quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Questionar a hegemonia do conhecimento científico

A ciência, diz-se agora, é a religião do nosso tempo. Enquanto dantes esperávamos que os sacerdotes nos elucidassem sobre a natureza do cosmos e da existência humana, agora viramo-nos para homens, e por vezes mulheres, de batas brancas.” John Dupré (filósofo da ciência)

Seria possível descrever tudo cientificamente, mas não faria sentido. Seria uma descrição sem significado - como tentar descrever uma sinfonia de Beethoven como variações de pressão sonora.” Albert Einstein

Nota prévia: este post foi escrito na sequência de uma palestra que dei na Biblioteca de Alcântara a 22 de Novembro, no âmbito do ciclo Horizontes da Ciência; é possível aceder ao vídeo da palestra nesta ligação.

O desenvolvimento do ramo do conhecimento humano sobre o mundo que ficou conhecido como ‘Ciência’* teve o seu momento fundador na Europa entre os séculos XVI e XVIII num processo que foi apelidado de ‘Revolução Científica’ e que culminou no Iluminismo europeu. Esse processo coincidiu, por sua vez, com o começo do período designado por Modernidade, que se estende até aos dias de hoje. Algumas das personalidades associadas à génese da chamada 'ciência moderna' incluem o astrónomo florentino Galileo Galilei, o estadista e filósofo inglês Francis Bacon, o filósofo francês René Descartes e o polímata inglês Isaac Newton. A Revolução Científica traduziu-se não só numa amplificação da capacidade de entendimento do mundo natural e no abandono de certos dogmas religiosos, mas também na construção de uma visão sobre o mundo com profundos reflexos nas dimensões cultural, social e política das sociedades europeias. É importante realçar que esse momento de viragem da civilização ocidental e da sua (nossa) visão de mundo aconteceu em paralelo com a expansão colonial europeia e com a chamada Revolução Industrial. Essa visão de mundo, que se tornou então dominante e para a qual também contribuiu o Cristianismo, pode ser descrita através de termos (conceitos) como racionalismo, materialismo, cartesianismo, mecanicismo, reducionismo (estes cinco termos estão fortemente correlacionados e são por vezes usados indistintamente), antropocentrismo (ou excepcionalismo humano) e utilitarismo (aflorei estes dois conceitos num post anterior ). Estes desenvolvimentos culminaram com o positivismo do século XIX e mantêm-se ainda hoje no chamado cientismo (ver adiante). Aqueles aspectos da visão de mundo dominante, aliados à expansão do modelo socioeconómico capitalista/produtivista durante o século XX, têm-se revelado problemáticas por estarem a conduzir a humanidade a um conjunto de crises (ambiental, social, económica, cultural), que representam riscos existenciais dificilmente superáveis (como tenho defendido em vários escritos neste blogue). O papel da Revolução Científica e das posteriores crises internas da Ciência na evolução da visão de mundo ocidental e na crise ambiental global foi analisado extensivamente por Miguel Almeida no seu livro de 2006 “Um planeta ameaçado – a ciência perante o colapso da biosfera”. Recomendo ainda o visionamento do filme ‘Mindwalk’ (1990) do realizador Bernt Capra, que questiona a visão ocidental do mundo baseada no mecanicismo cartesiano e à qual contrapõe a visão holística da teoria de sistemas complexos, e sobre o qual escrevi este post em 2012.


Não obstante e como referi num post anterior, o conhecimento científico tem desempenhado um papel central no desenvolvimento das sociedades humanas modernas e os avanços nos diferentes ramos da Ciência proporcionaram não só notáveis aumentos do bem-estar e da prosperidade em largas camadas da população, como também feitos tecnológicos extraordinários, e ainda uma quantidade inaudita de conhecimentos sobre os seres humanos, os outros seres vivos, o planeta e o universo. Os sucessos da Ciência como empreendimento humano e fonte de conhecimento, assim como as suas capacidades de previsão e de controlo, enaltecidos pelos positivistas, conferiram-lhe uma aura de objectividade, de veracidade e de infalibilidade que a colocaram numa posição de hegemonia relativamente a outras vias de conhecimento, como as humanidades (e em particular, a filosofia), as artes ou a teologia (ver p.ex. o livro de Miguel Almeida citado acima e o ensaio de Boaventura Sousa Santos citado abaixo). No entanto, vários têm sido os autores (historiadores, sociólogos, filósofos, etc.) que, desde meados do século XIX mas em particular a partir da primeira metade do século XX, vêm questionando esse papel hegemónico do conhecimento científico e o seu equacionamento ao Progresso, alertando para os perigos do seu poder desmedido e da húbris que lhe está muitas vezes associada – nessa lista incluem-se Max Weber, Herbert Marcuse, Martin Heidegger, Bertrand Russell, Hannah Arendt ou Lewis Mumford, entre outros. Muitos daqueles pensadores defenderam também que a prática científica apresenta diversos constrangimentos, vieses e limitações, e que o conhecimento adquirido por esta via revela apenas uma parte da realidade e que, por isso mesmo, conduz a uma visão parcial e redutora do mundo. Uma das questões fulcrais, que tinha sido colocada já no século XVIII pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau (citada aqui) e que foi retomada no Grande Debate Nobel de 1991 (citada no texto de Henry W. Kendall incluído nesta colectânea), é a de indagar se o conhecimento científico acumulado se traduziu em sabedoria e verdadeiro progresso, ou seja, se trouxe de facto melhorias significativas do bem-estar e da prosperidade da generalidade da humanidade, assim como para as futuras gerações. O sociólogo Boaventura Sousa Santos fez uma análise crítica do paradigma da ciência moderna e da sua hegemonia duradoura no seu ensaio de 1987 'Um discurso sobre as ciências'.


