domingo, 30 de julho de 2023

O nosso pacto faustiano com o fogo - bem vindos ao Piroceno!

O nosso pacto [com o fogo] reformulou as características de combustão da Terra. Juntos transformámos o que poderia ter sido mais uma época interglacial numa era do fogo. O Pleistoceno cedeu lugar ao Piroceno.” Stephen Pyne

O fogo trouxe-nos poder. Temos estômago pequeno e cabeça grande porque aprendemos a cozinhar a comida. Subimos ao topo da cadeia alimentar porque aprendemos a ‘cozinhar’ paisagens. Agora tornámo-nos uma força geológica porque começámos a ‘cozinhar’ o planeta.” Stephen Pyne

Podemos sobreviver sem uma ciência do fogo, mas não podemos viver sem uma cultura do fogo – uma cultura que garanta o lugar adequado do fogo na paisagem.” Stephen Pyne

O tema não é novo neste blog. Já o tinha abordado aquando dos incêndios florestais do ano passado em Portugal (aqui) ou daqueles que assolaram a Austrália no final de 2019 (aqui). Este ano, a ‘época de incêndios’ ainda não fez grandes estragos por cá, mas noutras partes do mundo o cenário é bem diferente e verdadeiramente catastrófico; em particular no Canadá, onde vastas extensões de floresta (boreal e taiga) têm sido consumidas por centenas de intensos fogos simultâneos que ardem ininterruptamente desde Maio – ver p.ex. aqui. Os impactos da calamidade são impressionantes: mais de 10 milhões de hectares de floresta ardidos nos primeiros seis meses de 2023, valor que ultrapassa já os das maiores áreas de sempre ardidas anualmente no Canadá (ca. 7 milhões de hectares em 1989 ou em 1995) – ver aqui ou aqui; as emissões de carbono (ou de CO2 equivalente) resultantes dos incêndios já excedem a média das emissões anuais do país, incluindo as resultantes da queima de combustíveis fósseis (ver aqui ou aqui); o fumo destes fogos cobriu já por duas vezes diversos estados do sudeste e do norte dos EUA, gerando péssimos níveis de qualidade de ar que obrigaram as autoridades americanas a emitir alertas (ver aqui ou aqui), e atravessou mesmo o Atlântico, atingindo diversos países europeus, incluindo Portugal em Junho (ver aqui); foram já relatados alguns impactos na biodiversidade animal (ver aqui ou aqui), mas a sua real dimensão estará ainda por avaliar.



Nos posts que mencionei no início, referi-me ao termo Piroceno cunhado pelo autor norte-americano e historiador do fogo Stephen J. Pyne (ver aqui), o qual procuro aqui desenvolver. De forma abreviada, o conceito, abordado inicialmente no seu livro “Fire – a brief history” de 2019, refere-se a uma Idade do Fogo que estaríamos a atravessar e que, segundo Pyne, é de escala comparável à Idade do Gelo do Pleistoceno. A sua premissa central é de que a espécie humana fez uma aliança primordial com o fogo que nos deu “estômagos pequenos e cabeças grandes” e nos levou ao topo da cadeia alimentar, mas que agora ameaça desequilibrar o planeta. Saber se essa aliança é um pacto de assistência mútua ou um pacto faustiano, é para Pyne a questão do nosso tempo. O autor subscreve a outra designação atribuída à actual era geológica marcada pelas actividades humanas – o Antropoceno – mas acrescenta-lhe a dimensão ígnea – ou talvez antes, ‘pirotécnica’! Como escreve Viriato Soromenho Marques num artigo de opinião a propósito da vinda de Pyne ao Porto em Maio deste ano para participar numa conferência internacional sobre incêndios florestais, onde apresentou a tradução portuguesa do seu livro de 2022 “The Pyrocene -How We Created an Age of Fire, and What Happens Next”, o autor “propõe uma leitura do Antropoceno a partir da radical mudança das nossas relações essenciais com o fogo, que, desde a pré-história foram determinantes na própria definição da identidade humana, seja físico-anatómica, seja cultural. Em segundo lugar, o Piroceno, a Idade do Fogo que hoje vivemos, resultou de uma enorme e veloz metamorfose. A partir do momento em que, com a Revolução industrial, começámos a recorrer maciçamente aos combustíveis fósseis…


