(Este post resultou
de uma investigação-criação para o festival
Pedras’22 do c.e.m-centro em movimento)
Todo o conhecimento cósmico
é um ponto de vida (e não apenas um ponto
de vista), toda a verdade é o mundo no
espaço de mediação do vivente. Nunca se poderá conhecer o mundo enquanto tal
sem passar pela mediação de um vivente. Emanuele Coccia (A vida das plantas, 2018)
Vegetar é crescer em
contiguidade com o mundo, coabitar lugares, aderir e fazer espaços, engajar-nos
com aquilo que nos circunda – ou, antes, nos atravessa. Criar raiz e lançar
sementes. In: Vozes Vegetais, J. Cabral de Oliveira et al. (2021)
De há uns anos a esta parte tenho reflectido sobre o papel
que a nossa relação com o mundo-mais-do-que-humano (a que chamamos muitas vezes
‘natureza’) desempenha nas visões que construímos sobre o mundo que habitamos e
no modo como gerimos as sociedades em que vivemos (ver p.ex. aqui
ou aqui).
Muitos outros se têm debruçado sobre esta temática, desde filósofos a
naturalistas e activistas, e já invoquei por diversas vezes as suas vozes ou os
seus escritos (ver p.ex. aqui
ou aqui).
Tenho levado algumas dessas reflexões para a minha colaboração com o
c.e.m-centro em movimento, em particular para as ‘conversas transpensar’ que
decorreram às 2ªs-feiras à tarde entre Outubro de 2021 e Junho de 2022. Em
paralelo, iniciei no final de Abril uma série de incursões no Parque Florestal de Monsanto com a intenção de desenvolver uma proposta para o festival Pedras’22.
Aquele parque florestal é um excelente exemplo de simpoiese (tema de post anterior) na medida em que o
que nos é dado ali a apreciar e vivenciar no presente é o resultado de um processo
de cocriação entre humanos e e não-humanos: em particular, as plantas, mas também alguns animais e ainda muitos fungos e bactérias. De facto, a maioria das árvores de grande
porte que ali encontramos resultaram de um processo de reflorestação que se
iniciou no final da década de 1930 (ver p.ex. aqui e aqui).
O processo prolongou-se até ao final dos anos 1940 e partir daí seguiram-se
décadas de gestão florestal activa com novas plantações (essencialmente
espécies autóctones), mas também de renovação natural, acentuando as características
de bosque mediterrânico, que conferem ao parque um carácter de floresta
silvestre.
Nas minhas deambulações na zona sul de Monsanto, cruzei-me
com uma azinheira na orla de uma zona florestada que me cativou pela forma acolhedora
da sua copa, fazendo lembrar um caramanchão (passei aliás a designá-la por “
azinheira-caramanchão”).
Esse encontro activou em mim algumas ligações mentais-sensoriais que remeteram
para as estruturas (‘
bowers’) construídas
pelas chamadas ‘aves-jardineiro’ - tradução possível para a palavra inglesa ‘
bowerbird’, que designa um grupo de aves
da Papuásia e Austrália (ver p.ex.
aqui
ou
aqui).
Tinha-me cruzado com aquelas estruturas ao investigar para um
post que escrevi sobre a hipótese do
músico e filósofo norteamericano David Rothenberg em relação à criatividade dos
animais não-humanos - que ele resumiu na expressão “
survival of the beautiful”. Desta vez, não me interessou tanto a discussão
em volta da validade dos atributos de artistas ou arquitectos que são
conferidos àquelas aves, mas mais à sua actividade de recolectoras ou colecionadoras
de objectos que encontram nas florestas onde habitam. Durante várias semanas
visitei regularmente aquela azinheira singular e permaneci em estado de
escuta
demorada sob a sua copa. Em cada visita deixei-me levar pelo impulso de
recolher e trazer para ali diferentes objectos que fui encontrando nas
imediações, alguns deles assumidamente inspirados nos que são escolhidos pelas
aves-jardineiro. As acções de selecionar e compor os diferentes objectos que
fui recolhendo – flores, líquenes, pinhas, ramos, pedras, cascas de pinheiro,
hastes de gramíneas, sementes - levaram-me, por um lado, a reflectir sobre as suas qualidades, que motivavam as minhas próprias preferências e, por outro, a
experimentar o puro gozo desse mesmo exercício. Foram a alegria e o deleite
desses gestos que me fizeram ali voltar e demorar, alimentando o desejo de cada
(re)encontro.
Durante aquele processo realizei diversas caminhadas nas
imediações da azinheira-caramanchão que me deram a oportunidade de apreciar as diferentes
qualidades das diversas zonas em seu redor e as suas subtis nuances. Descobri
por exemplo que já existiam outros vestígios de intervenção humana (criativa)
naquele espaço (ver fotos abaixo), acrescentando-lhe uma outra camada de
simpoiese sob a forma de estruturas, a que podemos atribuir a designação de ‘land art’.