Após o desfecho da 2ª Guerra Mundial e com a progressiva constatação das implicações do conhecimento científico nas esferas social e política, aquelas reflexões estenderam-se aos próprios cientistas que foram expressando publicamente as suas preocupações com as questões da responsabilidade ética e social da Ciência e dos cientistas, bem como com a do seu envolvimento político. Entre as vozes mais audíveis, onde se incluem vários prémios Nobel, destacam-se as dos físicos Albert Einstein, Robert Oppenheimer, Joseph Rotblat e Henry W. Kendall, as dos químicos Linus Pauling e John Polanyi, ou as dos biólogos/bioquímicos Salvador Luria, Jacques Monod e Sydney Bremmer. É possível encontrar alguns dos seus escritos numa edição de autor da historiadora da ciência Palmira Fontes da Costa, que traduziu e compilou textos destes cientistas – ver aqui. As reflexões de Einstein podem ser lidas na colectânea ‘Como vejo a ciência, a religião e o mundo’ (2005).


Por seu lado, a hegemonia do conhecimento científico durante o século XX, amplificada por políticos e media, tem conduzido a uma subalternização ou desvalorização das outras áreas de conhecimento, não só na opinião pública e no discurso político, como mesmo dentro das universidades e instituições científicas. O extremar desta sobrevalorização da Ciência foi apelidado de Cientismo (ou cientifismo; “Scientism” em inglês), termo que foi introduzido com uma conotação negativa, mas que tem sido abraçado por vários cientistas e filósofos que lhe conferem uma acepção positiva – ver p.ex. aqui ou aqui. Esta posição tem sido adoptada também por cientistas e divulgadores de ciência que se auto-intitulam de cépticos (ver p.ex. aqui), muitos deles com um enfoque na denúncia das chamadas ‘pseudociências’. Outros têm focado as suas preocupações nos perigos da iliteracia científica e na descredibilização da Ciência e das instituições científicas na opinião pública. Essas preocupações são legítimas e relevantes, em particular quando se verifica que economistas e políticos não levam em conta o conhecimento científico disponível nas suas tomadas de decisão sobre assuntos de grande impacto social, como por exemplo na mitigação da crise ambiental (escrevi sobre isso aqui). No entanto, o cientismo pode converter-se facilmente em fundamentalismo e autoritarismo quando menospreza ou rejeita outras vias de conhecimento, e quando pretende ignorar os vieses culturais, sociais, económicos ou políticos da prática científica (ver p.ex. aqui).


Aquela atitude tem sido perfilhada em Portugal pelo físico Carlos Fiolhais e pelo comunicador de ciência David Marçal, nas suas diversas investidas mediáticas (jornais, rádios e TV), em particular após o lançamento do seu livro ‘A ciência e os seus inimigos’ (Gradiva, 2017). Leonor Nazaré escreveu então um incisivo artigo de opinião no jornal Público, onde critica a postura dogmática daqueles autores em relação à supremacia da Ciência como via de conhecimento. A forma clara e sucinta como apresenta a sua argumentação constitui a força principal do artigo, denunciando a visão simplista de Fiolhais e Marçal, que colocam no mesmo ‘saco’ da pseudo-ciência as medicinas alternativas, as críticas aos OGM, a homeopatia ou a astrologia. Escrevi anteriormente este post onde procurei desconstruir a atribuição do rótulo de anti-ciência ou de negacionismo aos que se opõem aos OGM. O texto de Leonor Nazaré terá sido muito provavelmente menosprezado pelos visados pois é escrito por uma académica das artes e humanidades - o que acontece também com muitas outras reflexões de filósofos e pensadores das ciências sociais e humanas que têm criticado a atitude fundamentalista do cientismo e a hegemonia da tecnociência.


O caso de Fiolhais e Marçal não é diferente de muitos outros que, no seu papel de evangelistas de uma Ciência que alega ter retirado a humanidade da ignorância, acabam por menosprezar ou vilipendiar outras formas de conhecimento, cuja validade e utilidade devem ser encaradas com sensatez e serenidade, escamoteando o facto de o conhecimento acarretar consigo uma enorme responsabilidade: a de ser transformado em sabedoria de vida e em bem-estar colectivo. Atendendo à gravidade e extensão da confluência de crises que estamos a viver, cujos sintomas são em boa parte consequência das conquistas tecnológicas alicerçadas nas ciências, é evidente que a húbris de muitos cientistas é claramente infundada e descabida. No post que anuncia o livro citado acima, Marçal afirma que “A ciência precisa da liberdade de pensamento que é marca das democracias”. Ora é essa mesma liberdade de pensamento que parece estar ausente da narrativa dos próprios autores, incapazes de um olhar crítico sobre a prática científica. Como escreveu Manuela Soares num comentário ao livro, os autores não se questionam “sobre a ciência vendida ao negócio, sobre a ciência que precisa de ser sustentada pelo lucro, sobre a ciência que não investiga onde não convém investigar, sobre a ciência que só investiga onde já há luz e que por isso só encontra o que quer encontrar”. Tudo isto torna dificilmente defensáveis as visões da Ciência como ‘neutra’, ‘independente’, ‘desinteressada’ e ‘despreocupada’. O professor e cientista português Jorge Calado enumera e analisa no seu livro “Os limites da Ciência” (2014) algumas das limitações, fragilidades e vieses da prática científica.