A escolha do termo Piroceno para designar a actual era antropogénica é justificada por Pyne com base na análise de três etapas principais da história do fogo no planeta. O autor descreve um primeiro tipo de fogo (‘fogo natural’) que surgiu na Terra com o enriquecimento da atmosfera em oxigénio e a expansão das plantas terrestres durante o período Carbonífero (muito antes do surgimento da espécie humana), dando origem aos primeiros incêndios espontâneos, que moldaram as paisagens a partir dessa época. O segundo tipo (‘fogo antrópico primitivo’) surge com a apropriação e o uso do fogo pelas populações humanas pré-históricas que lhes permitiu, não só cozinhar alimentos (tendo gerado mudanças anatómicas e fisiológicas permanentes na nossa espécie), mas também moldar a paisagem dos seus territórios através do uso de queimadas. Esta nossa aliança com o fogo (que Pyne apelida de domesticação) terá permitido não só a sobrevivência às glaciações, mas também a expansão da própria espécie pelo globo. Pyne escreve no livro de 2022: “Seres humanos e fogo competiram em conjunto com o fogo da natureza e expandiram o domínio geral da combustão de tal forma que apenas uma pequena fracção da superfície terrestre – lugares cobertos por gelo, desertos implacáveis, florestas tropicais húmidas – carece de fogo. Ainda assim, os incêndios de origem humana ardiam como os da natureza, em paisagens vivas, sujeitos a condições e restrições compartilhadas.


O terceiro tipo de fogo (‘fogo pirotécnico’) chegou com a Revolução Industrial alimentada pela combustão de biomassa fossilizada (carvão e petróleo), que assim mobilizou esse carbono litosférico transformando-o em carbono atmosférico (CO2). A mudança climática resultante (com o aumento da temperatura e a redução de humidade) intensificou por sua vez os fogos florestais, em particular nos últimos decénios. Cito novamente Pyne (artigo de 2019 traduzido para a revista Anthropocenica): “Durante a maior parte da história humana, a busca do fogo significou uma busca de mais coisas para queimar. Essa dinâmica mudou quando as pessoas encontraram uma maneira de queimar biomassa fóssil, primeiro turfa e carvão, e depois petróleo e gás. Suplantámos os limites das paisagens vivas, queimando paisagens líticas. (…) Os novos fogos – considerem-se as combustões industriais – ardem em máquinas, não em paisagens. Eles podem arder dia e noite, inverno e verão, durante as épocas seca e húmida do ano. As velhas fronteiras bióticas dissolveram-se. A paisagem lítica da Terra já não subjaz à paisagem viva: sobrepõe-se-lhe. Estamos a retirar coisas do passado geológico e a lançá-las no futuro geológico. Mesmo as cadências dos ciclos e oscilações orbitais da Terra que moldam os ritmos das épocas glaciais não podem, ao que parece, conter os fogos desenfreados da humanidade. A história do clima tornou-se num subconjunto da história do fogo. O fogo não está simplesmente a preencher o vazio de uma era interglacial, mas a afirmar-se com o poder distintivo duma nova Era do Fogo. O chamado Antropoceno, a idade dos humanos, pode ser então denominado Piroceno. (…) A nossa aliança com o fogo pode ser o nosso primeiro pacto faustiano. O nosso poder ambiental é fundamentalmente um poder de fogo. No entanto, o fogo, que prosperou bem sem nós, também ganhou. Nós expandimos o domínio do fogo, recodificando as suas manchas e pulsos ecológicos, levámo-lo para lugares que nunca poderiam queimar por si mesmos, exumámos combustíveis do tempo profundo e lançámos os seus efluentes no futuro, deixando o planeta em chamas.


No artigo de opinião já citado
, Viriato Soromenho Marques reforça a posição de Pyne: “O fogo industrial, aquele que consome florestas fossilizadas que cresceram sob o Sol de há centenas de milhões de anos, arde escondido nos milhares de milhões de motores que trabalham para o nosso conforto, nas estradas, cidades, fábricas, nos céus... Sem disso termos consciência, toda a nossa civilização é um fogo permanente que transporta o carbono da litosfera para a atmosfera. Pyne chama a atenção para o facto de que o significado profundo do fogo não é sequer estudado, pois é partido aos pedaços pela fragmentação especializada das ciências e das técnicas. (…) Como escreve Pyne: «Nós também poderemos perecer no fogo se não controlarmos a sua combustão, isto é, se não nos controlarmos a nós próprios.»

