quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Respigos de Verão (1)

The Cleaners (2019), Julie Nahon

Retomo o formato que ensaiei neste blog na Primavera deste ano (aqui) para partilhar algumas leituras ou visionamentos dos últimos meses, tentando ao mesmo tempo contrariar a habitual tendência para os ‘fait-divers’ da época estival – também apelidada de ‘silly season’. Esta é a 1ª mão-cheia de respigos - a 2ª pode ser lida aqui.

Começo com o tema da crise ambiental e, em particular, a mudança climática, que continua a ser o tópico dominante da atenção mediática, muitas vezes em detrimento de outras componentes daquela crise igualmente relevantes (escrevi sobre isso aqui e aqui). Aquela cobertura mediática tem gerado, ora uma ansiedade paralisante (‘eco-ansiedade’) nalgumas pessoas (ver p.ex. artigos recentes nas revistas The Lancet e Nature), ora apatia, frustração ou mesmo rejeição, noutras. Estas reacções devem-se em grande medida, por um lado, ao constante (e aparentemente imparável) agravamento da crise climática – quase sempre noticiado de forma dramática (ver mais adiante) - e, por outro, à inacção política ou à ineficácia das acções levadas a cabo por governos e outras instituições nacionais ou internacionais (ver p.ex. aqui ou aqui). Já a minha maior frustração tem sido a constatação da desvalorização ou da quase ausência de menção, na maioria das notícias sobre alterações climáticas, da ligação entre a crise ambiental e o modelo económico dominante (e os modos de vida a ele associados), que é sem dúvida a sua causa profunda, como tenho defendido aqui ou aqui. Denomino esta atitude dominante por negacionismo económico, que considero mais grave do que o chamado ‘negacionismo climático’, por aquele estar ainda mais disseminado e enraizado (como bem sabem os decrescentistas – ver p.ex. aqui ou aqui).


