domingo, 30 de junho de 2024

Respigos de Primavera #2: O descalabro dos ODS e o futuro incerto

Devemos acelerar a ação para os ODS — e não temos tempo a perder
. António Guterres

Desenvolvimento sustentável significa um mundo que é economicamente próspero, socialmente justo, ambientalmente sustentável e em paz. E nós não temos nada disso actualmente. Jeffrey Sachs

Não é a África que é um problema, mas sim o mundo. Logo, no centro dos ODS deveria estar o funcionamento desse mundo. Elísio Macamo

Foram publicados em Junho dois relatórios que fazem uma avaliação ou balanço da chamada Agenda 2030 dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), lançada pela ONU em 2015 (ver p.ex. aqui): o ‘Sustainable Development Report 2024’ (SDR 2024), publicado pela ‘Sustainable Development Solutions Network’ (SDSN) a 17 de Junho, e o ‘Sustainable Development Goals Report 2024’ (SDG 2024), divulgado pela ONU a 28 de Junho. Já tinha abordado a temática dos ODS em dois posts meus em 2019 (aqui) e em 2023 (aqui), onde destaquei algumas críticas àquela agenda.

As conclusões dos dois relatórios não são muito diferentes: os 17 ODS, assim como a maioria (pelo menos 70%) das correspondentes 167 metas, não serão presumivelmente cumpridos até 2030. As razões alegadas para esse falhanço drástico são várias: dificuldades em monitorizar o progresso nos diferentes países, descoordenação internacional, crises externas – pandemia, guerra na Ucrânia, inflação -, constrangimentos financeiros, desfasamento entre propostas técnicas e científicas e falhas na sua implementação pelo poder político. Sem grande surpresa, os ODS mais longe de serem atingidos prendem-se com questões ambientais e sociais, e com a paz.

Mas vamos por partes. O primeiro relatório (SDR 2024) foi apresentado durante a conferência internacional “Paving the Way to the Pact of the Future” organizada pela SDSN-Portugal e que decorreu em Lisboa nos dias 17 e 18 Junho. Esta conferência antecede a grande ‘Cimeira do Futuro’, convocada por António Guterres para Setembro na sede das Nações Unidas em Nova Iorque, onde será apresentado o chamado ‘Pacto para o Futuro’ que tem como objectivo “voltar a colocar o mundo no caminho certo para alcançar os ODS” (ver p.ex. aqui e aqui). O Público dedicou-lhe um extenso artigo que resume assim o diagnóstico feito no relatório: “A análise mostra que não apenas não estamos no caminho para atingir nenhum dos ODS a nível global, como ainda existem «grandes desafios» em seis dos 17 objectivos: fim da fome (ODS 2), saúde e bem-estar (3), comunidades e cidades sustentáveis (11), vida marinha (14), vida terrestre (15) e paz, justiça e instituições fortes (16). As metas relacionadas com os sistemas alimentares e terrestres, distribuídas por diferentes ODS, estão «particularmente fora de rumo», nota o relatório. Os restantes objectivos mantêm-se estagnados. Para o objectivo nº 10, de redução das desigualdades, não há sequer dados para fazer uma avaliação rigorosa sobre a tendência. Em suma, não estamos nada bem. (…) Tendo em conta que já se ultrapassou metade do tempo para fazer cumprir a Agenda 2030, as velocidades extremamente díspares [em diferentes países] são particularmente penosas de observar.” Mais à frente pode ler-se: “Ao observar os objectivos e as metas, os que mais avançaram parecem estar relacionados com mercados e dinheiro – energia limpa (ODS 7) e indústria, inovação e infra-estrutura (ODS 9) –, enquanto os aspectos sociais, ambientais e da paz parecem estar em retrocesso”. Ainda no mesmo artigo destacam-se alguns factores que terão contribuído para o incumprimento dos ODS: as crises externas, a inexistência de dados e métricas adequados, a ausência de convergência entre os ODS e as políticas nacionais e europeias, e as lacunas no financiamento aos países mais pobres. Grande parte da análise pareceu-me bastante superficial, sem aflorar aspectos que fazem parte das criticas de fundo aos ODS que detalharei mais adiante, sendo as incongruências entre os diferentes ODS mencionadas apenas indirectamente.

