domingo, 28 de maio de 2023

Quando renegaremos o mito do crescimento (económico)?

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(Casa da Esquina, Coimbra)
We must look beyond GDP and growth to something that really matters: life.Philippe Lamberts

The word ‘currency’ never meant money before colonialism. The word ‘currency’ means flow (…) We have to degrow the currency of money that is extinguishing life, biodiversity and the flow of life.Vandana Shiva

Já tinha abordado o tema do crescimento económico em escritos anteriores (p.ex. aqui ou aqui), onde apresentei alguns dos argumentos invocados pelos decrescentistas (e outros críticos do paradigma dominante) para rejeitar a sua validade como via preferencial para garantir o bem-estar e a prosperidade, e como objectivo primordial das políticas preconizadas por governantes de diferentes geografias ou cores políticas – em particular, quando é medido com base num indicador reconhecidamente inadequado como o PIB (ver p.ex. aqui ou aqui). Retomo-o agora a propósito da conferência “Beyond Growth 2023” que decorreu de 15 a 17 de Maio no Parlamento Europeu (PE) em Bruxelas e onde a palavra decrescimento e as ideias e propostas decrescentistas (ou pós-crescentistas) foram discutidas durante três dias, com uma audiência estimada em 2000 pessoas ao vivo e pelo menos mais outras tantas online. A conferência foi co-organizada por 20 eurodeputados (de cinco grupos parlamentares e um MPE não inscrito), liderados por Philippe Lamberts, onde se incluía a portuguesa Marisa Matias - representante de um partido (BE) que nem sequer tem afinidade pelo decrescimento, como a própria aliás destacou durante uma sessão em que foi moderadora. É possível aceder aos vídeos de todas as sessões da conferência (7 plenárias e 20 painéis temáticos, além de eventos paralelos, como uma sessão especial que teve Vandana Shiva como convidada) a partir desta ligação (selecionando o dia e clicando sucessivamente no nome da sessão, em ‘Info & Livestream’ e finalmente em ‘Livestream’). Também é possível aceder a uma seleção de vídeos das sessões no canal Youtube do grupo parlamentar dos Verdes (Greens/EFA), nesta ligação. O contraste entre as propostas de muitos dos intervenientes na conferência e a narrativa dominante das instituições europeias ficou desde logo evidente na plenária inaugural com as intervenções da presidente do PE (que, sem aparentar qualquer sensibilidade para o contexto, só falou de crescimento!) e da presidente da Comissão Europeia, que tinha estudado a lição e referiu-se ao relatório ‘The Limits to Growth’, assim como ao famoso discurso de Robert Kennedy sobre a inadequação do PIB como indicador de prosperidade económica, mas não deixou de defender o ‘European Green Deal’ e o ‘crescimento verde’.


O lema radical “Decrescimento ou barbárie”, que usei como título de um post em 2019, não foi abertamente adoptado pelos proponentes da conferência (que preferiram aliás usar expressões mais ‘fofinhas’ como 'pós-crescimento' ou 'para além do crescimento'), mas o espírito da sua declaração de intenções (ver versão EN ou versão ES) não está muito distante. Segue um excerto elucidativo: “o atual modelo económico, baseado no crescimento infinito, atingiu os seus limites. Primeiro, o crescimento económico contínuo, fortemente baseado no consumo de combustíveis fósseis, é a principal causa do aquecimento global catastrófico. Em segundo lugar, a busca incessante do crescimento conduz ao esgotamento dos recursos naturais, à destruição da biodiversidade e à acumulação de lixo e poluição. O que também representa riscos para a nossa saúde, as nossas economias e as sociedades em geral. Em terceiro lugar, o actual modelo económico contribui para a desigualdade e exclusão social. A ênfase no crescimento económico não se traduziu numa distribuição equitativa de riqueza ou de oportunidade. Pelo contrário, resultou na concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos, deixando muitos para trás. Quarto, o modelo económico actual é inerentemente instável e propenso a crises, como se viu, por exemplo, durante a crise financeira de 2008 e a pandemia de COVID-19. A busca pelo crescimento a todo custo criou um sistema económico mundial frágil e vulnerável a crises.” Na mesma missiva, os eurodeputados defenderam ainda: “Partilhamos da opinião de que precisamos de um sistema económico que dê prioridade ao bem-estar humano e à sustentabilidade ecológica acima do crescimento do PIB, que reconhecemos que o crescimento infinito num planeta finito é impossível, e que precisamos de encontrar novas formas de organizar as nossas economias sem depender da exploração contínua dos recursos e do aumento constante da produção e do consumo.” Pediram maior pluralismo no pensamento e acção económicas dentro da UE e das suas instituições, e propuseram acções concretas nesse sentido, nomeadamente: 1) elaborar políticas europeias que integrem efectivamente os objectivos sociais, ambientais e económicos; 2) promover uma abordagem pluralista aos indicadores e modelos macroeconómicos utilizados pela UE e seus Estados membros; e 3) desenhar uma arquitetura institucional que melhor sirva uma estratégia de pós-crescimento.


Alinhada com aquela missiva mas com um enfoque mais claramente decrescentista, foi divulgada nas vésperas da conferência uma carta aberta promovida por Timothée Parrique, Kate Raworth e Vincent Liegey, pelas organizações Friends of the Earth, European Environmental Bureau, European Youth Forum e Wellbeing Economy Alliance, e subscrita por mais de 150 colectivos/organizações (entre os quais a Rede para o Decrescimento, da qual sou membro) e mais de 250 académicos e activistas, – ver p.ex. aqui (versão PT) ou aqui (versão EN). Para além dos aspectos e propostas constantes na declaração dos eurodeputados, a carta aberta especifica os quatros eixos principais das políticas pós-crescentistas, a saber: a biocapacidade, a equidade, o bem-estar para todos e a democracia activa.