O jornal Público fez um destaque especial de 12 páginas na sua edição de 19 de Agosto sobre o estado do planeta – “A Terra em estado crítico” (edição impressa) ou “O ano de todos os avisos da Terra” (edição online). O enfoque foi essencialmente sobre a crise climática e os seus impactos catastróficos - ondas de calor, incêndios, inundações e outros eventos extremos. O artigo central faz uma listagem desses eventos mais recentes e junta-lhe os diagnósticos alarmantes do IPCC e da Organização Meteorológica Mundial, assim como alguns depoimentos de climatólogos e outros investigadores. Entre os vários artigos adicionais (sobre impactos na saúde ou sobre prioridades políticas nacionais e europeias) e os testemunhos de 11 personalidades nacionais e internacionais, tecem-se considerações sobre o caos climático - como se a catástrofe ecológica se limitasse ao clima -, atribuindo as suas causas à queima de combustíveis fósseis, às políticas dos governos populistas de (extrema-)direita ou às tendências negacionista ou ecocidas de parte da humanidade. Mas (quase) nem uma palavra sobre o sistema económico que está na sua génese! Na verdade, num dos testemunhos, a escritora/jornalista brasileira Eliane Brun afirma que “o capitalismo destruiu não só a casa-planeta como o instinto de sobrevivência da espécie humana” e o filósofo Viriato Soromenho-Marques refere-se à civilização industrial da modernidade como responsável pelo ecocídio em curso, além de acusar a política e a economia de analfabetismo científico, e os políticos nacionais e europeus de falta de proactividade. E sobre saídas do imbróglio, fala-se sobre ‘soluções’ essencialmente técnicas/tecnológicas para atingir a neutralidade carbónica, sobre a necessidade de adaptação, sobre a importância da ciência, do conhecimento e da educação (Luisa Schmidt), e sobre a esperança depositada nos mais jovens. Este é aliás um tema do editorial desta edição, onde transparece uma desresponsabilização dos ‘adultos na sala’ (a geração que teve/tem poder de influência ou de decisão) e uma delegação da responsabilidade por eventuais acções consequentes nas novas gerações – que, alegadamente, só têm de crescer para nos salvar! Curiosamente, o Bartoon desse mesmo dia denuncia a hipocrisia desta atitude. O grande 'elefante na sala' que o Público não teve a coragem de nomear e a causa profunda do actual estado de calamidade é - como vários autores, pensadores, cientistas, etc. têm defendido, alguns há décadas! - o sistema económico dominante e os interesses instalados que o mantêm, assim como a visão de mundo que lhe está associada, que, por sua vez, promovem modos de vida que têm conduzido ao consumo insustentável de recursos não renováveis e à destruição ambiental (incluindo, mas não se limitando, às alterações climáticas), assim como a brutais injustiças sociais. Escrevi sobre isto várias vezes: aqui, aqui, aqui ou aqui. Alguns dias mais tarde (21 Ago) o Bartoon acerta na mouche com o dilema: optar pela economia ou pelo planeta? Nesse mês, o cartoon de Luís Afonso pôs o dedo na ferida mais duas vezes, denunciando as evidentes contradições das preocupações políticas nacionais ou internacionais: aqui (aeroporto Lisboa) e aqui (procura global de petróleo). 
No final de Julho, a Comissão Europeia divulgou um relatório do Joint Research Center sobre o impacto das mudanças climáticas na procura turística nas diversas regiões da Europa, que introduz mesmo um novo parâmetro criado para o efeito – o Tourism Climatic Index (um indicador do conforto humano relativo ao clima)! Segundo uma nota de imprensa, prevê-se que as regiões costeiras do sul percam turistas durante o verão, especialmente em cenários de aquecimento de 3°C e 4°C, enquanto as regiões costeiras do norte da Europa registarão um aumento da procura. Em todo o continente, a procura turística cairá em Julho e crescerá em Abril, mas o relatório prevê que o turismo continuará a crescer(!) apesar das mudanças sazonais previstas. Sobre os impactos negativos do próprio turismo no clima e no ambiente, nem uma palavra... As projecções do relatório e outros dados recentes do European Travel Commission originaram notícias com títulos a condizer – ver p.ex. aqui, aqui ou aqui. Constata-se portanto que para a indústria do turismo os interesses económicos também se sobrepõem às preocupações ambientais. Ainda a propósito de hipocrisia e contradições, não posso deixar de destacar o contraste entre o dramatismo da edição especial do Público de 19 de Agosto e o registo fútil e despreocupado do suplemento Fugas dessa mesma edição!

Previsões da evolução da procura turística em diferentes cenários climáticos

Mas não sou o único a comentar esta edição do Público, embora destacando aspectos distintos. Uma semana depois, nas páginas do próprio jornal, António Marujo (editor da publicação online Sete Margens) elogiou a iniciativa do destaque mas aponta-lhe duas falhas: a omissão das mensagens do Papa Francisco sobre o tema, em particular na encíclica Laudato Si’ (onde fez aliás a ligação entre a crise ecológica e o modelo económico – ver p.ex. aqui), e a ausência de referência à guerra Ucrânia e aos contributos da indústria militar para as emissões de carbono. Marujo afirma: “Só um mundo desarmado (quer dizer isso mesmo: sem armas) e com mais democracia permitirá eficácia no combate à tragédia climática”; e conclui: “
estamos a viver a consciência do abismo e a absoluta inconsciência de continuar a caminhar para ele, porque quem manda no mundo quer saber apenas de si e do seu dinheiro”.