Na verdade, o aspecto que mais me surpreendeu no artigo foi a invocação do tema do ‘pós-crescimento’ e da crítica ao PIB como métrica de performance económica (‘Beyond GDP’ foi o tema de uma das sessões do primeiro dia da conferência que se realizou em Lisboa – ver aqui, aos 4h48min), assim como o questionamento da economia de mercado, em particular pelo presidente da SDSN, o economista Jeffrey Sachs, que deu em simultâneo uma extensa entrevista ao Público. No artigo citado acima escreve-se: “Um dos grandes obstáculos para que os ODS sejam considerados prioritários é que «organizámos a economia mundial em grande parte como um sistema de mercado de propriedade privada», explicou Jeffrey Sachs (…). Apesar de o Estado ter um papel importante em países como os da União Europeia, «as forças políticas dominantes continuam a ser impulsionadas pelos mercados».” E, na entrevista, Sachs afirma quando questionado sobre a pertinência do decrescimento: “Aprendemos que existem limites planetários — podemos agradecer aos cientistas por nos terem explicado isso de forma mais clara — e precisamos de viver dentro deles. O que é que isso significa em relação ao crescimento? O crescimento é simplesmente uma taxa de mudança de algo. Decrescimento significa que já não há mudanças? Não. Significa que não há mudança nas coisas prejudiciais. Precisamos de decrescimento nos combustíveis fósseis, sem dúvida. Precisamos de decrescimento na desmatação para criar pastagens, com certeza. Precisamos de decrescimento na utilização da informação digital? Não, porque há pessoas no mundo que não têm acesso a ela actualmente — mais informação será melhor. Decrescimento dos serviços de saúde? Claro que não — precisamos de mais serviços de saúde, porque há milhares de milhões de pessoas sem cobertura adequada. Acho que a discussão sobre o decrescimento não é muito precisa.” Jeffrey Sachs revela grande desconhecimento sobre o que é o decrescimento (ver p.ex. aqui), mas estas suas afirmações não são de estranhar: ele assume-se como social-democrata e tecnocrata, que acredita no recurso a instrumentos económicos para atingir objectivos pré-definidos, executados por especialistas e sem constrangimentos ideológicos ou políticos. Aos cidadãos fica reservado o papel de observadores atentos: “O cidadão comum deve compreender os objectivos, perceber se o seu governo está a fazer um bom trabalho ou não, exigir eficiência no governo, sem esbanjamento, corrupção ou guerras inúteis.

Já tinha escrito aqui sobre a agenda do ‘pós-crescimento’ e faço notar que a própria ONU publicou em 2023 o relatório “Valuing what counts - UN System-wide Contribution on Beyond GDP”. Numa secção intitulada ‘Sustentabilidade ou PIB’, o artigo do Público que referi acima consultou também Maria João Rauch, gestora da Rede Nacional para o Desenvolvimento Sustentável (SDSN Portugal): “Há uma desadequação destes modelos e das métricas que medem o desenvolvimento e a realidade. (…) No fundo, nós temos um modelo de desenvolvimento que é baseado na produção da riqueza e que é um modelo pós-guerra.” Mais à frente pode ler-se: “A conclusão é que não basta aumentar o financiamento para investir nos ODS – é preciso introduzir métricas suplementares ao PIB que valorizem [as conquistas sociais] (e penalizem os retrocessos). Ou seja, é preciso uma harmonização entre as várias áreas de política em torno de uma visão conjunta sobre para onde caminha a economia. Ao perder-se essa matriz social, as populações mais desfavorecidas têm sido mais atingidas ao longo do tempo por esta falta de redistribuição. (…) Também nas questões ambientais se vêem as limitações da forma como medimos a saúde das nossas economias, «chegando ao ponto ridículo de que, quando se cortam florestas na Amazónia, o PIB do Brasil sobe, porque estamos a produzir mais». «Dá cabo do planeta, mata gente, mas não faz mal, porque faz subir o PIB».” Não admira pois a afirmação de Sachs durante a entrevista e que citei na abertura do post. O problema é que a agenda dos ODS não vai à raiz da insustentabilidade do sistema socioeconómico dominante, além de vários ODS serem incompatíveis entre si. Mas já lá vamos.

O segundo relatório (SDG 2024), produzido pela ONU, foi apresentado em Nova Iorque com a presença de António Guterres, que fez uma declaração de abertura com algumas das suas já habituais tiradas dramáticas – ver p.ex. aqui ou aqui. Como disse acima, as conclusões são semelhantes às do SDR 2024, mas a sua divulgação foi acompanhada da publicação de imagens-resumo sobre os diferentes ODS, com mensagens bem pungentes – seguem-se alguns exemplos:

Guterres frisou que apesar de melhorias em alguns indicadores (paridade entre géneros, acesso a recursos digitais e internet, controlo das infecções por HIV e produção de vacinas contra a malária, transição para fontes renováveis na produção eléctrica), a velocidade e escala da mudança para um verdadeiro desenvolvimento sustentável ainda são demasiado lentas, além de haver indicadores ambientais e alimentares em retrocesso. Defendeu que serão necessárias acções mais abrangentes e céleres em áreas chave como a paz, a acção climática, a conectividade e economia digital, o envolvimento dos jovens e o financiamento. Em relação a este último tópico, defendeu ainda a aposta na estratégia ‘SDG Stimulus’ para financiar os países em desenvolvimento e que deve incluir a redução da sua dívida. Algumas daquelas propostas de acção já são apregoadas há décadas, mas sem resultados palpáveis, enquanto outras parecem-me demasiado genéricas para promover a mudança necessária.

