quinta-feira, 27 de junho de 2024

Respigos de Primavera #1: Dia mundial do ambiente, a indignação de Guterres, o meteoro e os dinossauros

No caso do clima, nós não somos os dinossauros. Nós somos o meteoro. Não estamos apenas em perigo - nós somos o perigo. António Guterres

O Dia Mundial do Ambiente (DMA), assinalado no dia 5 de Junho, teve este ano como lema “Our Land, Our Future. We are #GenerationRestoration”, com apelos a 'acelerar' o restauro dos territórios, a resiliência à seca e à desertificação (todo um programa…) – ver p.ex. aqui ou aqui. Na ocasião, o secretário-geral da ONU fez mais um dos seus discursos em registo dramático – ver aqui, aqui ou aqui. Como já aconteceu em várias outras ocasiões (de que dei nota aqui ou aqui), Guterres voltou a avisar que o mundo caminha para um “inferno climático” e que a humanidade está num “momento decisivo” na luta contra as mudanças climáticas, enfatizando que a acção global deve ser “sem precedentes” e recomendando o que as empresas e os países — especialmente do G7 e do G20 — deverão fazer durante os próximos 18 meses para garantir um “futuro habitável para a humanidade”. Talvez por ter feito estas declarações no Museu de História Natural em Nova Iorque, Guterres recorreu a uma analogia com o meteoro que levou à extinção dos dinossauros: “Nós somos o meteoro. (…) Nós somos o perigo” (ver citação no início do post). Como referi anteriormente (p.ex. aqui), fazer esta afirmação sem a contextualizar acarreta o risco de dar a entender que aquele “nós” é toda a humanidade, quando, na verdade, os verdadeiros responsáveis são uma minoria dos seres humanos que se vêm comportando como agentes do ecocídio global. Só que ao contrário do que afirmou Guterres, ‘nós’ também somos os dinossauros, pois faremos igualmente parte da lista de vítimas do ecocídio em curso – ver p.ex. aqui.


Como realçado no artigo do Público citado acima, Guterres indignou-se desta vez contra os que apelidou de “padrinhos do caos climático”, ou seja, as indústrias de combustíveis fósseis (CFs) que fazem greenwashing, lobbying e publicidade quando e onde bem lhes apetece, ao mesmo tempo que arrecadam lucros recorde e recebem milhões em subsídios financiados pelos governos. A autora do artigo (Andréia A. Soares) destaca a comparação feita por Guterres entre a ‘normalização’ da publicidade ao tabaco no passado e a da publicidade actual às petrolíferas, e afirma: “Achávamos normal. Hoje ficaríamos escandalizados ao ver um desportista a promover algo que vicia, provoca doenças e pode matar. Ainda que muitos carreguem nos ombros, nas suas camisolas, nomes de casas de apostas ou marcas de bebidas.” A jornalista parece esquecer-se que p.ex. a Emirates (estampada nas camisetas de jogadores e adeptos) patrocina o Benfica, para além do Real Madrid, o AC Milan ou o Arsenal, entre outros. E o transporte aéreo é dos que mais contribuem para as emissões globais!... Ou seja, alinha com a proibição da publicidade a CFs, mas nada diz sobre estendê-la às companhias aéreas e outras indústrias poluentes... Mais à frente escreve: “O paralelo que Guterres estabelece entre o tabaco e os combustíveis fósseis faz sentido. E o mesmo se pode dizer da proibição de anúncios ou patrocínios vindos de empresas ligadas ao petróleo, gás ou carvão. Um grupo internacional de médicos publicava nas nossas páginas, esta semana, um artigo de opinião reivindicando exactamente isso: a urgência de mobilizar a União Europeia para proibir a publicidade a combustíveis fósseis, a exemplo do que se fez há mais de duas décadas relativamente ao tabaco.” Estranhamente (ou nem tanto), quando é para boicotar a pérfida Rússia e o seu líder demoníaco, podem reabrir-se centrais a carvão e continuar a extraí-lo da terra, como fez a Alemanha... Também já percebemos que o Pacto Ecológico Europeu é sacrificado face às contingências políticas e económicas do momento – como testemunham Jannick Janssen (analista do Centro Jacques Delors) e Viriato S. Marques (VSM), citados neste outro artigo. Janssen defende: “O que temos visto na campanha para as eleições europeias, no entanto, é «um recuo substancial» dos compromissos ambientais, notou. «Partidos liberais e conservadores defendem muitas vezes a reversão de medidas importantes do Pacto Ecológico Europeu, como a eliminação gradual das vendas de veículos com motor de combustão até 2035»”. Por seu lado, VSM afirma sem rodeios: “Os projectos que o Governo do PS aceitou com aplausos, e que o Governo do PSD vai também aceitar, de mirtilo intensivo, olival intensivo, amendoal intensivo, abacate, em terrenos semidesérticos, no Algarve e no Alentejo, são financiados por capitais privados de fundos de investimento — dinheiro que é feito para se reproduzir o mais rápido possível — e por financiamento europeu. (…) Tornar os populistas os responsáveis por isto seria uma caricatura, não é? (…) Não foram os populistas que impediram a aprovação no PE da legislação para controlar os produtos químicos que causam a morte das abelhas. Foi a indústria química, que produz esses produtos. O PE e a Comissão Europeia são permanentemente alvos de pressões, seduções e de recompensas por parte dos sectores económicos mais significativos”. Resumindo as afirmações de VSM, o artigo destaca que “É preciso pedir responsabilidades aos partidos do centro, aqueles que têm governado — Portugal e a Europa. «Custa-me que as pessoas que tinham a obrigação de ter uma visão mais aberta dos riscos que corremos venham, em nome dos galões democráticos, fazer dos populistas o bode expiatório da sua própria incompetência»”.


O artigo do Público citado no início deste post remata assim: “Ofereço um exemplo: há um quarto de século, a selecção portuguesa de futebol tem como patrocinadora oficial uma petrolífera. Hoje achamos normal. Quando ficaremos escandalizados?” A minha resposta a esta última pergunta é que, pela forma como as pessoas foram condicionadas a aceitar as falácias do marketing sem se questionarem, fazendo mesmo de si próprias veículos de publicidade (e pagando para isso!), talvez não tão cedo... Principalmente, se os media dominantes não passarem a assumir uma posição crítica perante os poderes instalados, proporcionando uma efectiva elucidação dos seus públicos.


Voltando ao seu discurso por ocasião do DMA, o líder da ONU agradeceu aos jovens activistas climáticos que pressionam os decisores políticos para agir: “Vocês estão do lado certo da história. Vocês falam pela maioria. Continuem assim; não percam a coragem, não percam a esperança”. Se as palavras (ou os protestos) dos jovens tiverem tanto efeito como as de Guterres, não vamos longe!... Quanto à possibilidade de mitigar de facto a catástrofe ambiental em curso, a inconsequência dos sucessivos discursos dramáticos de António Guterres e o completo desdém por parte do poder político e económico em relação às suas mensagens e apelos (ver também o que escrevi aqui), levam-me a questionar se o próprio Secretário Geral da ONU não será já olhado por muitos como um dinossauro em vias de extinção…

P.S. Num artigo de opinião recente, Ana Cristina Leonardo listou, em tom irónico, as múltiplas e profundas preocupações que Guterres tem expressado publicamente de forma pungente ao longo da sua carreira na ONU.

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