O outro aspecto menos positivo do destaque do Público do dia 19 de Agosto foi o recurso ao sensacionalismo (basta ver as fotos escolhidas para a capa e que se estendem para a contracapa - ver acima) e ao alarmismo - em contradição com as intenções expressas no editorial. Não concordo que se escamoteie a gravidade da calamidade ambiental, mas defendo que se usem formas de comunicar que não agravem a tendência para o sensacionalismo em que os media se deixaram enredar e que, no caso da mudança climática, são contraproducentes. Numa das suas crónicas no próprio Público em Julho, António Guerreiro tinha escrito sobre aquilo que apelidou sarcasticamente de ‘
olimpíadas da catástrofe’: “todos os dias havia recordes de temperatura a serem atingidos, na terra e no mar, aqui e nos antípodas. O efeito deste desporto fatídico é o de criar um desejo inconfessável de superação, um amor pelo destino trágico, um amor fati.” E deixa a pergunta: “Alguém consegue ver hoje no objectivo da ‘descarbonização’ o esboço de uma vontade de interromper a lógica de extracção dos recursos como se eles fossem infinitos?” No mês seguinte volta ao tema, comentando um outro artigo, da autoria de Carlos Antunes, no mesmo jornal, onde defende que é necessário aprender a resistir à vertigem do alarmismo climático sem, no entanto, negar a realidade. Por sua vez, o engenheiro geógrafo Carlos Antunes tenta responder à pergunta: como fugir ao alarmismo climático sem perder a credibilidade? Por um lado, perante o registo de vários artigos sobre os impactos das alterações climáticas – p.ex. sobre a quantificação de mortes provocadas por ondas de calor (aqui ou aqui), ou sobre o colapso da corrente atlântica AMOC (aqui) -, confessa-se perplexo perante a “falta de rigor científico nas afirmações, nas conclusões ou na sua interpretação por parte da comunicação social em geral”. E acrescenta: “Fico também preocupado com quem comunica ciência e traz estas notícias sem as enquadrar devidamente, sem explicar os pressupostos, as limitações da sua investigação e, sobretudo, a incerteza das conclusões. (…) Não sendo falsa, a notícia conduz à perceção errada da verdade científica e, consequentemente, aumenta a iliteracia e as narrativas que alimentam fake news”. Por outro lado, refere-se ao alarmismo climático resultante da divulgação de estudos científicos baseados em métodos com muitas incertezas – modelações matemáticas e análises estatísticas -, que geram dúvidas ou mesmo descrédito. Conclui afirmando: “Face às ameaças das notícias falsas, do jornalismo sensacionalista, da desinformação, da iliteracia científica e da falta de boa comunicação em ciências, é urgente um maior investimento do país no jornalismo científico, em programas educativos, programas de debate ambiental e climático na comunicação social, bem como na boa comunicação de ciências.”


Ainda a propósito de alarmismo climático, no mês de Julho, os media nacionais (ver p.ex. aqui ou aqui) e internacionais (ver p.ex. aqui ou aqui) noticiaram novas declarações dramáticas do secretário-geral da ONU António Guterres (aqui), na sequência da divulgação de mais um relatório de cientistas climáticos que confirma a ligação entre os recentes eventos meteorológicos extremos e a mudança climática induzida pela acção humana. Nessa conferência de imprensa, Guterres afirmou: “As alterações climáticas chegaram, são assustadoras e isto é só o início. A era do aquecimento global acabou, chegou a era da ebulição global”. Quase todas as notícias deram destaque à expressão ‘ebulição global’, mas a sua utilização não foi bem acolhida por alguns cientistas climáticos – ver p.ex. aqui ou aqui. Guterres voltou a apelar aos líderes políticos que parem com as hesitações e desculpas: “deixem de esperar que os outros ajam primeiro. Simplesmente já não há tempo para isso… (…) o nível dos lucros dos combustíveis fósseis e da inação climática é inaceitável”. Já me tinha referido anteriormente (aqui) aos potenciais efeitos contraproducentes de dessensibilização, indiferença, descrédito ou apatia provocados pelo uso reiterado deste tipo de apelos dramáticos e da manifesta hipocrisia política a nível global – alguém ainda se lembra das diversas declarações de “emergência climática” durante o ano 2019? (ver p.ex. aqui ou aqui)
Antes de prosseguir, deixo uma interrogação que é, ao mesmo tempo, uma dúvida lícita e uma provocação: será que este alarmismo ou sensacionalismo das narrativas mediáticas e políticas é genuíno? Ou terá por detrás uma intencionalidade dissimulada de provocar uma sensação de frustração e de impotência que desmobiliza os cidadãos em vez de os motivar a ser pro-activos? Sim, porque só uma pessoa muito ingénua ou equivocada poderá pensar que os decisores políticos, comprometidos com os poderes económicos e financeiros, vão realmente fazer o que seria necessário para mitigar a crise ambiental global - mesmo que prometam investimentos em tecnologias alegadamente salvíficas.

