Nota prévia: Este é um post longo que dividi em duas partes para facilitar a leitura (a 2ª parte está aqui).
“Paressons en toutes choses, hormis en aimant et en buvant, hormis en paressant.” Gotthold E. Lessing (citação que abre o 1º capítulo do ensaio de Paul Lafargue: “Le droit à la paresse”) (Sejamos preguiçosos em tudo, excepto em amar e em beber, excepto no preguiçar)
“We are depleted by a techno-economic system that is bent on treating the human and the non-human alike as raw material, as sites of extraction.” L.M. Sacasas (Estamos esgotados por um sistema tecnoeconómico que tende a tratar o humano e o não-humano igualmente como matérias-primas, como locais de extração)
Este texto surge na sequência do meu post de Fevereiro deste ano sobre a deserção e retoma um dos temas que aí aflorei, nomeadamente o do cansaço e da exaustão (‘burnout’) como sintomas ou consequências das actuais sociedades trabalhistas e produtivistas. Já tinha aludido a esta questão ao invocar nesse post as reflexões de Bifo Berardi, que estabeleceu uma ligação entre a natureza extractivista do modelo socioeconómico dominante e a dupla exaustão que gera: ecológica (dos recursos materiais e energéticos) e psicológica (dos seres humanos subjugados pelo trabalho e pelo consumismo). Esta conexão tem vindo aliás a ser invocada por outros autores, incluindo naturalmente defensores do decrescimento: p.ex. num artigo de 2019 liderado pelo investigador finlandês Pasi Heikkurinen, intitulado “Leaving Productivism behind: Towards a Holistic and Processual Philosophy of EcologicalManagement”, num texto do colectivo holandês The EmboDegrowth Lab com o título “Embodying degrowth and turning the movement inside out” publicado em 2021, ou num texto do final de 2022 pelo investigador independente norte-americano L. Michael Sacasas, intitulado “What you get is the world”.
No primeiro artigo, os autores, que se inspiraram nas ideias de Gregory Bateson, de Felix Guattari ou da filosofia marxista, escrevem: “Defendemos que o princípio produtivista, de produzir cada vez mais, está na origem do esgotamento e do excesso no contexto organizacional, pois a filosofia produtivista negligencia os recursos limitados da psique humana e ignora os limites do meio ambiente. (…) O que liga a globalização, a expansão e acumulação capitalista e as atuais práticas de gestão empresarial é a ideia produtivista de extrair os recursos infinitos do mundo, sejam eles mentais, sociais ou ambientais. A filosofia de gestão produtivista e as suas práticas podem, portanto, ser consideradas o elo de conexão entre os problemas da ecologia mental e da ecologia ambiental.”
No segundo artigo, os autores defendem: “Muitos de nós vivemos na ‘sociedade do esgotamento’, uma sociedade alimentada por combustíveis fósseis que nos aliena uns dos outros e de conexões mais profundas com a ‘natureza’ e o cosmos. Muitos de nós também internalizamos inconscientemente essa ideologia de crescimento que nos diz que ‘mais é melhor’. Somos moldados por instituições capitalistas como trabalho assalariado e escolaridade industrial que subvertem os nossos desejos e nos tornam ‘sujeitos de realização’. (…) A linguagem de uma ‘transição decrescentista’ é útil para mobilizar as pessoas e os seus coletivos em torno de objetivos políticos, mas retém uma imagem de actores políticos especializados que farão a ‘transição’ de um estado para outro. Oferecemos uma teoria alternativa de mudança que visa uma ‘transformação decrescentista’, ou mudanças mais profundas na ideologia e nas práticas quotidianas. Não será suficiente focar apenas na mudança de políticas e instituições; é essencial incorporar a transição e os seus significados mais profundos também de maneira pessoal. Com isso, queremos dizer que as ideias transformacionais começam e são executadas por meio dos nossos corpos nas suas múltiplas camadas e relacionamentos com os outros.”