Mas Pyne vai ainda mais longe na sua análise com o intuito de enfatizar que a dimensão do impacto humano não se limita a lançar quantidades inauditas de CO2 na atmosfera pela queima de combustíveis fósseis, mas estende-se também à (má) gestão dos incêndios florestais alimentados pela mudança climática antropogénica: “(…) a nova combustão tanto subtrai quanto adiciona; não combina bem com as outras formas de incêndio. Elimina o fogo das paisagens, assim como elimina as chamas das casas e fábricas, conduzindo a dois paradoxos: que apesar de todo o nosso novo poder de fogo, muitas paisagens sofrem de um deficit de incêndios [p.ex. queimadas controladas], e que a maioria das nossas tentativas de suprimir os incêndios em paisagens vivas apenas provocam piores incêndios. Temos demasiado fogo mau, muito pouco fogo bom e demasiada combustão em geral.


O diagnóstico de Pyne é corroborado pela avaliação da escala inusitada dos incêndios devastadores de 2020 e 2021 na Califórnia, na Sibéria ou na Amazónia, cuja análise o próprio Pyne faz no seu livro de 2022 citado acima – ver também este seu artigo de 2021 baseado nesse livro. A dimensão inédita dos recentes incêndios no Canadá só veio confirmar aquele diagnóstico. O próprio Pyne faz essa análise num artigo publicado já este ano (Can Canada Contain Conflagration?): “O Canadá começou a queimar o seu pavio de combustão em ambas as extremidades [paisagens vivas e líticas]. As eras do gelo em série que apagaram e repovoaram o Canadá como um palimpsesto cederam a uma era do fogo que está a reescrever a história com chamas. Um período interglacial transformou-se numa época propriamente dita - o Piroceno. (…) À argumentação acresce que confiar apenas na supressão do fogo só agrava a crise, que excluir o fogo deixa mais paisagem viva disponível para queimar, mesmo quando a mudança climática impulsionada pela combustão de paisagens líticas reforça a sua propensão a queimar. A maioria dos analistas defende melhores programas de gestão de florestas, terras e incêndios que funcionem com o fogo.” E adverte: “O Piroceno está a chegar ao Canadá com a escala e o poder da calote Laurentidiana. O país terá de encontrar maneiras de alavancar os seus múltiplos talentos sobre o fogo, não apenas para promover um bem global, mas porque o Canadá pode tornar-se a estaca zero de uma era de fogo. Essa mudança significará queimar algumas florestas em vez de abatê-las, e não queimar o betume e petróleo que o Canadá tem no seu solo.


Não podemos de facto deixar de responsabilizar a queima descontrolada de combustíveis fósseis pela intensificação dos fogos florestais por via das mudanças climáticas - leia-se p.ex. um artigo publicado este ano que demonstra a ligação entre a redução de vapor de água atmosférico, as emissões geradas por dezenas de empresas petrolíferas e cimenteiras nos EUA e Canadá e o seu impacto conjunto no aumento da área florestal ardida. Num artigo de opinião num jornal local, Chris Hatch acusou mesmo a governadora do estado de Alberta de pirómana pelo facto de não ter feito qualquer referência à mitigação da crise climática durante a campanha para a sua reeleição. Já Martin Scarpacci, num post de Fevereiro, relembra os grandes incêndios recentes na América do Sul, atribuindo a culpa aos detentores do poder económico e político, que sustentam um modelo societal baseado no capitalismo e no crescimento, e que lucram com os fogos. Mas é crucial questionar também a forma como se tem feito a gestão dos incêndios florestais, demasiado centrada no combate e muito menos na prevenção, com consequências desastrosas. Artigos recentes vieram realçar o papel das queimadas controladas praticadas pelos povos originários dos EUA e Canadá (ver p.ex. aqui) na prevenção dos fogos florestais e na regeneração das florestas, práticas essas que têm sido suprimidas ou reprimidas pelos respectivos governos – ver p.ex. aquiaqui ou aqui.