Num artigo de opinião sobre os vários sintomas da catástrofe climática em curso, o jornalista Patrick Mazza (aqui) recordou os avisos que o climatólogo James Hansen tinha deixado 35 anos antes aos governantes em Washington e que terão caído em saco roto. Perante a ineficácia das políticas de mitigação das últimas décadas, Mazza acaba por fazer a apologia do decrescimento como alternativa incontornável ao modelo económico dominante: “I confess, as someone who has been writing about climate disruption almost since Jim Hansen went up on Capitol Hill, and who has worked to bring on climate solutions much of recent decades, I have been skeptical of degrowth. It has been hard to see how it can be reached through the practical politics of the day. But decades of seeing the problem only become worse while actions to address it have hardly made a dent drive me to believe the only practical solutions are radical. We need to change course as a world, and quickly, or leave a legacy of chaos to our children. We have to consider degrowth.”


Num artigo ainda mais contundente, o jornalista
Jonathan Cook traça um retrato arrasador da dissonância cognitiva e da desfaçatez por detrás da inacção climática. Transcrevo alguns excertos: “So how did we reach this point of abject failure: where the greater the scientific consensus, and real-world evidence, the smaller the impact that consensus has on decision making? The astonishing disjunct between threat and response is possible only because the oil lobby has historically shaped, and continues to shape, popular understanding of the gravity of what lies ahead. Cognitive dissonance reigns. (…) Throughout the 1990s, Big Oil successfully sabotaged meaningful climate action by pressuring western states to sign an energy treaty tying their hands on cuts to fossil-fuel use. That was for a good reason. Under the capitalist system, the primary duty of oil corporations – like other corporations – is to maintain profitability and guarantee value for investors and stockholders. Ethics never got a look-in.” Cook critica também o enfoque na mudança individual devido às suas evidentes limitações. Destaca, por outro lado, os poderosos interesses instalados que não mostram qualquer interesse em mudar o sistema económico: “Corporate money in politics meant the political class was in no mood to take on the oil industry, whatever the scientists were saying. In any case, politicians, desperate for re-election, were not about to start questioning the precepts of capitalism in a two-party system in which both parties were expected to worship the model of endless economic growth. The establishment media was embedded in the same network of interconnected corporations that profited from an oil-based economy. Their own short-termist goals depended on shoring up an irrational faith among the public in eternal economic growth on a finite planet.” Denuncia ainda a falácia dos chamados ‘Pactos Verdes’ e das metas de descarbonização: “Recent reports show that ethical and green investment funds have poured money into fossil-fuel companies after those firms rebranded themselves. The oil giants’ profits have again hit record levels. Under the so-called Green New Deals, nothing fundamentally changes. We still drive our own cars in pretty, individualised colours. We still holiday abroad. We still shop in large supermarkets with everything – including year-round exotic fruit flown in from abroad – wrapped and protected in oil-based plastics. We are still encouraged through advertising to consume as much as possible and throw away items of new technology – from personal computers to phones – every few years through planned obsolescence. But this individualised, competitive, wasteful way of life is being given a makeover. Cars are now hybrids or electric. Holidays are “carbon offset” somehow. Plastic on our food is described as recyclable. Advertising now explains to us how all the stuff we buy is saving the planet. (…) The new watchword is “net zero”. But in truth, it is a giant psychological operation (psyop), as climate scientists have gradually started to appreciate. In 2021 a group of three leading academics admitted that for years they had been duped into championing the promises of the Green New Deal. Technological fixes, such as carbon capture, offsetting and geoengineering, were «no more than fairy tales», they warned. Net zero policies «were and still are driven by a need to protect business as usual, not the climate».” Critica ainda os movimentos de luta contra a crise climática por apoiarem os ‘Pactos Verdes’ e por não se oporem frontalmente ao ‘investimento’ ocidental na guerra da Ucrânia: “Significant sections of the protest movement itself have been hoodwinked into believing the Green New Deal offers good-faith solutions – despite the fact that it has been hijacked to disguise business as normal. As a result, the elephant in the room – the inherent, self-destructive tendencies of capitalism – is pushed by protesters to the sidelines or out of sight completely. Protests are invariably restricted to policy failures or government U-turns. (…) In recent months [Greta Thunberg] has become an increasingly high-profile partisan in the Ukraine war, effectively greenwashing the West’s cynical proxy fight against Russia on behalf of its war and energy industries. The Ukraine war, provoked all too predictably by Nato expansion to Russia’s borders, has offered enormous profiteering opportunities for the West’s military, weapons and oil industries.” Finalmente identifica as grandes corporações industriais e financeiras multinacionais como principais responsáveis pela actual policrise, que alia à emergência climática as crises económica, social e democrática, e por um eventual colapso societal: “Western publics are confused, embittered and divided – the ideal conditions in which inertia reigns and Big Oil can carry on as normal. With no one in the mainstream grappling with the reality of what lies ahead, leading financial institutions have been free to pretend that capitalism’s relentless growth paradigm can be squared with sustainability. (…) The climate emergency, and the wider ecological crisis, will put this kind of neoliberal orthodoxy under ever greater strain. Without a meaningful response, something will have to give. Already, the twin pillars of the West’s liberal democratic order are starting to crumble: the commitment to free speech and the right to protest. Ahead lie ever more unaffordable energy bills, empty supermarket shelves, floods and heatwaves, wasted expenditure on resource wars, and the more general symptoms of ecological collapse. Burying our heads in the sand a little longer won’t make the coming battle go away. It will just make survival even less likely.”


