sábado, 27 de julho de 2024

Respigos de Primavera #3: Equívocos e lacunas no debate sobre imigração

Quem for contra a imigração é contra o desenvolvimento do país. Álvaro Mendonça e Moura (presidente da CAP)

Sem imigrantes a economia entrava em colapso. Francisco Assis (deputado do PS e ex-presidente do Conselho Económico e Social)

Em Portugal não há imigrantes a mais, há um problema de regularização de imigrantes e de acolhimento de imigrantes. Mariana Mortágua (dirigente do BE)


Tenho-me cruzado com vários escritos e tomadas de posição recentes sobre o tema da imigração em Portugal e lido muitas afirmações peremptórias que me deixaram incomodado ou perplexo. Sei que o assunto é complexo e que este tipo de afirmações já vem de há uns anos a esta parte – ver p.ex. aqui. Mas parece-me que existem vários mal-entendidos, contradições e mesmo alguma hipocrisia, com vieses ideológicos à mistura, nas abordagens ao tema. Uma daquelas afirmações, repetida por pessoas de diferentes sectores e cores políticas, é a de que ‘Portugal precisa de imigrantes’ ou, na sua versão ainda mais discutível, de que ‘a economia nacional colapsaria sem imigrantes’. A nuance entre os afiliados com a esquerda ou com a direita é que os primeiros defendem de forma mais veemente a legalização dos imigrantes, assim como salários justos e condições de trabalho e de vida dignos. No entanto, nem sempre apontam o dedo ao contexto económico e político que, não só não previne, como até promove, o oportunismo dos empregadores que se aproveitam da precariedade e fragilidade dos trabalhadores estrangeiros, pagando-lhes salários de miséria e não lhes oferecendo condições de trabalho dignas. Mas mais do que isso, não tenho encontrado reflexões mais aprofundadas sobre as consequências socioeconómicas e culturais da imigração precária a médio-longo prazo, ou sobre as suas causas profundas, nem análises que ponham em causa explicitamente o modelo de negócio dos empregadores, frequentemente mercantilista e neoliberal. Também não tenho encontrado nos debates sobre imigração quem questione a (in)sustentabilidade ambiental e socioeconómica dos sectores de actividade que empregam maioritariamente imigrantes, como a agricultura, a construção ou o turismo, e que necessitariam de profundas transformações. Em contraponto, tenho ouvido as crescentes investidas de sectores da chamada ‘extrema-direita’ que usam os imigrantes como bode expiatório para todos os males sociais ou económicos de que a sociedade portuguesa padece, recusando explicações menos simplistas como o oportunismo económico e a incompetência ou desfaçatez política, nomeadamente dos governantes do centrão que se revezam no poder há décadas e que são cúmplices ou fantoches do poder económico que beneficia da mão-de-obra precária.


Como exemplo do primeiro tipo de afirmações, recorro a artigos ou entrevistas recentes no jornal Público. Um deles (aqui) cita declarações do presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), Álvaro Mendonça e Moura, que afirmou taxativamente que “É muito importante percebermos todos que quem for contra a imigração é contra o desenvolvimento do país. Isto precisa de ser interiorizado”, tendo destacado a importância dos trabalhadores estrangeiros para sectores como a agricultura, turismo ou construção, que dependem desta mão-de-obra “para a sua sobrevivência”. O presidente da CAP defendeu ainda que se evitem populismos, nomeadamente a ideia de que Portugal poderia prescindir destes trabalhadores, o que disse ser “um disparate com gravíssimas implicações económicas”. Sobre as condições de trabalho e de vida dos imigrantes a laborar no sector agrícola, Mendonça e Moura defendeu que sejam contratados “em boa e devida forma”, com contratos de trabalho, e que os trabalhadores estrangeiros sejam “devidamente integrados, com condições de vida dignas e com respeito pelos seus direitos”. Já sobre o oportunismo e a falta de ética dos empregadores (e sub-contratadores) que exploram a mão-de-obra barata para maximizar os lucros, nada disse! O mesmo artigo refere ainda que Mendonça e Moura criticou aquilo que afirma (demagogicamente) “ser um «extremismo ambiental» que não aceita a agricultura e que gostaria que toda a paisagem fosse «um sítio de lazer para o citadino ir uma vez por ano», vincando que não se pode fazer uma dissociação entre sustentabilidade ambiental, social e económica.” Claro que em relação ao modelo de agricultura praticado por muitos empregadores, em particular no Alentejo, esse sim verdadeiramente extremista, quer ambiental- quer socialmente, o presidente da CAP nada diz – escrevi sobre este tema aqui.


