terça-feira, 1 de agosto de 2023

JMJ 2023: uma inabalável fé no negócio

Não queria reduzir as coisas a uma análise de custo-benefício, mas todas as análises que conheço mostram evidentemente um enorme benefício que Portugal vai ter em todas as dimensões” Augusto Santos Silva (daqui)

A questão aqui é se nós queremos ou não ser naqueles dias o centro do mundo, (…) e o retorno, acreditem, que vai ser multiplicado, tudo isto que vamos investir, por 10 ou por 20. Eu não tenho dúvida de que vamos ter um retorno enorme” Carlos Moedas (daqui)

Enfim, tudo isto é triste. Mas nada disto é fé. É negócio, é política, é influência e tráfico dela, quiçá um pouco de corrupção também, mas não é fé. Mas é o que sempre foi.” João Mendes (daqui)

Começo por fazer notar que não sou católico (nem professo qualquer religião), embora comungue de muitos dos valores da ética e cultura cristãs, que incorporei durante os meus anos formativos. Por outro lado, teci elogios à encíclica Laudato Si’ publicada pelo Papa Francisco em 2015, como notável manifesto político em prol de uma ecologia integral. A apreciação pessoal que faço aqui do contexto nacional que envolveu a organização da Jornada Mundial da Juventude 2023 (JMJ) baseia-se numa leitura pessoal da informação que fui recolhendo nos últimos meses. Alguns dos factos que comento têm sido noticiados por diversos media e são por isso facilmente corroboráveis – ver p.ex. aqui.

© Inês M. Borges / SIC

A principal crítica que faço centra-se, por um lado, na forma como diversos políticos e governantes (em particular o presidente da CML, Carlos Moedas) se apropriaram do evento, com proclamações de um materialismo imoderado, desvirtuando e pervertendo o objectivo da JMJ de espalhar e praticar os valores cristãos, e, por outro, na atitude de aquiescência ou de condescendência da própria Igreja Católica em relação àquelas posturas ou às diversas polémicas que se foram sucedendo. Faço, no entanto, notar que as controvérsias sobre gastos excessivos ou eventuais prejuízos ou ‘derrapagens’ não são exclusivos da JMJ de Lisboa e já acompanham as suas antecessoras - ver p.ex. aqui.

As polémicas por cá começaram logo em Janeiro em volta dos orçamentos dos palcos-altares que iriam ser construídos no Parque Tejo e no Parque Eduardo VII – ver p.ex. aqui ou aqui. Transcrevo um excerto da 2ª notícia: “A empreitada do palco principal, orçada em 4,24 milhões de euros (mais IVA) – valor a que se soma mais um milhão de euros a gastar em «fundações indirectas para a cobertura» – foi adjudicada à Mota-Engil por ajuste directo. O custo gerou polémica, e o próprio bispo auxiliar de Lisboa reconheceu que o valor do palco-altar era excessivo e «magoa todos», posição que o Presidente da República elogiou, recomendando que a JMJ «seja uma projecção de Portugal no mundo» mas «tenha em linha de conta as circunstâncias económicas e sociais vividas neste momento». A revelação posterior do projecto para o segundo palco terá surpreendido negativamente Marcelo Rebelo de Sousa, que, segundo o Expresso, terá sugerido à Câmara de Lisboa e à Igreja que o trocassem por um «altarzinho».”


O principal e infatigável ‘cheerleader’ da JMJ tem sido sem dúvida o edil de Lisboa, Carlos Moedas – ver p.ex. aqui ou aqui –, repetindo de forma insistente (e irritante) a sua convicção de que Lisboa será o “centro do mundo” durante a JMJ. Para um “agnóstico convicto” (segundo as suas próprias palavras), as sucessivas declarações sobre o desejo da vinda do Papa parecem no mínimo incoerentes. Estas contradições não passaram aliás despercebidas (ver p.ex. aqui) e o seu entusiasmo pela vinda do Papa foi parodiado pelo videasta Bandex, no seu habitual estilo sarcástico – ver vídeo Papa Moedas. No entanto, a fé que Moedas tem expressado mais enfaticamente é mesmo no retorno económico extraordinário para a cidade – ver p.ex. aqui ou aqui. Só não especifica exactamente para quem!... A julgar pela especulação nos preços do alojamentos já podemos ter um vislumbre – ver p.ex. aqui ou aqui –, embora os hotéis rejeitem as acusações que lhes foram dirigidas (ver p.ex. aqui). A comparação que Moedas fez com a Expo ’98 (de acordo com esta notícia) é que terá sido um lapso, no mínimo, caricato… As atrapalhações (e irritações) de Moedas têm sido várias (ver p.ex. aqui ou aqui), mas também o presidente Marcelo vai metendo os pés pelas mãos – ver p.ex. aqui ou aqui.