Um outro autor lusófono que tem uma postura crítica em relação à hegemonia do conhecimento científico e à húbris que lhe está muitas vezes associada é o moçambicano Mia Couto (escritor e biólogo), nomeadamente nos seus perspicazes e bem-humorados ensaios incluídos na colectânea Pensatempos (2005), dos quais transcrevo alguns excertos: “Generalizou-se a ideia de que estamos perto do fim da doença, de que estamos perto da eternidade. Esse anunciar do paraíso só pode ser alimentado pelo pecado da soberba. Nós podemos estar a ser convertidos nos sacerdotes de uma espécie de Igreja universal do Reino da Ciência.” (Os setes pecados de uma ciência pura) “Em nome da ciência se esqueceram outras sabedorias, outras aproximações. A ciência se foi convertendo em algo muito pouco científico, uma acomodada ‘certificação’ daquilo que se pensa ser ‘realidade’. Perdeu-se inquietação, arrojo, e, sobretudo, perdeu-se a disponibilidade para experimentar outras vias de conhecimento.” (Por um mundo escutador) “Há quem acredite que a ciência é um instrumento para governarmos o mundo. Mas eu prefiro ver no conhecimento científico um meio para alcançarmos não domínios mas harmonias. Criarmos linguagens de partilha com os outros, incluindo os seres que acreditamos não terem linguagem. (…) Conhecermos não para sermos donos. Mas para sermos mais companheiros das criaturas vivas e não vivas com quem partilhamos este universo.” (Uma palavra de conselho e um conselho sem palavras)


Finalmente, parece-me muito relevante a ligação que Leonor Nazaré estabeleceu entre o reducionismo tecnocientífico e as narrativas trans-humanistas, como o faz também o filósofo Rob Riemen no seu livro 'O regresso da princesa Europa' (2016), onde escreve a propósito da inevitabilidade do progresso tecnológico: “A civilização é precisamente a capacidade humana de dizer ‘não’ e, parece-me, também podemos dizer ‘não’ à clonagem e àquela horrenda máquina-humana sob a forma do homem singular [anunciado pelos trans-humanistas]. Ainda me parece incrível que os tecno-evangelistas se gabem de estar a dar à humanidade um género de ‘progresso’ eterno e no entanto, assim que as questões éticas surgem, caiam no mais completo determinismo e fatalismo." Aquela visão transpareceu também muito claramente na série documental “2077 - 10 segundos para futuro”, exibida em 2018 pela RTP – ver aqui –, sobre a qual escrevi uma análise crítica no nº5 da revista Flauta de Luz. Termino com um excerto desse meu texto: “Quando se põem em causa as narrativas dos utopistas da tecnociência é comum ouvirem-se acusações de fundamentalismo tecno-pessimista, catastrofista, eco-conservador ou neo-luddita, que ao impedir a liberdade e o progresso da ciência conduziria a um retrocesso civilizacional e à estagnação social. É também usual ouvir invocar que a mudança e o risco são os motores da evolução (…). Nada se pode interpor ao ímpeto imparável do progresso! Mas não se trata de defender uma posição castradora e limitadora da liberdade e curiosidade dos cientistas, nem tão pouco de pôr em causa as virtudes da ciência como forma de conhecimento e de deslumbramento. Trata-se, isso sim, de questionar a recusa obstinada, mas de potenciais consequências desastrosas para a civilização humana, em gerir as consequências éticas e sociais das criações da ciência e da tecnologia, procurando zelar não só pelo bem-estar de todos os membros da sociedade, presentes e vindouros, como também pela sustentabilidade dos diferentes ecossistemas dos quais dependemos. Essa responsabilidade deve ser assumida e transformada numa prática política democrática de gestão dos comuns baseada no cuidado e na prudência.”

* Nota: A palavra Ciência pode ser entendida como o corpo de conhecimento sobre o mundo resultante da prática científica, mas refere-se muitas vezes também ao conjunto de ferramentas utilizadas pelas diferentes áreas científicas para adquirir conhecimento, apelidado mais comummente de método científico. Aqui usá-la-ei no sentido de via de conhecimento, estando implícito que abrange um conjunto de áreas e de práticas científicas que deviam ser mais apropriadamente designadas pelo plural, ciências.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Respigos de Verão (2)

L'été, les glaneuses (1853) J.F. Millet
Esta é a segunda leva dos Respigos de Verão (estação que se prolongou até à data da publicação deste post!). Podem conferir a primeira aqui. Os temas são desta vez mais variados – especulação imobiliária, lucros dos bancos, turistificação e demonização do activismo ambiental –, tendo por base notícias e artigos que fui respigando nos últimos meses. Faço ainda um destaque a um ensaio sobre o território da Arrábida e a sua relação com o pensamento animista, numa reflexão sobre o ambiente e a sustentabilidade da vida.


