Quem lança o alerta é o activista e líder indígena Ailton Krenak numa entrevista recente ao jornal brasileiro 'O Globo' (pdf disponível aqui). Nessa entrevista Krenak questiona a noção dominante de progresso, que nos conduziu ao Antropoceno e que pretende normalizar a catástrofe ecológica, criticando uma certa ideia de humanidade ocidentocêntrica que marginaliza os povos originários que não se converteram àquela noção de progresso. Sublinha que a diferença entre as duas humanidades reside na forma como vêem e como se relacionam com a natureza - enquanto os humanos 'civilizados' vivem separados da natureza, destruindo-a com a ilusão de que a dominam, os povos indígenas vêem a natureza como uma extensão da humanidade e à qual estão intimamente ligados. Para Krenak é preciso entender a floresta como um mundo repleto de humanidades, e não um 'arranjo de árvores' ou uma fonte de recursos económicos. Ele defende a substituição da 'ecologia do desastre' por uma ética da existência baseada na reciprocidade com a natureza e numa pluralidade de saberes e de formas de vida.
Excertos: “É preciso questionar a ideia de progresso que embasa o senso comum da
suposta Humanidade. Essa ideia de Humanidade coloca os povos que vivem da terra
numa borda, como se o planeta tivesse secções. Enquanto uns habitam, outros
perambulam, zumbizando na marginalidade. Mesmo quando se tenta abrir o clube,
levando a esses povos saneamento ou saúde, isso é feito como um donativo, não
uma experiência de compartilhamento. É uma humanidade idealizada, porque se
você apertar, não tem os valores que prega. (…) As gerações passadas
encomendaram esse mundo que agora temos que roer. A provocação é justamente
perguntar: Que mundo nós estamos encomendando para quem virá depois? (…) A
aparente normalidade que vivemos inclui um cotidiano de catástrofe que vai
sendo naturalizado. (…) É uma narrativa que diz que, quando há um acidente,
cria-se uma oportunidade. E aí a sociedade vai criando acidentes e
oportunidades. É a ecologia do desastre. (…) Na ecologia do desastre, você se
adapta a um sistema estragado como se fosse natural. (…) A compreensão da floresta como algo vivo
implica num respeito que estabelece uma ética da existência, a reciprocidade
com a natureza. Esse modo de vida
proporciona uma prosperidade que não é econômica.”
Trata-se de uma voz indispensável para entender a actual crise civilizacional, que se junta às de outros líderes de povos menorizados e desvalorizados por séculos de colonialismo e arrogância de uma parte privilegiada da humanidade. Em Setembro, um outro líder indígena, Davi Kopenawa (citado por Krenak) recebeu o prémio internacional 'Right Livelihood Award' pelas suas acções em defesa das florestas e dos direitos dos Yanomami (ver aqui). O prémio surge num momento particularmente melindroso da história do Brasil, com os incêndios na Amazónia e as posições de afronta aos direitos indígenas do presidente Bolsonaro. Ailton Krenak esteve em Portugal em 2017 para participar num colóquio no Teatro Maria Matos sobre 'Questões indígenas'. Nessa ocasião deu uma palestra magnífica intitulada 'Do sonho e da terra'. Este ano regressou para um seminário no ICS, onde foi orador. Os textos dessas palestras e de uma entrevista que deu em 2017 foram reunidos numa edição da Companhia das Letras com o título 'Ideias para adiar o fim do mundo'. É possível aceder a um pdf dessa edição aqui. É uma leitura indispensável com uma visão clara e certeira sobre a crise existencial e o desnorte que se vive no 'ocidente'.
Excertos: "(…) Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.(…) Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo…
(…) a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes — a sub-humanidade.
(…) A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo."
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