Acontece que a noção de que as metas dos ODS não iriam ser cumpridas já existe desde o lançamento inicial da Agenda 2030 em 2015, tendo mesmo havido diversas críticas ao seu carácter neocolonialista e neoliberal - ver p.ex. aqui ou aqui. No ano passado, em que se cumpria o meio-caminho do período de vigência da Agenda 2030, o relatório ‘Global Sustainable Development Report 2023’ já indiciava o incumprimento da maioria dos ODS – ver p.ex. aqui ou aqui. As principais conclusões são aliás muito semelhantes às dos relatórios deste ano. Nessa altura, alguns académicos defenderam que os ODS são demasiado ambiciosos, mas que deveriam funcionar como orientação para as políticas regionais ou nacionais, desde que os decisores sigam as propostas técnicas dos estudos académicos e científicos, o que não terá acontecido – ver p.ex. aqui e aqui. Este último artigo cita Charles Kenny, investigador senior do “Center for Global Development”, que afirma: “A razão pela qual estamos a ficar para trás nos ODS é que eles eram super, super ambiciosos. E embora pudéssemos ter a capacidade técnica para cumpri-los, não implementámos agendas políticas super, super ambiciosas aos níveis nacional e global em parte alguma…”. E acrescenta: “talvez a única coisa pior do que não conseguir alcançar os ODS seria não perguntar como acreditámos que eles seriam alcançáveis”.


Tendo surgido na sequência da agenda precedente da ONU dos (oito) Objectivos do Milénio (2000-2015), que não foi cumprida (ver p.ex. aqui), os ODS foram uma tentativa bem-intencionada de integrar as dimensões ambiental, social e económica para desenhar estratégias para o bem-estar e prosperidade universais. No entanto, vários autores têm alertado para as incongruências e para a ‘agenda oculta’ dos ODS, que promovem uma visão de desenvolvimento ocidentocentrica e neoliberal. Para além dos dois artigos citados no início do parágrafo anterior, destaco o relatório “Stockholm+50: Unlocking a better future”, publicado pelo ‘Stockholm Environmental Institute’ em 2022, que destaca a incompatibilidade entre os limites dos sistemas biofísicos e sociais e a agenda de crescimento económico e de bem-estar universal inerente aos ODS: “the world's social and natural biophysical systems cannot support the aspirations for universal human well-being embedded in the SDGs”. Por seu lado, no capítulo sobre integridade planetária do livro “The Political Impact of the Sustainable Development Goals” de 2022, Louis J. Kotzé e colaboradores defendem que os ODS não dão suficiente prioridade à proteção ambiental: “não reconhecem que as preocupações com o planeta, as pessoas e a prosperidade fazem parte de um único sistema terrestre, e que a protecção da integridade planetária não deve ser um meio para um fim, mas um fim em si mesmo” e que “permanecem fixados na ideia de que o crescimento económico é fundamental para alcançar todos os pilares do desenvolvimento sustentável”.  Os autores destacam também as seguintes deficiências no desenho da agenda dos ODS: “o número de objetivos, a estrutura do quadro de objetivos (por exemplo, a sua estrutura não hierárquica), a (in)coerência entre os objetivos, a especificidade ou mensurabilidade das metas, a linguagem utilizada no texto e a sua aposta num desenvolvimento sustentável baseado no sistema económico neoliberal como sua orientação central.” A outra fraqueza da agenda dos ODS apontada pelos mesmos autores prende-se com as orientações éticas baseadas em noções modernistas (ocidentais) de desenvolvimento: “soberania dos seres humanos sobre o seu ambiente (antropocentrismo), individualismo, competição, liberdade (direitos em vez de deveres), interesse próprio, crença no mercado que conduz ao bem-estar colectivo, propriedade privada (protegida pelos sistemas legais), recompensas baseadas no mérito, materialismo, quantificação de valor e instrumentalização do trabalho.

