terça-feira, 12 de maio de 2020

Estado de calamidade

É difícil fugir ao tema que nos assombra há várias semanas e que ameaça estar para durar. Mas há razões de sobra para eu voltar a trazê-lo aqui - mesmo que não sejam as mais evidentes. Desta vez invoco-o devido a duas campanhas publicitárias recentes na região de Lisboa.
A primeira foi levada a cabo pela TVI para promover um dos seus programas emblemáticos, o ignóbil 'Big Brother', que aquele canal televiso decidiu retomar no final de Abril, com o estado de emergência ainda em vigor devido à pandemia da Covid-19. Nem sequer me vou referir à natureza escabrosa e imbecil do programa, mas apenas a um outdoor que surgiu mais recentemente para o publicitar, contendo a seguinte frase: "A TVI decreta estado de entretenimento"! Parece que para as mentes perversas da gente do departamento de marketing não há limites para a desfaçatez que consiste na apropriação de uma situação de restrição das liberdades individuais para promover ou vender seja o que for. Neste caso, com o requinte de malvadez de tratar-se de publicitar um programa que vai buscar o seu nome à novela orwelliana que denunciava exactamente as formas mais brutais de controlo social! Já não há sombra de pudor, nem deontologia, que nos valha - e somos compelidos a aceitar (e consumir) tudo o que nos atiram para cima. Talvez seja até pura ignorância - muita gente nem saberá quem foi o Orwell, quanto mais o Big Brother!...

A outra campanha foi lançada também no final de Abril pelo movimento 'Mais Cascais', afecto ao actual executivo camarário deste município, e que também envolveu outdoors com o lema dessa mesma campanha: "Não tenha medo de ter medo". A controvérsia não se fez esperar, como o comprovam os comentários nos posts da página do movimento no Facebook, e já mereceu algumas críticas, embora apenas a nível local - ver p.ex. aqui ou aqui. Já me referi ao sentimento do medo relacionado com a actual pandemia num post anterior. Deixo aqui apenas a ligação para uma já famosa intervenção pública do escritor Mia Couto, numa conferência sobre segurança no Estoril há quase dez anos, intitulada 'Murar o medo', onde afirma que "há quem tenha medo que o medo não acabe", e que continua extremamente actual, quando governos de todo o mundo estão a usar o medo - desta vez de um vírus - para exercer um poder totalitário sobre os seus cidadãos. Encontramo-nos, sem dúvida, em pleno estado de calamidade.

1 comentário:

  1. mais sobre este tema do MEDO (uma obra bem actual, outra com já uma dúzia de anos, portanto longe de covids, no entanto desmascarando, na mesma, o que está a passar):
    Ulrich Beck : "Risk Society"
    Frank Furedi: "How fear works: culture of fear in the 21st century"
    Lars Svendsen: "A Philosophy of Fear"

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