No terceiro artigo, L.M. Sacasas afirma: “Estamos esgotados pelo ritmo e pela estrutura da vida contemporânea, particularmente pela forma como os limites espaciais e temporais, que forneciam pausas modestas das exigências que outros nos poderiam impor, foram corroídos pelas capacidades da tecnologia digital. Agora estamos sempre ligados e sempre disponíveis, o nosso frenesi como disfarce de flexibilidade. Estamos ainda esgotados pelo nosso ecossistema mediático, que, se o deixarmos, nos sobrecarregará com estímulos cognitivos e emocionais. Estamos também esgotados por um sistema tecnoeconómico que tende a tratar o humano e o não-humano igualmente como matérias-primas, como lugares de extração.”
Um outro autor que tem também abordado esta questão é o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han, em particular no seu livro ‘A Sociedade do Cansaço’ (2010), que citei num post de 2018. Han defende que a sociedade contemporânea é caracterizada pelo produtivismo neoliberal e que os ‘sujeitos de obediência’ da sociedade disciplinar descrita por Michel Foucault se converteram em ‘sujeitos de produção’, empresários de si próprios. Segundo Han, a sociedade disciplinar era caracterizada pela negatividade e pelo verbo ‘dever’, enquanto a sociedade produtivista é caracterizada pela positividade e pelo verbo ‘poder’. Estas características terão desencadeado não só expectativas de desempenho e de sucesso difíceis de atingir, como também um empenho egocêntrico (e narcisista) que tende a eclipsar a consciência social dos indivíduos. Um dos principais sintomas desta transformação seria a predominância das patologias de hiperactividade, de depressão e de esgotamento (burnout), em particular nos meios urbanos dos países ricos e industrializados. Citando o autor: “O novo tipo humano, que indefesamente se encontra entregue ao excesso de positividade, não comporta qualquer marca de soberania. O homem depressivo é o animal laborans que se explora a si mesmo, de forma voluntária, sem necessitar de pressão ou coação alheias. Ele é agente e vítima ao mesmo tempo.” E, mais adiante: “A queixa que se ouve dos lábios do indivíduo deprimido – nada é possível – só pode existir numa sociedade em que o ‘nada é impossível’ a máxima. (…) A depressão é a doença de uma sociedade que sofre de excesso de positividade e reflete uma humanidade em guerra consigo própria.” Embora considere que Han menospreza certas facetas opressivas da sociedades trabalhistas e produtivistas subjugadas pelo poder económico, como a precariedade nos países do norte global ou a exploração do trabalho subremunerado nos países do sul global, achei interessante o facto de o autor considerar que o cansaço não tem apenas um aspecto desmobilizador e desempoderador (que ele apelida de ‘cansaço alienante’, expressão emprestada do escritor Peter Handke), mas pode também gerar uma diluição do ego (resultante do que Handke chama ‘cansaço fundamental’, um cansaço inspirador ou clarividente), que abre um espaço de simpatia e de religação ao outro e ao mundo, recuperando a empatia social e uma propensão para um não-fazer sereno. Ou seja, o cansaço pode afinal ser um ensejo para superar a pressão social produtivista e trabalhista.
Para conhecer melhor o pensamento de Han sobre este tema, recomendo o documentário-ensaio ‘Fatigue Society: Byung-Chul Han in Seoul/Berlin’ (2015) da realizadora alemã Isabella Gresser. Recomendo também o vídeo-documentário ‘The Burnout Society: Hustle Culture, Self Help, and Social Control’ (2021) de 1Dime, que cita Han entre outros, fazendo uma crítica contundente à sociedade trabalhista que tomou proporções teológicas e que, alimentada pela ética protestante, pela ‘CEO-mentality’ e pela indústria da autoajuda, fomenta a compulsão do trabalho (‘workaholism’), os ‘bulshit jobs’, o esgotamento geral e a perda de sentido.
(continua)
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