,
que no entanto têm sido denunciadas como manobras de branqueamento, não
correspondendo à realidade no terreno – ver p.ex. aqui
ou nos artigos da Reporterre e Rolling Stone já citados.
No entanto, o
problema de fundo, que é de natureza sistémica, permanece – o mundo do futebol
global deixou de servir o desporto e passou a servir os beneficiários dos rios
de dinheiro que mobiliza a nível mundial, tendo sido tomado pela corrupção,
pelos oligarcas árabes do petróleo e por fundos de investimento abutres, e
tendo transformado organizações internacionais como a FIFA ou a UEFA em antros
de tráfico de influências, que se estenderam ao mundo da finança e da política.
Estas conclusões são corroboradas num artigo de fundo de Tim Murhpy (Power Ball), que foi capa do número mais recente da revista norteamericana Mother
Jones, assim como no recente documentário da cadeia Netflix, ‘FIFA Uncovered’ – ver resenhas
aqui
ou aqui.
Muito provavelmente, nada disto
demoverá as centenas de milhares de fãs que, movidos por sentimentos
nacionalistas e tribais, se preparam para quatro semanas de entretenimento que ofuscarão
as atrocidades e absurdos de mais este espectáculo mercantil global. Carmen
Rocío García Ruiz, vice-decana da Faculdade de Ciências Jurídicas e Políticas da
Universidade de Loyola Andalucía, chama-lhe ‘espectáculo de desumanidade’ e
escreve (ver aqui):
“Assistiremos a cerimónias deslumbrantes, a modernas instalações e a eventos faustosos,
conscientemente ignorantes do custo humano envolvido. A nossa indiferença
perante o sofrimento destes cidadãos sem rosto, com os quais sentimos ter pouco
em comum, endossará o abuso deste e de outros Estados, sabendo como é fácil
comprar o silêncio e a cumplicidade perante a sua barbárie. A desumanização
dessas pessoas, as atrocidades de muitas outras e a ambição excessiva de tantos
trouxeram-nos até aqui. A nossa indiferença dá-lhes alento. Liguem a televisão
e desfrutem do espectáculo – o da nossa desumanidade.”
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