Curiosamente, no mesmo dia, o redator principal do Público, Manuel Carvalho, escreveu um artigo de opinião onde denuncia a hipocrisia e indiferença no debate sobre a imigração, afirmando: “A imigração tornou-se assim objecto de reacções a quente, emocionais, por vezes sectárias. Não devia ser preciso um incêndio, um dislate de um político ou uma agressão bárbara para que nos obrigássemos a reflectir sobre as condições em que vive uma parte importante dos que nos procuram para viver e trabalhar. (…) Se essas pessoas são vítimas de racismo, a prova está na indiferença com que a sociedade portuguesa assiste à sua exclusão. Pode ser por causa de um sentimento de impotência, pelo egoísmo de dispor de serviços baratos ou por simples alheamento, mas a imigração recente deu lugar à banalização do abuso e à instituição da ilegalidade.” Estranhamente, não se refere às declarações do presidente da CAP, publicadas nesse mesmo dia… Carvalho defende ainda que: “Se a indiferença é pecado dos cidadãos, a responsabilidade do que está a acontecer é principalmente do Estado. A ideia onírica de abrir as portas a imigrantes sem acautelar as condições para os legalizar, acolher, encaminhar e proteger foi um crime contra o país e contra as pessoas.” Concordo com a denúncia da indiferença dos cidadãos e da negligência de entidades públicas e decisores políticos, mas faltou claramente apontar o dedo à falta de escrúpulos e ao oportunismo dos empregadores. O autor conclui assim: “Ficámos reféns do extremismo racista da direita ou do relativismo hipócrita da esquerda. O primeiro, um instrumento ideológico, o segundo, uma falácia porque, como escreveu Francisco Mendes da Silva [advogado e comentador], «a imigração é mesmo a única matéria em que a esquerda portuguesa é a favor da desregulação ultraliberal dos mercados».” Concordo em parte com esta última afirmação, como desenvolverei mais à frente, mas, mais uma vez, isentam-se os empregadores oportunistas e sem escrúpulos de culpas no cartório. Também não senti um questionamento do sistema económico que supostamente depende da mão-de-obra imigrante para a sua sobrevivência. Lamentavelmente, a afinidade de Manuel Carvalho pelo modelo agrícola industrial desenvolvido por grandes sociedades, multinacionais ou fundos de investimento internacionais, ‘baseado em tecnologia e ciência’ e que alega ser sustentável, mas que se alimenta da mão-de-obra barata e da devastação ambiental, tinha ficado patente em anteriores artigos seus, onde defende (sem espírito crítico) aquelas práticas agrícolas, apelidando-as de ‘revolução silenciosa’ (aqui) e de serem o ‘lado sexy’ da agricultura nacional (aqui)!