No entanto, o principal foco da minha atenção e curiosidade durante
as caminhadas dirigiu-se às plantas, apreciando a diversidade e distribuição de árvores e arbustos, bem como das herbáceas e como estas vão
variando e se vão sucedendo ao longo das semanas e meses, na transição da
Primavera para o Verão. Num grande prado em declive suave junto ao Pólo Universitário
da Ajuda, pude assistir à fascinante e prodigiosa sucessão das herbáceas, com as
suas flores mais ou menos vistosas - os diversos tipos de malmequeres, as
malvas, as soagens, as tanchagens, as chicórias, os verbascos, ou os vários
cardos. O corrupio de variados insectos – em particular, abelhas e escaravelhos
de diferentes tipos e tamanhos, atraídos pelas flores - era igualmente notável.
O outro grupo de herbáceas muito abundante e diverso naquele prado, ainda que
mais discreto, é o das gramíneas. A diversidade de formas das suas sementes,
que convidam a um olhar apurado e demorado, assim como a flexibilidade das suas
hastes, ondulando ao sabor do vento, são especialmente deslumbrantes (ver este
post que escrevi para o blogue do
Pedras’22). Igualmente deslumbrante foi a constatação da criatividade que se
expressa na diversidade de soluções (flores e sementes) para as mesmas funções
de reprodução e dispersão. Várias vezes me deixei ficar - o corpo suspenso em
momentos esquecidos de pura contemplação e êxtase - perante tamanha preciosidade
e tão profunda sabedoria.
Recordo aqui o fenómeno de ‘cegueira botânica’, a que aludi
num post que escrevi em 2021. A
expressão traduz uma incapacidade ou insensibilidade de notar ou reconhecer a
diversidade do mundo vegetal à nossa volta - extensível a outros componentes do
mundo-mais-do-que-humano, como os líquenes (ver também post sobre líquenes e musgos que escrevi
para o blogue do Pedras’22). As minhas demoras em Monsanto impeliram-me a
reflectir novamente sobre o que impedirá muitas pessoas de ver e de se
deslumbrar com a variedade de cores, formas, texturas e movimentos, que as
diferentes plantas exibem e como esses mesmos atributos vão variando ao longo
de um dia, ou de vários dias, semanas ou meses. Desconfio que tenha a ver com uma
disponibilidade e uma demora que permitem que se vá estabelecendo uma
intimidade entre cada um/a de nós e esses outros seres, transformando
progressivamente uma eventual indiferença ou estranheza em curiosidade e
deslumbramento crescentes. Trata-se portanto de aprofundar uma relação, um estar-com
que não precisa de para-quês ou de comos, que se contenta com a magia dessa
co-presença e que intui as diversas agências dos outros seres viventes no
co-fazer do mundo. Invoco aqui o livro ‘A vida das plantas’ do filósofo
Emanuele Coccia (citado no início deste post)
onde o seu autor discorre sobre o desprezo a que as plantas foram votadas ao
longo da história da filosofia, defendendo a necessidade de resgatar uma filosofia
da natureza cosmológica e argumentando demoradamente sobre a relevância das
plantas como ‘agentes culturais’, no sentido de criadoras-construtoras do
mundo.
Sabemos que o que vemos do mundo é apenas uma fracção de uma
realidade complexa e com múltiplas camadas, que é filtrada pelos nossos sentidos,
mas também pelas nossas práticas desses sentidos, que são, por sua vez, influenciadas pelo nosso contexto cultural e social, pela nossa história de
vida e visão do mundo. Mas por mais que a nossa percepção da realidade externa
seja limitada ou condicionada isso não nos desresponsabiliza como
agentes de
co-criação de mundo. Como sugere a citação do livro ‘
Vozes Vegetais’ no início deste
post, podemos sempre participar num
com-viver que aprofunda e cuida do entre-corpos, recusando e resistindo às
histórias de separação e de excepcionalismo que, na sua miopia ou cegueira,
semeiam destruição e injustiça. Precisamos por isso de resgatar os espaços e o
tempo que nos restituam a capacidade de ver, de sentir, de empatizar – numa
palavra, de nos reencantarmos - com o mundo-mais-do-que-humano, do qual somos
parte integrante. E que melhor exemplo de
mediação nesse processo que o da
azinheira-caramanchão - ou outra planta (ou ser não-humano) que elejamos para ser
noss@ companheir@?
Nota 1: o texto deste post
teve por base os seguintes posts
que escrevi para o blogue do Pedras’22: https://pedras22.wordpress.com/2022/06/03/demora-sob-a-azinheira-caramanchao-1/
; https://pedras22.wordpress.com/2022/06/07/demora-sob-a-azinheira-caramanchao-2/;
https://pedras22.wordpress.com/2022/06/17/demora-sob-a-azinheira-caramanchao-4-cegueira-botanica/
Nota 2: o processo de investigação-criação culminou com um
evento para o festival Pedras’22 (Tarde no campo, 28 Jun), preparado em colaboração com a historiadora Teresa
Castro e que incluiu um piquenique no pinhal, uma caminhada e uma conversa à
sombra da azinheira-caramanchão – ver este
post do blogue do festival.
Fotos: Álvaro e Marcin (ver fotos adicionais disponíveis nos posts citados na Nota 1)
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