O tema da habitação e do imobiliário, em particular na cidade de Lisboa, tem andado no radar dos media e da opinião pública há vários meses e culminou com diversas manifestações no final de Setembro. O aspecto que me interessa neste tema é a relação com ‘os mercados’ e a especulação imobiliária. Era evidente, pelo menos desde 2022 (com ‘o fim da pandemia’), que a bolha imobiliária estava a inchar a olhos vistos – tanto em Portugal como noutros países europeus – e havia quem apostasse que iria rebentar em breve – ver p.ex. aqui ou aqui. Quem procura casa para arrendar em Lisboa, quem já teve de sair da cidade por não conseguir pagar as rendas ou quem tem empréstimos e começa a fazer contas à vida com a subida constante dos juros, sentiu na pele os efeitos de um mercado especulativo em rédea solta (ver p.ex. aqui). O governo português, tarde e a más horas, quis remediar a situação com o pacote ‘Mais Habitação’. As críticas choveram de todos os lados, em particular dos partidos da oposição, e ‘os mercados’ (neste caso, os especuladores imobiliários), quais frágeis donzelas, ficaram nervosos – ver p.ex. aqui. Vale a pena destacar alguns trechos desta ‘notícia’ para se perceber os disparates que se escrevem e dizem: “Imobiliário está a cair há um ano e teme novo choque com o Mais Habitação (…) Os operadores do sector imobiliário foram rápidos a reagir à apresentação do Mais Habitação, logo em Fevereiro, com avisos sobre o abalo que a confiança dos investidores iria sofrer. [minha ‘tradução’: o ‘sector’ temia afinal a perda dos seus lucros chorudos] Hoje, garantem que esse impacto já se sente e que os investidores estão mesmo «mais nervosos e desconfiados».” No mesmo artigo, diagnostica-se o problema: “A diminuição do rendimento das famílias por via da inflação, o aumento dos juros, a subida dos custos de construção e o desequilíbrio entre oferta e procura já pesam sobre o mercado há vários meses; mas constata-se (com um tom de bizarra admiração) que: “enquanto o número de vendas está a cair de forma acentuada desde o ano passado, os preços não dão tréguas e continuam a aumentar sem sinais de que venham a interromper as subidas em breve, embora cresçam a um ritmo menos acelerado do que aquele que se verificou no passado recente.” Só faltou mencionar quem beneficia afinal com esta situação: os fundos imobiliários e investidores, os mediadores (imobiliárias) e, é claro, os bancos. A ameaça dos incumprimentos nos créditos à habitação voltou a pairar, mas as reacções e medidas tomadas são no mínimo desconexas: por um lado, o Banco de Portugal reduziu a taxa de stress aplicada aos empréstimos à habitação para facilitar o crédito (ver aqui) e os bancos dão incentivos (‘borlas’, segundo este artigo) para angariar novos empréstimos na compra de habitação; por outro lado, teme-se o aumento do endividamento e os incumprimentos (ver aqui) e, pelo sim, pelo não, os bancos resolveram quintuplicar(!) as suas reservas para cobrir imparidades e prevenir o risco de incumprimentos no pagamento dos créditos (ver aqui). Parece que a bolha é mesmo para estoirar - mais uma vez!... E não é só por cá, noutros países europeus, os sinais de alarme também soaram (ver p.ex. aqui) e as mensagens de que não há motivo para preocupação (p.ex. aqui) surgem ao mesmo tempo que alguns governos se preparam para intervir (ver p.ex. aqui). Em Lisboa, foi agora aprovada a Carta Municipal da Habitação, apesar das críticas do BE – ver aqui.