Numa entrevista recente, Francisco Assis, actual deputado (e ex-eurodeputado) do PS, e ex-presidente do Conselho Económico e Social, assume uma postura semelhante à de Mendonça e Moura: “A Europa precisa de imigrantes e Portugal precisa de imigrantes. Fui presidente do Conselho Económico e Social durante os últimos três anos e meio. E vi, variadíssimas vezes, os representantes nas reuniões da concertação social, os presidentes das confederações empresariais, da indústria, do turismo, do comércio e serviços da agricultura, apelar ao governo para que o governo fosse tomando providências no sentido de garantir a vinda mais fácil de imigrantes para Portugal, sob pena de alguns sectores da nossa actividade económica, pura e simplesmente entrarem em colapso.” Para além da sustentabilidade dos sectores de actividade nomeados, Assis menciona ainda a necessidade de compensar o que apelida de ‘recuo demográfico’, como justificação para a imprescindibilidade da imigração. Mais adiante afirma: “a ideia de que nós vamos agora aqui escolher os imigrantes é completamente absurda. A ideia de que nós precisamos de imigrantes altamente qualificados… é bom que venham pessoas altamente qualificadas, mas a verdade é que não é essa a preocupação fundamental dos nossos agentes económicos. Eles precisam de pessoas para trabalhar na indústria, pessoas para trabalhar nos restaurantes, nos cafés, nos hotéis, para trabalhar nas explorações agrícolas.” Assis não põe assim em causa a conduta oportunista dos ‘agentes económicos’ daqueles sectores de actividade, referindo-se antes à necessidade de legalizar e de proporcionar condições dignas para os trabalhadores estrangeiros, além de criticar os argumentos falaciosos da extrema-direita sobre os imigrantes.


Num artigo de opinião, a economista Susana Peralta, invocou igualmente os argumentos do colapso de sectores-chave da economia e da reversão do declínio populacional para justificar a necessidade de acolher trabalhadores imigrantes, citando dados de um relatório do Observatório das Migrações do final de 2023. Mas a sua análise foca-se principalmente na denúncia das várias debilidades do apoio social aos imigrantes que não lhes garante as condições dignas para viverem e trabalharem, destacando a precariedade das associações de apoio aos imigrantes e a burocracia das entidades públicas, assim como as redes de tráfico de mão-de-obra e a falta de habitações dignas e acessíveis. Peralta afirma: “A falta de meios das organizações causa-me bastante perplexidade porque a dignidade dos imigrantes devia ser uma prioridade absoluta das nossas políticas públicas… (…) os imigrantes estão expostos a maior precariedade, relações laborais mais instáveis, salários mais baixos e maior sinistralidade em setores como a construção civil, hotelaria e restauração, serviço doméstico: outra ótima razão para deixar as organizações de apoio continuarem o seu trabalho.” A validade destes argumentos é confirmada por notícias mais recentes - ver p.ex. aqui. A autora denuncia ainda as bandeiras típicas do discurso xenófobo e anti-imigração, exemplificadas pela moção “Portugal precisa de mais portugueses” apresentada na convenção nacional do Chega. No entanto, Peralta não faz menção ao carácter mercantilista e oportunista dos empregadores dos sectores que empregam mão-de-obra pouco qualificada, nem questiona a nossa aposta e consequente dependência daqueles sectores de actividade económica ou a ineficácia (ou inexistência) da sua regulação ou fiscalização. Talvez não seja de espantar a ausência de um questionamento mais explícito do modelo económico neoliberal por parte da autora, docente numa instituição de ensino (a NOVA School of Business and Economics) que é subserviente daquele mesmo modelo económico – ver p.ex. aqui.


Num registo não muito diferente, mas muito focadas na questão da necessidade de legalização dos imigrantes presentes no território nacional ou a nível europeu, foram as declarações e opiniões expressas por dirigentes do BE (Mariana Mortágua, Graça M. Pinto, Fabian Figueiredo) em artigos no site esquerda.net ou no Público, dirigindo críticas a documentos como o Pacto Europeu das Migrações (aqui) ou o Plano de Ação para as Migrações (PAM) proposto pelo actual governo (aqui e aqui), ou à actuação da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA, ex-SEF)(aqui). As falhas sucessivas da AIMA são evidentes e têm vindo a ser devidamente denunciadas – ver p.ex. aqui ou aqui. No entanto, reduzir o problema à questão da legalização dos imigrantes e à inoperância das entidades públicas, parece-me claramente insuficiente para o caracterizar adequadamente. No artigo em que alerta para os perigos da imigração ilegal, Mariana Mortágua afirma: “«Imigração ilegal» é o que acontece quando o Estado recusa acolher as pessoas que a economia convocou.” Por seu lado, em declarações sobre o PAM, Fabian Figueiredo afirma: “[a AIMA] não responde às necessidades dos imigrantes em Portugal, que são tão importantes, nomeadamente, para a economia do país, tal como já reconheceu o presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal, e para a sustentabilidade da Segurança Social.” Quer a primeira, quer o segundo, reforçam a ideia da indispensabilidade dos imigrantes para ‘a economia’ sem no entanto referir explicitamente ou questionar o tipo de economia em que os imigrantes se integrariam após a legalização. Pior esteve Fabian Figueiredo ao invocar a argumentação do presidente da CAP (cujas declarações comentei acima) ou a sustentabilidade da Segurança Social.