Faço notar que quase todos os diversos governantes que se têm pronunciado (Moedas, Costa, Santos Silva ou Marcelo) justificam os investimentos públicos com alegados retornos económicos ou de projeção internacional para a cidade e para o país – ver p.ex. aqui ou aqui. Fez-me lembrar iguais proclamações aquando da Expo’98 ou do Euro 2004 – e sobre esses eventos já sabemos o desfecho (ver p.ex. aqui). Embora diversos representantes da Igreja tenham expressado o seu incómodo face às polémicas em volta dos custos, a preocupação da organização da JMJ com o retorno económico fica patente no protocolo que celebrou com o Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa justamente para contabilizar esse retorno (segundo esta notícia). Veremos que avaliação fará, por sua vez, o Tribunal de Contas sobre as despesas do Estado com a JMJ… Para já, foram revelados os sucessivos ajustes directos (mais de 85% do total) nos contratos firmados por entidades públicas e que ascendem a mais de 38 milhões de euros – ver aqui ou aqui. O governo garante que foi tudo feito dentro da legalidade – ver p.ex. aqui.

Claro que nada do que apontei é original e várias têm sido as vozes a criticar a ostentação, a demagogia, a hipocrisia, o clientelismo político ou a falta de bom senso – ver p.ex. textos de opinião de Isabel de Santiago, João Mendes, Miguel Guedes, Paulo Mendes Pinto ou Tiago Franco. Transcrevo um excerto das palavras de Isabel de Santiago: “A fé e a mobilização de jovens para a igreja e para a doutrina social devem estar associadas de forma evidente e lúcida aos seus princípios e não aos movimentos de vaidade de políticos que ostentam a bandeira da igreja para se promoverem — envelhecida mente — quando o movimento é jovem. Conhecem os portugueses a criadora do logotipo que está associado às jornadas? É simples e foi oferecido. Como vê a igreja este fausto? Como podemos defender o papel da igreja na caridade quando vemos esbanjamento de valores necessários aos mundos a que não pertencem os organizadores: o dos pobres? Fazer a promoção do país, num evento gigante, não passa por sorver o cofre de um país pobre e as receitas que deveriam ser aplicadas nesse desiderato: gerar e contribuir para o aumento das condições dos desfavorecidos, dos professores, dos enfermeiros, dos pobres portugueses, na sua maioria, jovens?


Quanto à contestação pública, a mais mediática terá sido a do artista Bordalo II que instalou uma longa “passadeira da vergonha” - intitulada ‘Habemus Pasta’ (ou ‘Walk of Shame’) - feita de mega-notas de 500€ no altar principal da JMJ no Parque Tejo, como protesto contra o investimento de dinheiro público e os ajustes directos de última hora – ver aqui ou aqui. Carlos Moedas não se ficou pelos ajustes e num assomo pueril apressou-se a colocar um singelo capacho com a expressão ‘Bem vindo’ em diversas línguas na mesma escadaria – ver p.ex. aqui. Já Marcelo foi mais contido e ‘abençoou’ a irreverência como acto de liberdade de expressão – ver p.ex. aqui. Outras manifestações de protesto surgiram na avenida Almirante Reis sob a forma de cartazes ou grafitti que denunciam a especulação imobiliária ou o envolvimento de detidos do sistema prisional nas obras da JMJ – ver p.ex. aqui ou aqui.




Muito mais haveria para dizer, mas deixo apenas alguns exemplos adicionais de ‘fait-divers’ relacionados com a JMJ para quem quiser explorar:

- Polémica em torno do selo proposto pelo Vaticano para assinalar a JMJ: aqui ou aqui

- Cadeiras personalizadas para o Papa e para Marcelo: aqui

- Hóstias de trigo alentejano: aqui

- Paramentos de burel nacional: aqui

- Diversas versões do “Pack Oração” (fabricado em Portugal): aqui

- Conselhos para os peregrinos (jornal Público): aqui

- Pingo Doce escolhido como “Parceiro Fundador de Alimentação da JMJ” faz o seu próprio proselitismo: “Pela energia do Bem que convoca, é com orgulho que apoiamos este evento, servindo a nossa Comida Fresca nos principais recintos” – ver vídeos aqui ou aqui, e notícias aqui ou aqui; mas existem outros parceiros, incluindo cadeias de ‘fast food’: aqui e aqui

Para o final, ficam ligações para duas ‘tiras’ do Bartoon de Luís Afonso para o jornal Público – uma sobre o selo do Vaticano e a outra sobre os impactos ambientais da JMJ.






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