Não há dúvida de que os bancos são um dos beneficiários desta situação, com os seus lucros a aumentarem - num momento de crise inflacionária –, com umas ‘ajudinhas’ do Banco Central Europeu, que tem vindo a subir as taxas de juro de referência (alegadamente, para conter a inflação). E quem fez as contas foi o próprio Banco de Portugal – ver p.ex. aqui ou aqui. Segundo o primeiro artigo: “Lucros dos bancos em Portugal dispararam 50% no ano passado, para 2,97 mil milhões de euros. Foi o melhor resultado desde a crise financeira global de 2007, de acordo com os cálculos do Banco de Portugal. Este resultado foi alcançado graças ao aumento da margem financeira… (…) Em 2022, os resultados aceleraram devido à subida das taxas de juro do Banco Central Europeu (BCE), que possibilitou aos bancos aumentarem a margem financeira em 1,38 mil milhões de euros para 7,5 mil milhões, o valor mais elevado desde 2011.” Essa situação foi confirmada em Julho com a divulgação dos resultados dos diferentes bancos portugueses, que originou uma catadupa de notícias publicadas em dias consecutivos: ver aqui, aqui, aqui e aqui. A esquerda estrebuchou, denunciando, com razão, a imoralidade e a injustiça – ver aqui e aqui. Neste último artigo de opinião do dirigente do BE João Soeiro, o autor escreve: “Desde janeiro do ano passado, a prestação da casa já subiu mais de 70%. A banca, que recebeu dos contribuintes mais de 26 mil milhões de euros entre 2012 e 2020, já lucrou dois mil milhões a mais nos últimos meses. É escandaloso e imoral. (…) Num semestre, a banca já ganhou mais do que todas as receitas que teve há um ano. Ao mesmo tempo que mantém baixas remunerações nos depósitos, beneficia enormemente com a subida das taxas de juros nos créditos, à boleia das decisões do Banco Central Europeu. O disparo da Euribor atinge diretamente 1,4 milhões de famílias com empréstimos com taxa variável (mais de 90%).” No entanto, a reivindicação mais veemente do BE continua a ser uma subida dos salários e dos impostos aos ricos – pode parecer justo, mas a mudança estrutural necessária deveria ser muito mais profunda e arrojada (e, quanto a mim, não se deve limitar a “derrotar o capitalismo”). Por seu lado, os partidos do Centrão (PS e PSD), não se deixaram comover por aqueles números e nem se atrevem a ‘hostilizar’ os bancos. As críticas à política do BCE vieram também de sectores mais moderados, apelidando-a de ‘leviandade social’ – ver p.ex. aqui ou aqui. No primeiro artigo de opinião, João Rodrigues dos Santos escreve: “A receita [do BCE] para salvar a Zona Euro assenta na política monetária e na subida das taxas de juro. Com juros mais altos, os bancos elevam os seus lucros. Na prática, os cidadãos com créditos à habitação contraídos pagam mais por cada euro recebido por empréstimo. O dinheiro nos cofres da banca aumenta. (…) há muito tempo que o limite da política monetária contracionista foi ultrapassado. Num ano, as prestações mensais sobem centenas de euros. É um ataque cruel às famílias, que as despedaça.” Neste mesmo artigo, o autor estende a sua crítica a empresas de outros sectores, em particular as energéticas: “Há uma harmonia conjuntural à escala global que contribui para o período excecional que Bancos e energéticas estão a atravessar. O processo não é complexo. Compreende-se com relativa facilidade. Primeiro, a conduta disruptiva e errática de um proeminente decisor mundial alarma os mercados. Estes últimos dão-se bem com a agitação. Por isso, não enjeitam a boleia. Num segundo momento, o ambiente de ansiedade generalizada e de muita incerteza cria o enquadramento perfeito para práticas especulatórias de preços. (…) Tudo se conjuga de forma harmoniosa para que as empresas produtoras e distribuidoras de energia acumulem lucros estratosféricos. (…) Mesmo que a origem das atuais dificuldades estivesse relacionada com variáveis estritamente económicas, continuaria a ser sempre moralmente obrigatório estabelecer um limite para o sofrimento humano. E tudo isto a ocorrer num quadro de aumento muito significativo dos lucros da banca. Um dos pensamentos mais elementares em economia consiste em reconhecer que os recursos disponíveis são sempre os mesmos e que apenas vão mudando de mãos. Para alguns terem mais, outros terão de ter menos, necessariamente. Energéticas e bancos aumentam agora os seus lucros de forma desmedida. Ao invés, as famílias veem os seus parcos recursos trucidados.” A isto devia chamar-se oportunismo predatório!

Bartoon (Público, 30 Julho 2023)

Os lucros excessivos das grandes corporações multinacionais foram revelados num novo relatório da Oxfam e Action Aid, publicado em Julho, onde foram divulgados os lucros recorde em 2021 e 2022 de mais de 700 grandes empresas internacionais (energia, alimentação, financeiras e farmacêuticas) e que defende a aplicação duma taxa de imposto de 50 a 90% sobre lucros excessivos (‘windfall tax’). Numa notícia no site do BE pode ler-se: “Mais de um quinto destes lucros «caídos do céu» (windfall profits), cerca de 219 mil milhões de euros por ano, foi parar às contas das 45 empresas do setor energético que figuram na lista da Forbes das duas mil maiores empresas. O aumento dos lucros da energia fez aparecer 96 bilionários no setor, com uma fortuna conjunta de quase 400 mil milhões de euros, mais 46 mil milhões do que em abril do ano passado. No setor alimentar e de bebidas, calcula-se que 18 empresas tenham faturado um lucro excessivo de quase 13 mil milhões de euros por ano em 2021 e 2022, à boleia do aumento de mais de 14% dos preços dos bens alimentares no ano passado. No setor da distribuição e supermercados, as 42 maiores redes lucraram mais 25 mil milhões por ano do que o que seria devido. A indústria farmacêutica também aproveitou a onda, com as 28 empresas de topo a apresentarem lucros excessivos de mais de 43 mil milhões anuais. (…) Há poucas semanas, um estudo do FMI veio confirmar que os lucros das empresas foram responsáveis por pelo menos metade da inflação registada na União Europeia nos últimos dois anos. A mesma conclusão tinha sido tirada por economistas da Reserva Federal em relação aos EUA em 2021.” Ainda assim algumas empresas do sector energético/petrolífero lamentavam o facto dos lucros de 2023 não estarem a corresponder às suas expectativas, como foi o caso da Shell que não conseguiu lucrar tanto no 2º trimestre de 2023 quanto previa – apenas 4,5 mil milhões de euros, em vez de 5,2! – ver p.ex. aqui. Nesta notícia pode ler-se: “Depois dos resultados históricos registados em 2022, os lucros da Shell caíram 56% no segundo trimestre do ano, à boleia da redução dos preços do petróleo e do gás, obrigando a empresa a desacelerar seu programa de recompra de acções. (…) Os resultados do segundo trimestre comparam ao lucro trimestral recorde de 11,5 mil milhões de dólares (10,4 mil milhões de euros) no ano anterior e de 9,65 mil milhões (8,7 mil milhões de euros) no primeiro trimestre de 2023. (…) Estes resultados foram divulgados num momento em que, segundo a Reuters, milhões de famílias britânicas lutam para pagar as contas de energia e depois de o regulador Ofgem ter alertado as empresas para evitarem pagamentos excessivos aos seus accionistas.” Imoralidade? Injustiça? “Who cares”?...


