terça-feira, 7 de abril de 2020

Voltar à normalidade!?

Esta é uma das frases mais repetidas nestes tempos de pandemia e de um mundo em suspenso. É compreensível - ninguém quer continuar a viver num confinamento ou num 'distanciamento social' forçados, e é natural que as pessoas queiram retomar as suas actividades pessoais, laborais e sociais. Mas será que queremos de facto regressar à 'normalidade'? Queremos apenas livrar-nos do vírus e voltar a ligar as máquinas da 'economia' que nos dizem ser o motor do nosso bem-estar? Mas de que economia é que estamos a falar? Aquela que se tornou global e é dominada pelas corporações multinacionais e pela finança desregulada, tendo gerado uma colossal desigualdade social e uma catastrófica destruição ambiental? Ou uma outra que nos garantisse os bens essenciais e relacionais, e gerisse os bens comuns de forma equilibrada, justa e sustentável? (ver p.ex. aqui)
Neste tempo de incertezas e de sofrimento para muitos, é importante encontrar algum tempo e tranquilidade para pensar e clarificar ideias. É esse o meu propósito com os escritos recentes neste blog, assim como o de muitas outras pessoas e colectivos, que, por esse mundo fora, vão partilhando reflexões, propostas, experiências ou práticas.


Destaco um curto texto anónimo - 'O monólogo do vírus' - publicado num site editorial (original aqui: #234 da revista 'lundi matin') que dedica uma secção (Pandemia Crítica) à reflexão sobre a situação actual, disponibilizando textos de diversos autores em português (originais e traduções). Escrito na primeira pessoa, o texto faz uma análise lúcida do paradigma socioeconómico, apelando à sua renúncia e à adopção de uma ética baseada na suficiência, na atenção e no cuidado.
Excertos do texto:"Que pena que apenas reconheçam no universo aquilo que se vos assemelha. Mas, acima de tudo, parem de dizer que sou eu quem vos está a matar. Não estão a morrer por causa do que estou a fazer aos vossos tecidos, mas porque deixaram de cuidar dos vossos semelhantes. (...) Apenas os sistemas são ’vulneráveis’. O resto vive e morre. Só há vulnerabilidade para aquilo que aspira o controle, para a sua própria extensão e perfeição. (...) São livres de não acreditar em mim, mas eu vim desligar a máquina cujo travão de emergência vocês não encontram. Eu vim suspender a operação da qual vocês são reféns. Eu vim expor a aberração da ’normalidade’. (...) Sem mim, por quanto mais tempo fariam passar como necessárias todas estas coisas aparentemente inquestionáveis, cuja suspensão é imediatamente decretada? A globalização, as competições, o tráfego aéreo, as restrições orçamentais, as eleições, o espectáculo das competições desportivas, a Disneylândia, os ginásios, a maioria das lojas, o parlamento, o encarceramento escolar, as aglomerações de massas, a maior parte dos trabalhos de escritório, toda essa sociabilidade inebriada que é apenas o contrário da angustiada solidão das mónadas metropolitanas. (...) Agradeçam-me a mim o teste da verdade que vão passar nas próximas semanas: vão finalmente viver a vossa própria vida, sem os milhares de subterfúgios que, mal ou bem, sustentam o insustentável. (...) Mas este espaço que se abre diante de vós, graças a mim, não é um espaço delimitado, é uma imensa abertura. Eu vim para vos perturbar. Nada vos garante que o não-mundo de antes vai voltar. (...)  Ou vocês aproveitam o tempo que vos estou a dar agora para imaginar o mundo do depois, a partir das lições do colapso a que estamos a assistir, ou ele será completamente radicalizado. O desastre pára quando pára a economia. A economia é o desastre. Esta era a tese antes do mês passado. Agora é um facto. (...) É uma civilização, e não vocês, que eu venho enterrar. Aqueles que querem viver terão de criar novos hábitos para si próprios. (...) Cuidem dos vossos amigos e dos vossos amores. Repensem com eles, soberanamente, uma forma de vida justa. Criem aglomerados de vida boa, expandam-nos e eu não terei poder sobre vocês."

No mesmo site encontrei um outro texto de Bruno Latour ('Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise') que projecta os cenários pós-pandemia para pôr em causa a globalização económica produtivista. Latour sugere que os cidadãos devem aproveitar a oportunidade da suspensão provisória do sistema económico global para pensar que componentes desse sistema querem ver retomados e quais querem interromper, propondo um exercício baesado numa sequência de seis perguntas.
Excertos do texto: "(...) Se tudo pára, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo contrário, acelerado. Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de ano. À exigência do bom senso: 'Retomemos a produção o mais rápido possível', temos de responder com um grito: 'De modo nenhum!'. A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes. (...) O que o vírus consegue com a humilde circulação boca a boca de perdigotos – a suspensão da economia mundial – nós começamos a poder imaginar que os nossos pequenos e insignificantes gestos, acoplados uns aos outros, conseguirão: suspender o sistema produtivo. Ao nos colocarmos esse tipo de questão, cada um de nós começa a imaginar 'gestos barreira', mas não apenas contra o vírus: contra cada elemento de um modo de produção que não queremos que seja retomado. (...) Não se trata mais de retomar ou de transformar um sistema de produção, mas de abandonar a produção como o único princípio de relação com o mundo."


O mesmo tema é abordado por Vitor Belanciano num novo artigo de opinião no jornal Público: 'Não queremos voltar à normalidade'. O cronista defende a necessidade de questionar uma 'normalidade' que levou ao desinvestimento no serviço público de saúde, à desvalorização do trabalho, à sobrevalorização do sector financeiro, à aposta num leque limitado de actividades económicas como o turismo, à dependência do crescimento económico permanente e à fragilização da democracia. 
Excerto: "Voltar à normalidade. É a frase que todos repetem. Mas a que normalidade? A dos pequenos rituais quotidianos ou a que arruinou sistemas de saúde, de habitação, de segurança social e o ambiente? Vivemos tempos simultâneos. Por um lado, a resposta imediata e a tragédia, com famílias enlutadas que nem conseguem enterrar os mortos, e um número incalculável de pessoas que se confronta com o desemprego. E por outro, reflectir o futuro imediato, para que não voltemos ao que nos trouxe aqui e conjecturar outros rumos."
Para além das reflexões publicadas na secção 'Pandemia Crítica' da 'n-1 edições' que citei acima, recomendo ainda uma colectânea de textos de diversos filósofos contemporâneos, publicados entre 26 de Fevereiro e 28 de Março, coligida pela editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio) e denominada 'Sopa de Wuhan (pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemias)', onde se reunem nomes como Giorgio Agamben, Slavoj ŽiŽek, Jean Luc Nancy, Judith Butler, Alain Badiou, David Harvey ou Byung-Chul Han.

2 comentários:

  1. Álvaro, muito grato pelo trabalho de lúcida escrita, de compilação, de investigação sempre ao sentido da vida, do carinho, de protecção e do cuidar.
    A sopa está muito muito boa, diferentes temperos actuais e de encontro a um necessidade de abertura eminente.
    Muitobrigado. Um Abraço

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  2. Álvaro, obrigada pelo texto, lúcido e cheio de links que desafiam a buscar mais informação. É muito importante pensarmos em formas de bloquear o regresso à anormalidade que tínhamos. Abraço. GR

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