Regresso ao jornal Público para repor alguma justiça na minha avaliação dos seus conteúdos e elogiar a publicação da entrevista a
o pensador indígena Ailton Krenak, que esteve no início de Julho na Culturgest, onde deu uma conferência (é possível aceder ao audio da sessão aqui). As respostas de Krenak constituem uma boa introdução às suas ideias sobre temas como tempo (e urgência), comunicação, refugiados ou ligação corpo-território (já tinha escrito aqui sobre o pensamento de Krenak). Nunca usa a palavra decrescimento, mas o seu pensamento é profundamente decrescentista e sinto-me pessoalmente muito alinhado com as suas posições sobre o papel da visão de mundo hegemónica na actual crise socio-ambiental e a necessidade absoluta de questionar o paradigma dominante. Transcrevo alguns excertos: “A realidade global que possibilita que algumas regiões do planeta estejam em permanente situação de guerra vai mudar quando as pessoas não fugirem de lá e perguntarem porque é que aquele lugar foi escolhido para ser um campo de guerra. (...) Os refugiados do mundo inteiro têm de descobrir o endereço de quem está destruindo o mundo deles. (…) A gente deveria se perguntar por que é que continuamos produzindo o desastre que acaba com os mundos e produz gente sem mundo, movendo-se por aí. Temos de fazer essa pergunta, senão vamos estar naturalizando a situação de milhões de pessoas. (…) Nós estamos vivendo num planeta-pirata? Onde as grandes companhias actuam como se fossem saqueadores de pedaços do planeta até que não sobre nada? Todos vamos ser refugiados, nós todos. A tal da humanidade vai ser só refugiados. Será que a gente não tem a opção de nos transformarmos em pessoas activas, corpo-território, que de repente podem dizer uma insanidade: «Vocês querem destruir esse lugar onde eu estou? Podem destruir, mas a gente vai ficar aqui.» Qual é que seria o efeito disso?”