Numa reflexão publicada em 2020, Charles Eisenstein aborda estas mesmas questões, mas adiciona uma dimensão ética, defendendo que só uma mudança profunda de visão de mundo poderá conduzir a uma mitigação efectiva dos fogos florestais (e da crise ecológica): “Embora engenheiros, ecologistas e especialmente povos indígenas possam oferecer técnicas para gerir adequadamente as florestas e restaurar a sua resiliência, a transição para um mundo saudável requer algo muito mais profundo do que melhores técnicas. O mais importante seria aprender a habitar a fonte de onde surgem as práticas indígenas de cuidado da terra. Essa fonte é uma forma de ver, conceber e se relacionar com a natureza – encarando-a como ser e sujeito, em vez de coisa e exterior, por via da reverência e do relacionamento.


Também Steve Pyne invoca uma dimensão estética que conduza a uma relação mais saudável dos seres humanos com o fogo e os seus territórios, num artigo de 2022 que dedica às gerações mais jovens – “Our children will need to find the beauty in our burnt planet”: “O desafio estético colocado pelo Piroceno vai além de ajustar valores artísticos a um novo cenário natural, ou encontrar formas de ‘naturalizar’ uma paisagem construída, adaptando a estética das montanhas aos arranha-céus. Não somos hominídeos ajustando noções de valor a convulsões do tamanho de continentes impostas por mudanças na radiação solar. Somos, pelo contrário, os agentes que estão a derrubar uma ordem natural existente. Somos narradores não confiáveis avaliando não obras deliberadas de nossa própria criação, moldadas com algum indício de intenção estética, mas as consequências não intencionais das nossas implacáveis disrupções. É difícil não olhar para florestas tropicais destruídas, recifes de corais branqueados e paisagens cobertas de asfalto e plástico e não repetir o comentário do tenente Joseph Ives [durante uma das primeiras expedições ao Grand Canyon] de que tais paisagens são ‘lugares sem proveito’ e que, esteticamente, não merecem um segundo olhar. (…) Mas não é o caráter da paisagem, mas o caráter do olhar que determinará o seu valor. Temos uma abundância de ‘novidades’ nas paisagens modernas que aguardam os intérpretes certos. Eles virão da geração dos meus netos. (…) Eles merecem um mundo melhor do que aquele que receberam, mas também merecem o direito de ver esse mundo por si mesmos, não apenas como um planeta desgastado e de segunda mão, desprovido da sua antiga glória e grandeza.

Deixo, à laia de síntese final, duas citações adicionais de Stephen Pyne e uma do académico brasileiro José Eustáquio Diniz Alves:

Temos duas grandes narrativas para o fogo. A Prometeica, que fala do fogo como poder, como algo extraído do seu ambiente natural, talvez pela força, e depois direcionado como a mão e a mente humanas desejam. A Primitiva, que fala do fogo como um companheiro da nossa jornada, dos humanos como espécie-chave e como guardiões para reconciliar o fogo com a terra. O nosso futuro e o da Terra dependem de qual dessas vias narrativas decidamos seguir.” (S. Pyne 2019/2022)

O fogo não é nosso para fazermos dele o que quisermos. Nem estamos em guerra com ele. Há muito tempo, firmámos um pacto mutuamente útil. (…) Mas nos últimos 200 [anos], quebrámos esse pacto. Ficamos ávidos pelo fogo Prometeico e negligenciámos o fogo primordial. Esquecemos o bem que o fogo nos fez e quão mal o fogo nos pode desfazer. Esquecemos a nossa relação com o nosso melhor amigo e pior inimigo. Um pouco de fogo pode afastar o gelo. Demasiado fogo e mergulharemos em megaincêndios e numa plena era de fogo que será boa para o fogo e nefasta para nós.” (S. Pyne 2021)

Na verdade, o que precisamos é superar as Eras do Antropoceno e do Piroceno e caminhar para a Era do Ecoceno, onde o respeito ao meio ambiente coloque a Ecologia no centro do mundo, possibilitando que o ser humano possa viver em paz e harmonia com a biodiversidade e os ecossistemas, repartindo irmãmente e fraternalmente a Nossa Casa Comum, numa verdadeira Ecosfera saudável e feliz. O ser humano não é dono, mas sim parte da Comunidade Biótica Global, na qual todos os seres vivos estão inseridos. Nenhuma pessoa e nenhuma espécie pode ser feliz sozinha. O futuro da vida na Terra depende da prosperidade comum e compartilhada entre todas as espécies.” (José E.D. Alves 2021)



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