terça-feira, 26 de março de 2019

Uma civilização ecológica para um planeta vivo

[Post publicado no G+ em 24 Nov 2018] 
Talvez custe a acreditar, mas a expressão ‘civilização ecológica’ foi usada pelo actual presidente da China, Xi Jinping, num seu discurso perante o congresso nacional do Partido Comunista Chinês em Outubro de 2017, para descrever a harmonia que será necessário manter entre seres humanos e natureza para garantir o bem-estar das gerações futuras na China e o progresso da Humanidade. Segundo Jeremy Lent, escritor de origem britânica e autor do livro ‘The patterning instinct, poder-se-ia considerar este tipo de afirmações como mera retórica política, mas Lent realça a diferença abismal entre o conteúdo daquele discurso em que Jinping descreve uma série de medidas que incluem estímulos à economia circular e de baixo-carbono, à conservação da natureza e defesa da floresta, e, simultaneamente, desincentivos ao consumo excessivo e às actividades poluentes, e o do discurso inaugural de Donald Trump em que este apelou ao nacionalismo destrutivo e às políticas anti-ecológicas e xenófobas da sua ‘America First’:
O governo chinês assumiu aliás há já alguns anos perante a comunidade internacional a intenção de se empenhar nos desafios da protecção ambiental e do desenvolvimento sustentável, tendo então adoptado o desígnio de promover uma ‘civilização ecológica’, como se pode ler nesta publicação.
Lent refere no seu artigo os diversos projectos ambiciosos de transição energética e de economia circular que estão a ser implementados pelo governo chinês, mas invoca também as visões de harmonia e de interdependência com o mundo e o universo da cultura e da filosofia tradicionais chinesas, que contrastam com as visões europeias de separação e de domínio da natureza. No entanto, aquele autor concede que a China está ainda muito longe de atingir a sustentabilidade ambiental e social e que há quem critique a agressividade económica chinesa, com a agravante das questões de défice de democracia e de autoritarismo que caracterizam o regime político chinês.

Lent cita um outro autor norte-americano, David Korten, que defende também a necessidade de transitar para uma civilização ecológica (EcoCiv) e que é um crítico contundente das políticas da administração norte-americana e um observador cauteloso do regime chinês.

Korten caracteriza o sistema económico mundial, dominado pela globalização liderada pelas corporações e pela finança transnacionais, como a Economia Suicida (‘Suicide Economy’) que está a produzir desequilíbrios ambientais e sociais sem precedentes por todo o mundo. Em oposição ao sistema actual baseado na economia de mercado neoliberal que equaciona a riqueza ao dinheiro, reduz os bens naturais ao seu valor de mercado e assume que cada pessoa serve melhor a sociedade ao maximizar o seu próprio retorno financeiro sem respeitar o outro, Korten propõe uma economia que cuide do planeta vivo (‘Living Earth Economy’). Essa economia ecológica (redundância evitável se a palavra economia assumisse a sua a acepção original) deverá obedecer a três condições essenciais: manutenção de um equilíbrio saudável e harmonia entre os seres humanos e os sistemas regenerativos indispensáveis à manutenção e renovação do ecossistema planetário, garantia para todas as pessoas do essencial de bem-estar e felicidade humanos, e promoção de um sistema planetário de economias comunitárias biorregionais e auto-organizadas que cumpram as duas condições anteriores. A transição do actual sistema insustentável para uma economia de base ecológica só será possível através de transformações culturais e institucionais sistémicas que permitam: (i) mudar o objectivo da economia de aumentar o consumo e os activos financeiros para assegurar o bem-estar e felicidade de todas as pessoas presentes e vindouras; (ii) transferir o poder institucional das corporações globais para os povos de nações autónomas e autogovernadas que se auto-organizam para suprir as suas necessidades dentro dos limites de sua própria base de recursos auto-renováveis; (iii) mudar os sistemas de produção-consumo de fluxos globais, lineares, de uso único e descarte de recursos para fluxos locais circulares que continuamente renovam e reutilizam materiais, solos, água, nutrientes e energia; e (iv) mudar a propriedade de activos produtivos de corporações e financiadores globais para os povos que vivem nas comunidades em que os activos estão localizados e que se sentem responsáveis pelo bem-estar das gerações futuras. Korten admite que esta transição só será possível se houver cooperação internacional através de formas de governança globais que permitam caminhar no sentido da almejada civilização ecológica.
Num artigo mais recente, Korten volta a apelar à transição ecológica para impedir uma eventual extinção da Humanidade. Nele o autor escreve: “The transition will test the limits of human creativity, social intelligence, and commitment to collaborate in the face of relentless establishment opposition. (…) To destroy life only so that the financial assets of billionaires can grow is a monumental act of collective stupidity. (…) Forward-looking communities around the world are engaged in advancing these transformations on both micro and macro scales. Their activities must become the norm everywhere, with all peoples and governments freely sharing the lessons of their efforts to develop proven, deeply democratic approaches to local self-reliance and liberation from corporate rule. The well-being of people and planet will rise, as corporate profits fall.