Encontramo-nos perante o desafio imenso de superar uma crise global sem precedentes, que só um forte envolvimento dos cidadãos e da chamada sociedade civil poderia efetivar, experimentando uma diversidade de abordagens. As propostas decrescentistas abrem caminhos para mudanças socio-económicas e culturais, que muitos consideram ainda demasiado radicais e utópicas – ver p.ex. aqui. Termino com a referência ao relatório
Welcome to the Great Unraveling: Navigating the Polycrisis of Environmental and Social Breakdown” publicado em Junho no site do Post Carbon Institute (PCI). Richard Heinberg, um dos coautores do relatório e apoiante do decrescimento, escreveu um curto resumo para o site Resilience, onde defende a necessidade incontornável de mudar o paradigma económico e do qual transcrevo alguns excertos: “[The PCI report] seeks to build a coherent narrative about the roots of the polycrisis, the signs of its arrival and evolution, and why we should be thinking differently about the future. When confronted with evidence that our collective path is unsustainable, many of us tend to jump to “all-or-nothing” ways of thinking, sometimes framing our future in simplistic terms as “the end of the world” or “apocalypse.” But according to the report’s authors, this tendency is unhelpful. While a complete and sudden end of humanity is theoretically possible via nuclear war, our more likely future will consist of decades of social, economic, political, and ecological turmoil punctuated by periods of rescue and recovery. There is still considerable divergence between best- and worst-case scenarios, and we still have agency to affect outcomes. According to the PCI report, we should be spending far less effort building upon expectations of a future that looks much like today only with more technology, mobility, and wealth; instead, we should devote our collective brainpower to questions like, How does a civilization downsize gracefully? Or, What have we achieved that our distant descendants would like us to preserve for them? (…) Strategies that seemed to make sense before the polycrisis, such as efforts to grow national economies, will need to be replaced by different ones, such as efforts to build resilience. (…) if we work together now to build a truly sustainable way of life, maybe future generations will have at least some reasons to thank us.”

Continua... Segunda parte dos Respigos de Verão, aqui.

Deixo hiperligações para alguns artigos que advogam o decrescimento económico como via para a mitigação da crise climática (ou da crise ecológica mais abrangente):

Beth Roberts, The 'degrowth' economic model is key to fight climate change (2023): https://www.devex.com/news/opinion-the-degrowth-economic-model-is-key-to-fight-climate-change-105308

Tiomthée Parrique, Economic growth is fuelling climate change – a new book proposes ‘degrowth communism’ as the solution (2023): https://theconversation.com/economic-growth-is-fuelling-climate-change-a-new-book-proposes-degrowth-communism-as-the-solution-199572

J. Hickel, G. Kallis, T. Jackson, et al. Degrowth can work — here’s how science can help. Nature. 612, 400-403 (2022). https://www.nature.com/articles/d41586-022-04412-x (resumo aqui)

John Hobby, Degrowth as a solution to the climate crisis (2021): https://www.if.org.uk/2021/11/09/cop26-degrowth-as-a-solution-to-the-climate-crisis/

Lorenz T. Keyßer & Manfred Lenzen, 1.5 °C degrowth scenarios suggest the need for new mitigation pathways (2021): https://www.nature.com/articles/s41467-021-22884-9 (resumo aqui)


terça-feira, 1 de agosto de 2023

JMJ 2023: uma inabalável fé no negócio

Não queria reduzir as coisas a uma análise de custo-benefício, mas todas as análises que conheço mostram evidentemente um enorme benefício que Portugal vai ter em todas as dimensões” Augusto Santos Silva (daqui)

A questão aqui é se nós queremos ou não ser naqueles dias o centro do mundo, (…) e o retorno, acreditem, que vai ser multiplicado, tudo isto que vamos investir, por 10 ou por 20. Eu não tenho dúvida de que vamos ter um retorno enorme” Carlos Moedas (daqui)

Enfim, tudo isto é triste. Mas nada disto é fé. É negócio, é política, é influência e tráfico dela, quiçá um pouco de corrupção também, mas não é fé. Mas é o que sempre foi.” João Mendes (daqui)

Começo por fazer notar que não sou católico (nem professo qualquer religião), embora comungue de muitos dos valores da ética e cultura cristãs, que incorporei durante os meus anos formativos. Por outro lado, teci elogios à encíclica Laudato Si’ publicada pelo Papa Francisco em 2015, como notável manifesto político em prol de uma ecologia integral. A apreciação pessoal que faço aqui do contexto nacional que envolveu a organização da Jornada Mundial da Juventude 2023 (JMJ) baseia-se numa leitura pessoal da informação que fui recolhendo nos últimos meses. Alguns dos factos que comento têm sido noticiados por diversos media e são por isso facilmente corroboráveis – ver p.ex. aqui.