Não houve grandes destaques ou notícias sobre a conferência nos principais media nacionais ou internacionais – como seria de esperar – mas a presença de Ursula von der Leyen na sessão de abertura e o interesse que o evento despertou, sugerem que os dias do crescimento a qualquer preço podem estar contados (ver lista de artigos no final deste post). De referir, no entanto, que a Euronews dedicou-lhe dois destaques de cerca de meia hora na sua edição online, promovendo debates com alguns dos intervenientes na própria conferência, antes e depois da sua realização – ver aqui e aqui.


Ao atribuir ao crescimento a designação de mito no título deste post, quis enfatizar a determinação (ou obsessão) dos actuais políticos, à direita ou à esquerda, na narrativa do crescimento, mesmo na posse dos dados que demonstram claramente a sua ineficácia e os seus efeitos destrutivos (ver p.ex. aqui ou aqui). E já houve muitos a desmontar ou a desconstruir este mito (para além dos próprios decrescentistas) – ver p.ex. aqui, aqui ou aqui. Mas então porque é que o mito persiste? A meu ver, existem duas razões principais. A primeira é que aqueles que mais beneficiam da sua persistência – a minoria de detentores do poder económico e financeiro, mas também os decisores políticos, já que dependem e protejem os primeiros – fazem tudo o que podem para que o mito persista e para que nada de essencial mude. A segunda é que uma grande maioria da população – que tem mais a perder mas que se deixou iludir pelo ‘canto das sereias’ que lhes garante que a prosperidade está ao virar da esquina, que não existem alternativas ao sistema dominante e que mudar só iria piorar a sua situação – não quer, ou tem medo, da mudança. A máquina de persuasão montada pelas elites e interesses instalados – através do marketing, dos media ou das redes sociais - está muito bem oleada e exerce o seu encantamento (ou alienação ou intoxicação) há várias décadas (ver p.ex. aqui). Não admira pois que o crescimento se tenha tornado uma crença quase religiosa, justificando que muitos decrescentistas defendam a necessidade de desintoxicar e descolonizar o imaginário (ver p.ex. aqui). A omnipresença da referência ao crescimento nos discursos de políticos, economistas, jornalistas ou ‘marketeers’ é aliás evidente para qualquer pessoa minimamente atenta – basta acompanhar as notícias que surgem em diversos OCS para o constatar. Segue-se uma lista de títulos recentes, meramente ilustrativa: “Economia cresce e as pessoas não sentem? A culpa é da inflação, dos juros e dos salários” (aqui); “PIB cresceu 6,7%, mas o cenário agora é de quase estagnação” (aqui); “Economia portuguesa cresceu quatro vezes acima da média da OCDE” (aqui); “Economia da China cresce ao ritmo mais lento em quase 50 anos” (aqui).


Esperemos que a penetração no debate público das críticas e propostas económicas alternativas, como o decrescimento, conduzam à desmitificação do crescimento como panaceia universal - e à concomitante desmistificação das narrativas crescentistas e produtivistas dominantes – desconstruindo em simultâneo muitos dos mal-entendidos e das falácias sobre o decrescimento (ver p.ex. aqui). Esperemos também que o conhecimento e as propostas políticas veiculadas pelos vários investigadores e activistas durante a conferência possam ser democraticamente consensualizados e postos em prática. Esperemos ainda que o resultado seja de facto uma melhoria da qualidade de vida, com uma redistribuição equitativa de recursos (e não meramente de riqueza), e que essas melhorias sejam (realmente) sustentáveis. E que conduzam a um verdadeiro bem-estar e bem-ser para todos (humanos e não-humanos). Não existe evidentemente vontade política para isso entre as actuais elites do poder, nem parece haver (ainda?) um despertar de consciências generalizado, mas a esperança é a última a morrer. A realização da conferência Beyond Growth no PE deu-me algum alento, embora a quase total ausência de cobertura mediática seja sintomática do poder da narrativa dominante e dos interesses instalados. Rejeitar o crescimento (como paradigma económico e sócio-cultural) é, acima de tudo, uma questão de bom senso para que possamos alcançar uma prosperidade equitativa, mas também para garantir não só a nossa sobrevivência, como a de tantos outros seres vivos e dos ecossistemas dos quais dependemos!...

Artigos/notícias sobre a conferência (PT)

- Notícia da Lusa, reproduzida em alguns OCS: ver p.ex. aqui;

- Artigo de opinião de João Wengorovius Meneses (secretário-geral do BCSD Portugal): aqui;

- Notícia no site Empregos para o Clima: aqui;

- Notícia no site WElectric: aqui;

- Notícia no site 'La Politica online' (ES): aqui.

Vídeos sobre o mito do crescimento (ver também vídeos citados neste post)

You can’t have infinite growth on a finite planet (Paul Guilding): https://sustainablehuman.org/stories/you-cant-have-infinite-growth-on-a-finite-planet/ (6’)

How economic growth has become anti-life (Vandana Shiva): https://sustainablehuman.org/stories/how-economic-growth-has-become-anti-life/ (2’)

Conventional Economics is a form of brain damage (David Suzuki): https://chrisagnos.com/conventional-economic-is-a-form-of-brain-damage/ (4’)

Our obsession with economic growth is deadly (Al Jazeera, Dez 2022): https://youtu.be/KLiXmteCvUI (25’)

Can the economy grow forever? (TED-Ed, Ago 2022): https://youtu.be/mT3P0YSNonE (6’) (a call for post-growth economy sponsored by WEF!)


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