No post que escrevi em 2019, citei um artigo do sociólogo moçambicano Elísio Macamo que critica o viés neocolonialista da agenda dos ODS a partir da perspectiva da sua aplicação em África. Macamo questiona: “É a África que precisa deles ou a burocracia internacional do desenvolvimento e da caridade remunerada que precisa de uma África que precise dos ODS?” e afirma: “Ao invés de lograr o desenvolvimento através da deliberação e da confrontação de projectos alternativos, os ODS sufocam o debate premiando aqueles que com eles concordam”, destacando que “o maior problema consistiu na fraca capacidade africana de gerir os efeitos das soluções.” Põe também em causa a prossecução de fins em detrimento da discussão sobre os meios para os atingir: “A África, hoje, não é pobre por ser pobre. É pobre porque é objecto de intervenção institucional para acabar com a pobreza.” O autor questiona ainda o próprio conceito de pobreza, assim como a estratégia para a mitigar (aspecto que destaquei no meu post de 2023): “Porque nunca nos passou pela cabeça que seja a riqueza o problema? A pobreza é o problema não porque o seja realmente, mas sim porque o sistema económico que gere o mundo assim a torna. (…) é fácil explicar porque a África devia rejeitar os ODS. Eles definem fins que definham o espaço político, impedindo uma discussão sobre os meios. Hoje, a pobreza é activamente produzida pelo modo dominante de gestão do mundo. (…) É suspeito querer resolver um problema criado por uma certa estrutura sem mexer nessa estrutura. Não é a África que é um problema, mas sim o mundo. Logo, no centro dos ODS deveria estar o funcionamento desse mundo.

A definição desadequada do conceito de pobreza e a desconsideração dos factores que para ela contribuem foram também aspectos negativos destacados pelo economista britânico (decrescentista) Jason Hickel logo em 2015 (aqui). No entanto, a sua crítica mais veemente prende-se com a incompatibilidade do crescimento económico com a sustentabilidade ambiental e a justiça social. Hickel considera que os ODS são não só uma oportunidade perdida, mas também activamente perigosos porque fazem depender a agenda de desenvolvimento global de um modelo económico falido. O autor destaca que o crescimento económico não reduz a pobreza e não resolve, antes intensifica, as desigualdades inerentes ao sistema neoliberal dominante, que são praticamente ignoradas pela Agenda 2030. Num artigo de 2024, Sam Markert defende igualmente que a promoção do crescimento a qualquer custo conduz a um desenvolvimento ambiental- e socialmente insustentável, em contradição com os objectivos daquela agenda. Confundindo a sustentabilidade com o progresso em áreas como a eco-eficiência, os ODS incentivam contra-intuitivamente um desenvolvimento insustentável e desigual. Markert defende a necessidade de experimentar modelos económicos alternativos, como a economia de estado estacionário, o decrescimento ou a ‘Doughnut Economics’, que abraçam a sustentabilidade e a prosperidade sem a dependência do crescimento económico, contribuindo para um futuro onde o desenvolvimento humano e a preservação ambiental são possíveis em simultâneo.

Existem várias propostas para tentar salvar, ou, pelo menos, realinhar, a agenda dos ODS que serão discutidas na ‘Cimeira do Futuro’ em Setembro, onde será apresentado o ‘Pacto para o Futuro’ – ver p.ex. aqui ou aqui. Muitas delas parecem-me meramente cosméticas por não fazerem face às questões fundamentais que acabei de mencionar. A discussão em volta do ‘pós-crescimento’ e da substituição do PIB soa-me mais promissora, mas não será claramente suficiente. Um outro indício mais ousado é referido no artigo do Público que citei no início, onde é mencionada uma proposta avançada no relatório ‘SDR 2024’ de restruturação das próprias Nações Unidas (incluiria a reforma da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança, bem como a criação de outros conselhos) e de reforma da arquitectura financeira global. Duvido que seja possível reformar ou mesmo eliminar instituições, como o FMI ou o Banco Mundial, mas seriam sem dúvida passos fundamentais para transformar o sistema financeiro global que, há décadas, beneficia os países do Norte global e penaliza os do Sul. Finalmente, na ONU já se discute qual deverá ser a estratégia pós-2030. Uma ideia, que se baseia em estudos sobre as interações entre os ODS, é o enfoque num número menor de objetivos transversais, incluindo o bem-estar humano, a descarbonização energética e economias sustentáveis e justas (ver p.ex. aqui). Atendendo ao caminho percorrido até agora, duvido que os actuais líderes políticos tivessem a capacidade ou a ousadia de agir no sentido de alcançar a definição desenvolvimento sustentável resumida por Jeffrey Sachs: “um mundo que é economicamente próspero, socialmente justo, ambientalmente sustentável e em paz” - como se viu p.ex. na recente cimeira do G7 (ver p.ex. aqui). A obsessão de Guterres (e de outros líderes mundiais) com a velocidade (“Devemos acelerar a ação para os ODS”) e com chavões vazios (“não deixar ninguém para trás”), são claramente fastidiosos e inconsequentes. Uma gralha no título de um artigo de 2016 que faz a apologia dos ODS acaba por descrever inadvertidamente a sua verdadeira natureza – “Unsustainable Development Goals” (em vez de “UN Sustainable Development Goals”)!


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