© Inês M. Borges / SIC

A principal crítica que faço centra-se, por um lado, na forma como diversos políticos e governantes (em particular o presidente da CML, Carlos Moedas) se apropriaram do evento, com proclamações de um materialismo imoderado, desvirtuando e pervertendo o objectivo da JMJ de espalhar e praticar os valores cristãos, e, por outro, na atitude de aquiescência ou de condescendência da própria Igreja Católica em relação àquelas posturas ou às diversas polémicas que se foram sucedendo. Faço, no entanto, notar que as controvérsias sobre gastos excessivos ou eventuais prejuízos ou ‘derrapagens’ não são exclusivos da JMJ de Lisboa e já acompanham as suas antecessoras - ver p.ex. aqui.

As polémicas por cá começaram logo em Janeiro em volta dos orçamentos dos palcos-altares que iriam ser construídos no Parque Tejo e no Parque Eduardo VII – ver p.ex. aqui ou aqui. Transcrevo um excerto da 2ª notícia: “A empreitada do palco principal, orçada em 4,24 milhões de euros (mais IVA) – valor a que se soma mais um milhão de euros a gastar em «fundações indirectas para a cobertura» – foi adjudicada à Mota-Engil por ajuste directo. O custo gerou polémica, e o próprio bispo auxiliar de Lisboa reconheceu que o valor do palco-altar era excessivo e «magoa todos», posição que o Presidente da República elogiou, recomendando que a JMJ «seja uma projecção de Portugal no mundo» mas «tenha em linha de conta as circunstâncias económicas e sociais vividas neste momento». A revelação posterior do projecto para o segundo palco terá surpreendido negativamente Marcelo Rebelo de Sousa, que, segundo o Expresso, terá sugerido à Câmara de Lisboa e à Igreja que o trocassem por um «altarzinho».”


O principal e infatigável ‘cheerleader’ da JMJ tem sido sem dúvida o edil de Lisboa, Carlos Moedas – ver p.ex. aqui ou aqui –, repetindo de forma insistente (e irritante) a sua convicção de que Lisboa será o “centro do mundo” durante a JMJ. Para um “agnóstico convicto” (segundo as suas próprias palavras), as sucessivas declarações sobre o desejo da vinda do Papa parecem no mínimo incoerentes. Estas contradições não passaram aliás despercebidas (ver p.ex. aqui) e o seu entusiasmo pela vinda do Papa foi parodiado pelo videasta Bandex, no seu habitual estilo sarcástico – ver vídeo Papa Moedas. No entanto, a fé que Moedas tem expressado mais enfaticamente é mesmo no retorno económico extraordinário para a cidade – ver p.ex. aqui ou aqui. Só não especifica exactamente para quem!... A julgar pela especulação nos preços do alojamentos já podemos ter um vislumbre – ver p.ex. aqui ou aqui –, embora os hotéis rejeitem as acusações que lhes foram dirigidas (ver p.ex. aqui). A comparação que Moedas fez com a Expo ’98 (de acordo com esta notícia) é que terá sido um lapso, no mínimo, caricato… As atrapalhações (e irritações) de Moedas têm sido várias (ver p.ex. aqui ou aqui), mas também o presidente Marcelo vai metendo os pés pelas mãos – ver p.ex. aqui ou aqui.