Quanto ao tema da turistificação, referi-me aos impactos da crise climática na procura turística na 1ª parte deste post e tinha já reflectido amplamente sobre o turismo de massa e os seus impactos num post que escrevi em 2017. Desde então, o fenómeno tem-se intensificado, apesar do abrandamento que se observou durante os dois primeiros anos da pandemia – ver p.ex. os seguintes documentários curtos: Crowded Out: The Story of Overtourism (Responsible Travel, 2018) e Overtourism plagues Europe (ARTE, 2023). Muitas das notícias publicadas este Verão sobre a evolução recente do turismo em Portugal, anunciaram em tom optimista e eufórico os recordes nas receitas e nos números de turistas – ver p.ex. aqui, aqui ou aqui. No entanto, os efeitos nefastos da enchente turística são evidentes, não só nas duas grandes cidades (Lisboa e Porto), como também p.ex. nas ilhas da Madeira e Açores – ver aqui e aqui. Para além dos impactos ambientais, têm vindo a ser discutidos mais regularmente os impactos sociais e económicos negativos da ‘monocultura’ turística - como no artigo sobre a Madeira citado atrás ou neste outro que mostra como os imigrantes que trabalham no sector são triturados pela máquina que alimentam. Numa conversa com três economistas publicada no site da Renascença (aqui), foi questionado o papel do turismo como ‘motor da economia’ ou ‘bóia de salvação’. Transcrevo alguns excertos: “Cerca de 22,3 milhões de turistas (não-residentes) pisaram solo nacional no ano passado, número que contrasta com os 14 milhões de 2012. Em cerca de uma década, a contribuição do setor do turismo para o PIB nacional passou de pouco significativa – 3,4% em 2013 – para um elemento central: uma fatia de 12,2% do PIB em 2022. (...) Na opinião de Vera Gouveia Barros, economista e autora do livro ‘Turismo em Portugal’ (ed. FFMS), o turismo tem alguns desafios próprios: «horários de trabalho exigentes», «sazonalidade» e «instabilidade de vínculos laborais». O maior, em todo o caso, está nos salários. «O setor não está bem», frisa. Que é como quem diz: paga mal. (…) segundo a ‘Agenda Profissões do Turismo: 2023-2026’, apresentada pelo Governo em abril deste ano, a remuneração média nos setores do alojamento, restauração e similares é 34% inferior à remuneração média do total da economia. Em média, os trabalhadores do turismo ganham 938 euros brutos por mês e apenas 60% tem contrato permanente. (…) diz o economista Alexandre Abreu. «Neste momento, Portugal está com turismo a mais. Nomeadamente, face às práticas de regulação do setor, que permitem o tipo de efeitos nocivos que são conhecidos sobre o setor da habitação ou disponibilidade hídrica.» Para o economista, «o alastramento praticamente desregrado do Alojamento Local é um dos fatores que contribui para o aumento fortíssimo dos preços da habitação que praticamente duplicou na última década.» Nos últimos dez anos, os preços das casas aumentaram quase 75%, de acordo com o INE.” Ainda assim, há um tom de lamúria quando se noticia o ‘abrandamento do crescimento’ das receitas – ver p.ex. aqui: “Os dados do INE revelam ainda que, entre janeiro e julho deste ano, os proveitos totais ascendem a mais de 3,2 mil milhões de euros, superando o total de proveitos gerados em 2020 e 2021 em conjunto e quase dois terços dos proveitos registados em todo o ano de 2022. No entanto, desde fevereiro que os proveitos têm apresentado um abrandamento da taxa de crescimento homóloga, passando de 97,2% em janeiro deste ano para apenas 10,6% em julho. Esta desaceleração é acompanhada pela subida dos preços das estadias, que atingiram valores recorde.”