É evidente que o modelo económico e os poderes políticos dominantes promovem ou permitem as situações de grande injustiça e precariedade que têm sido denunciadas, mas infelizmente (e convenientemente) rapidamente esquecidas, como as que resultam da actuação de máfias do tráfico de mão-de-obra de imigrantes, muitas vezes com o conluio dos empregadores ou dos sub-contratadores – ver exemplos referentes ao sector agrícola relatados aqui, aqui, aqui ou aqui. No entanto, acho que é fundamental rebater frontalmente a afirmação de que 'a economia' precisa de imigrantes, pois é a natureza dessa mesma economia que terá de de ser questionada. Aquilo de que precisamos seria uma economia que servisse as pessoas -
 imigrantes ou não - nos seus territórios e que as fixasse nesses mesmos territórios, promovendo a justiça social e a sustentabilidade ambiental.


Embora esteja mais ou menos de acordo com algumas das diferentes opiniões que detalhei acima, sinto falta de uma maior abertura e abrangência nos debates sobre o tema obviamente complexo da imigração, que incluam questões de fundo como: as consequências para todos os trabalhadores assalariados, imigrantes ou não, da prática oportunista dos agentes económicos que provocam a redução de salários e das regalias sociais, desencadeando descontentamento social generalizado; a natureza mercantilista e predatória do modelo socioeconómico dominante que promove práticas económicas que tiram proveito e fomentam a precariedade laboral, sem que os governos locais tenham capacidade ou vontade política para as regular; as causas profundas dos movimentos migratórios, que incluem nomeadamente o modelo socioeconómico dominante globalmente e a dinâmica geopolítica resultante, que conduzem a profundas desigualdades e injustiças sociais ou ao desencadear de conflitos nos países de origem (que são muitas vezes, por sua vez, consequência das políticas financeiras e económicas dos países ocidentais de destino dos imigrantes); os impactos sociais e culturais da presença de pessoas com valores e práticas culturais muito diversas das dos países de acolhimento e como conciliá-las com o respeito pela diversidade, pela coexistência e pela identidade cultural de cada região. Sei que é um aspecto controverso, mas em relação a este último ponto, considero especialmente relevante que se abram discussões sobre os impactos da presença de muitos imigrantes cuja presença no nosso país é temporária, porque serve apenas como trampolim para países europeus com melhor nível de vida ou porque se destina meramente a fazer o dinheiro suficiente para regressar ao país de origem, não havendo assim uma ligação duradoura ao território ou à cultura, tendo como consequência uma progressiva descaracterização ou até degradação desses mesmos territórios, como acontece p.ex. em certas regiões urbanas do Algarve ou em zonas suburbanas dos arredores de Lisboa. É evidente que cuidar do território e das comunidades locais deve ser uma tarefa colectiva de todos os que o habitam, imigrantes ou não, assim como das instituições aí sedeadas, mas se não existir uma ligação forte ou afinidade cultural com esse território existem fortes probabilidades de que ele se descaracterize ou se degrade. Poderia invocar vários exemplos de países europeus com uma história de imigração mais antiga (como a França, a Holanda ou a Suécia) e que se debatem com várias destas questões e com níveis de descontentamento social que têm favorecido a ascenção de partidos políticos populistas e xenófobos. Para concluir, transcrevo o excerto final do artigo de Manuel Carvalho que citei acima: "[há que] 
discutir sem medo a imigração tal como ela está a acontecer e as suas consequências. Ter medo do debate aberto é dar trunfos à extrema-direita."

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