Faço notar que quase todos os diversos governantes que se têm pronunciado (Moedas, Costa, Santos Silva ou Marcelo) justificam os investimentos públicos com alegados retornos económicos ou de projeção internacional para a cidade e para o país – ver p.ex. aqui ou aqui. Fez-me lembrar iguais proclamações aquando da Expo’98 ou do Euro 2004 – e sobre esses eventos já sabemos o desfecho (ver p.ex. aqui). Embora diversos representantes da Igreja tenham expressado o seu incómodo face às polémicas em volta dos custos, a preocupação da organização da JMJ com o retorno económico fica patente no protocolo que celebrou com o Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa justamente para contabilizar esse retorno (segundo esta notícia). Veremos que avaliação fará, por sua vez, o Tribunal de Contas sobre as despesas do Estado com a JMJ… Para já, foram revelados os sucessivos ajustes directos (mais de 85% do total) nos contratos firmados por entidades públicas e que ascendem a mais de 38 milhões de euros – ver aqui ou aqui. O governo garante que foi tudo feito dentro da legalidade – ver p.ex. aqui.

Claro que nada do que apontei é original e várias têm sido as vozes a criticar a ostentação, a demagogia, a hipocrisia, o clientelismo político ou a falta de bom senso – ver p.ex. textos de opinião de Isabel de Santiago, João Mendes, Miguel Guedes, Paulo Mendes Pinto ou Tiago Franco. Transcrevo um excerto das palavras de Isabel de Santiago: “A fé e a mobilização de jovens para a igreja e para a doutrina social devem estar associadas de forma evidente e lúcida aos seus princípios e não aos movimentos de vaidade de políticos que ostentam a bandeira da igreja para se promoverem — envelhecida mente — quando o movimento é jovem. Conhecem os portugueses a criadora do logotipo que está associado às jornadas? É simples e foi oferecido. Como vê a igreja este fausto? Como podemos defender o papel da igreja na caridade quando vemos esbanjamento de valores necessários aos mundos a que não pertencem os organizadores: o dos pobres? Fazer a promoção do país, num evento gigante, não passa por sorver o cofre de um país pobre e as receitas que deveriam ser aplicadas nesse desiderato: gerar e contribuir para o aumento das condições dos desfavorecidos, dos professores, dos enfermeiros, dos pobres portugueses, na sua maioria, jovens?


Quanto à contestação pública, a mais mediática terá sido a do artista Bordalo II que instalou uma longa “passadeira da vergonha” - intitulada ‘Habemus Pasta’ (ou ‘Walk of Shame’) - feita de mega-notas de 500€ no altar principal da JMJ no Parque Tejo, como protesto contra o investimento de dinheiro público e os ajustes directos de última hora – ver aqui ou aqui. Carlos Moedas não se ficou pelos ajustes e num assomo pueril apressou-se a colocar um singelo capacho com a expressão ‘Bem vindo’ em diversas línguas na mesma escadaria – ver p.ex. aqui. Já Marcelo foi mais contido e ‘abençoou’ a irreverência como acto de liberdade de expressão – ver p.ex. aqui. Outras manifestações de protesto surgiram na avenida Almirante Reis sob a forma de cartazes ou grafitti que denunciam a especulação imobiliária ou o envolvimento de detidos do sistema prisional nas obras da JMJ – ver p.ex. aqui ou aqui.




Muito mais haveria para dizer, mas deixo apenas alguns exemplos adicionais de ‘fait-divers’ relacionados com a JMJ para quem quiser explorar:

- Polémica em torno do selo proposto pelo Vaticano para assinalar a JMJ: aqui ou aqui

- Cadeiras personalizadas para o Papa e para Marcelo: aqui

- Hóstias de trigo alentejano: aqui

- Paramentos de burel nacional: aqui

- Diversas versões do “Pack Oração” (fabricado em Portugal): aqui

- Conselhos para os peregrinos (jornal Público): aqui

- Pingo Doce escolhido como “Parceiro Fundador de Alimentação da JMJ” faz o seu próprio proselitismo: “Pela energia do Bem que convoca, é com orgulho que apoiamos este evento, servindo a nossa Comida Fresca nos principais recintos” – ver vídeos aqui ou aqui, e notícias aqui ou aqui; mas existem outros parceiros, incluindo cadeias de ‘fast food’: aqui e aqui

Para o final, ficam ligações para duas ‘tiras’ do Bartoon de Luís Afonso para o jornal Público – uma sobre o selo do Vaticano e a outra sobre os impactos ambientais da JMJ.