Bartoon (Público, 11 Setembro 2023)

Finalmente, regresso ao tema da crise ambiental e climática (abordado na 1ª parte deste post, bem como em vários outros anteriores – ver aqui) para destacar um tópico preocupante que tem dominado uma parte do debate público: as sucessivas (e crescentes) acusações de ecoterrorismo e de radicalismo de que têm sido alvo várias iniciativas activistas de diferentes movimentos ambientalistas europeus (e também em Portugal). Note-se que tinha já aflorado o assunto este ano no post dos Respigos de Março. Um artigo de fundo da Euronews e da Reuters faz um relato exaustivo das recentes invectivas, possivelmente coordenadas, das autoridades da Alemanha, França e Reino Unido, contra diversas organizações e colectivos ambientalistas que promoveram iniciativas de acção directa nesses países em 2022 e 2023. Transcrevo alguns excertos: “Os bloqueios de estradas nas principais autoestradas britânicas provocaram o caos no trânsito, os protestos em instalações petrolíferas na Alemanha interromperam o abastecimento e, em França, milhares de ativistas e a polícia entraram em confronto por causa da utilização da água, deixando dezenas de feridos. (…) Determinados a impedir que estes protestos se reforcem ainda mais, os estados alemães e as autoridades nacionais francesas estão a invocar poderes legais frequentemente utilizados contra o crime organizado e os grupos extremistas para colocar escutas telefónicas e seguir os ativistas, segundo a Reuters, com base em conversas com quatro procuradores, a polícia de ambos os países e mais de uma dúzia de manifestantes. (…) As autoridades estatais na Alemanha estão a utilizar a detenção preventiva para impedir as pessoas de protestar, incluindo a detenção de pelo menos uma pessoa durante 30 dias sem acusação. Esta medida é permitida pela lei da Baviera, segundo os procuradores consultados pela Reuters. Os legisladores aprovaram novas leis de vigilância e detenção em França, em julho, e no Reino Unido, em maio. A Grã-Bretanha está a tornar ilegal trancar-se ou colar-se a uma propriedade. França utilizou uma unidade antiterrorismo para interrogar alguns ativistas do clima, confirmou a polícia à Reuters. Os governos britânico e da Alemanha afirmaram que a resposta aos protestos tinha por objetivo evitar ações criminosas prejudiciais. O Governo francês não quis comentar, mas já afirmou anteriormente que o Estado deve ser capaz de combater aquilo a que chama «radicalização».” Um dos movimentos destacado nesta notícia é 'Les Soulèvements de la Terre' (SLT, a que me referi no meu post de Março citado acima), que o governo francês pretendeu ilegalizar com acusações de ecoterrorismo, após uma sucessão de tentativas de demonização daquele colectivo ambientalista por parte do poder político e dos media em França – ver aqui ou aqui. Felizmente, gerou-se um coro de indignação e um movimento de solidariedade para com o SLT entre intelectuais, artistas e activistas franceses, que culminou com um apelo internacional contra a sua dissolução lançado em Julho – ver aqui ou aqui. O SLT recorreu da sentença e o Conselho de Estado suspendeu a dissolução em Agosto – ver aqui. Por cá, não se ouviu falar desta situação nos media nacionais dominantes (nem mesmo no jornal Público, que tem dedicado tanta atenção à crise climática, como destaquei no post anterior), que aparentam ter-se tornado aliados dos poderes instalados que preferem o conformismo. 