Um outro pensador e escritor norte-americano com uma visão muito alinhada com as de Lent e de Korten é Charles Eisenstein (autor de ‘Climate: a new story), que defende igualmente um modelo regenerativo para a governança local e global (‘Living Planet view’) num artigo recente. Excertos: “If we continue degrading and destroying [Earth’s ecosystems], then even if we cut emissions to zero overnight, Earth would still die a death of a million cuts. (…) Our stories are powerful. If we see the world as dead, we will kill it. And if we see the world as alive, we will learn how to serve its healing. (…) The Living Planet view, by which I mean the conscious ensouled planet view, acknowledges an intimate link between human and ecological affairs. (…) A society that exploits the most vulnerable people will necessarily exploit the most vulnerable places too. A society devoted to healing on one level inevitably will come to serve healing on every level. (…) This is not about survival; that is why the fear narrative, the cost-benefit narrative, the existential threat narrative does not serve the cause of ecological healing. Can we replace it with the love narrative? With the beauty narrative? The empathy narrative? Can we connect with our love for this hurting living planet, and look at our hands and minds, our technology and our arts, and ask, How shall we best participate in the healing and the dreaming of Earth?

No seu livro mais recente, que desenvolve as ideias dos seus livros anteriores, Eisenstein defende que a crise ambiental é muito mais profunda do que apenas a mudança climática e que todos os outros problemas igualmente graves, como a extinção de biodiversidade, a destruição de ecossistemas, a desflorestação ou a contaminação e empobrecimento dos solos, têm como causa primária um modelo civilizacional baseado no reducionismo, no materialismo e na separação, que criou, por sua vez, uma sociedade industrial e tecnológica e um modelo económico globalizados que são intrinsecamente insustentáveis e destrutivos.
O autor conversou recentemente com o humorista e activista britânico Russell Brand sobre este e outros assuntos relacionados: vídeo aqui. 'Podcast' completo nesta ligação.

A gravidade do problema da extinção de biodiversidade foi recentemente reforçada com a publicação do último relatório da WWF – ‘Living Planet Report 2018’. As suas conclusões são dramáticas: nos últimos 40 anos as populações de vertebrados diminuíram em 60% a nível mundial, com as maiores perdas na América do Sul e Central (89%) e nos habitats de água doce (83%). Ver também as seguintes notícias:
https://expresso.sapo.pt/sociedade/2018-10-30-Desde-1970-mais-de-metade-dos-animais-desapareceram-da-Terra.-E-os-culpados-somos-nos#gs.O9_SkQs
https://www.theguardian.com/environment/2018/oct/30/humanity-wiped-out-animals-since-1970-major-report-finds

A causa imediata é evidente: as actividades humanas, com destaque para a desflorestação e a sobrepesca. E a causa profunda é também clara: o modo de vida de vastas populações humanas que levou ao consumo excessivo de recursos, à expansão agro-pecuária e à destruição de ecossistemas. Lamentavelmente, o relatório não clarifica que esta situação é uma consequência de um modelo civilizacional predominantemente ocidental e neocolonial, que não coincide com as práticas de diversos povos indígenas cujas cosmovisões promovem uma forte ligação e convivência saudável com a natureza. Como afirmou o director da WWF, Marco Lambertini: “Não podemos continuar a ignorar o impacto dos actuais modelos de produção insustentáveis e dos estilos de vida esbanjadores”. E acrescentou que será necessária “uma revolução cultural que valorize realmente a natureza”. O relatório propõe um ambicioso e urgente ‘new deal’ para a natureza que terá de ser assumido internacionalmente. Como referiu uma outra responsável da WWF, Tanya Steele: “Nós somos a primeira geração a saber que estamos a destruir o nosso planeta e a última que pode fazer algo para impedi-lo.” Resta saber se estamos de facto dispostos a fazê-lo e como o poderemos fazer de forma justa e democrática.

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