Num artigo de opinião, António Guerreiro denunciou o recurso crescente à palavra ‘ecoterrorista’ para rotular não só os activistas climáticos mais radicais, como também os intelectuais que se solidarizam com as suas acções. Transcrevo alguns excertos: “O antropólogo francês Philippe Descola, um dos representantes mais prestigiados da sua disciplina, a nível internacional, professor emérito do Collège de France [esteve em Maio na Culturgest, onde proferiu uma conferência], foi recentemente incluído pelo governo francês numa lista de suspeitos e indesejáveis cúmplices dos «ecoterroristas», por ter apoiado publicamente o movimento chamado Les Soulèvements de la Terre, que já conta com mais de cem mil signatários. A figura do “ecoterrorista” está em fase adiantada de construção pelo poder político (que já conseguiu introduzi-la no léxico da nossa época), com a colaboração de sectores importantes da opinião publicada nos media. (…) As máquinas predatórias de energia, dos recursos naturais e do espaço público, ao serviço de prazeres gratuitos, essas, nem por sombras se considera que elas relevam de um sistema, de uma maneira terrorista de habitar o planeta. Negá-lo, reivindicar os prazeres mesquinhos e privados como se não houvesse uma catástrofe ecológica em curso, é ser cúmplice de um crime de massa. Mas para esses actos não se aplica a noção de terrorismo nem sequer de delinquência.” Guerreiro denuncia o carácter destrutivo das alegadas ‘soluções verdes’ para os problemas da transição energética e da falta de água, citando os exemplos nacionais dos projectos de mineração do lítio no Norte do país e da dessalinização da água do mar no Algarve: “A água dessalinizada (tal como a extracção do lítio em Trás-os-Montes) seria uma boa coisa se não servisse para alimentar os delírios da tecnoengenharia e preservar o sistema de predação necrófila, ou seja, para ampliar tudo aquilo que provocou o estado de catástrofe...” E conclui: “Colocar o foco, como está a acontecer, nas alterações climáticas e investir tudo nos meios para prosseguir os mesmos fins, os de uma máquina exterminadora – isso sim, é obstinação terrorista.” As acusações de (eco)terrorismo ressurgiram novamente em Portugal na sequência de diversas acções directas recentes de activistas climáticos – ver p.ex. aqui ou aqui. Neste outro artigo de opinião, Manuel Soares (Presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses) afirma de forma demagógica e despudorada: “Ainda que possa soar exagerado, se virmos bem, há semelhanças perturbadoras entre as acções radicais dos grupos de activistas climáticos e os atentados das organizações terroristas. Em ambos os casos, trata-se de grupos organizados de pessoas unidas por uma ideologia comum, que planeiam e executam acções subversivas ilegais, em nome de um bem maior que eles próprios definem, para, sob violência e coacção, forçar mudanças políticas e sociais, fora dos mecanismos da democracia e do civismo. Claro que não é a mesma coisa uma miúda partir a montra de um edifício público, à martelada, pela calada da manhã, para aparecer a dizer umas coisas nas televisões; ou um bombista suicida fazer-se explodir à hora de ponta para rebentar com o prédio e matar pessoas. Mas o princípio é exactamente o mesmo: as minhas razões, indiscutíveis e superiores às tuas, dão-me o direito de te coagir violentamente a pensares e fazeres o que eu digo que está certo.” Mas mais adiante parece desdizer-se: “Como disse o Papa Francisco há dias, as acções dos grupos radicais do activismo climático são a resposta a um vazio da sociedade inteira, que não exerce uma sã pressão sobre os governos.” Esta afirmação refere-se a uma passagem da exortação apostólica ‘Laudate Deum’, dedicada à crise climática e publicada na 1ª semana de Outubro – ver p.ex. aqui. Apesar de algumas posições mais extremadas, têm também surgido manifestações de solidariedade na opinião pública e da parte de diversos colectivos – ver p.ex. aqui ou aqui. Num programa da série Em Nome da Lei, a Renascença convidou activistas ambientais e duas juristas para comentar as recentes acções directas, a partir da pergunta: “Se o protesto não tiver nenhuma dimensão ou consequência, serve para alguma coisa?” – ver aqui. As respostas foram, como seria de esperar, diversas, mas apenas uma das juristas defendeu a razoabilidade e legitimidade daquelas acções. Transcrevo excertos da notícia sobre a conversa: “A professora de Direito Penal Inês Ferreira Leite defende que para resolver as alterações climáticas são precisas mudanças radicais da sociedade, e que não é imaginável que isso possa acontecer de uma forma passiva. (…) conclui fazendo um apelo. «Nós falhámos. E não é vergonha nenhuma admitir isso, com humildade. Eu já vivi a minha vida quase toda», lembra. «Com sorte terei mais 25 anos de vida. Fiz tudo o que queria. Tive uma vida ótima. Fui muito feliz. Mas tenho de assumir que os esforços que eu fiz, e foram muitos, ao longo da minha vida para que as coisas melhorassem, não resultaram. Eu fui sempre razoável. Fui sempre de compromissos. De negociação. Não funcionou. Falhou a democracia de modelo ocidental. Está a falhar o capitalismo. Está a falhar a globalização. Está tudo a falhar. Nós falhámos. E, portanto, em vez de continuarmos a penalizar as gerações mais novas que herdam o fardo pesado que lhes deixamos, nós temos é de ter um bocadinho de humildade e tentar conhecer e perceber melhor as pessoas mais novas. E ver como é que as podemos ajudar.»


Termino com um destaque para um ensaio de M. Lima (Caracóis guardiões e peregrinações interditas, relatos da Arrábida a partir de pequenos encantos e novas ameaças) publicado no Jornal Mapa em Agosto, onde a autora discorre sobre o território da Arrábida - a expansão das pedreiras e da Secil, os caracóis endémicos e as peregrinações à capela de São Luís -, entrecruzando as suas observações com o pensamento de John Halstead, Michael Hadfield, Donna Haraway e Davi Kopenawa. É uma bela reflexão que recomendo e da qual transcrevo alguns excertos: “Viver dentro do Parque Natural da Arrábida renovou a minha sensação de reverência por este ecossistema. Sinto-o como um espaço sagrado, réstia de algo puro e equilibrado que deve ser mantido – contra todas as ofensivas. Isso leva-me a dedicar um pouco mais do meu tempo ao estudo dessas duas entidades, «Fauna» e «Flora», cruzando-as com leituras sobre mitos e tradições populares. Fico sob o efeito de uma espécie de encantamento com os novos detalhes que descubro a ler ou a passear. E, para cada novo encanto, descubro também a presença de uma ameaça de extinção, pairando como uma maldição. (…) John Halstead consegue resumir as interrogações principais que surgem quando não queremos escapar ao nosso entrelaçamento mútuo. Pássaros e cobras. Caracóis e espíritos. Cientistas e turistas. Humanos e não humanos. Mortos e vivos. Nós humanos temos de fazer mais do que só observar. Temos a capacidade de proteger e tomar por sagrado este entrelaçamento [‘entaglement’], a teia da vida, de modo a evitar uma grande catástrofe. (…) Estarei a sentir que os caracóis são espelhos vivos (ou já inanimados, como os ecos que encontrei) de espíritos ancestrais? Ficou aberta a possibilidade de ler os relatos de Kopenawa de um modo diferente e de entender que estes pequenos seres antigos são veículos de compreensão para um animismo comprometido; e que também podem ser os guardiões da justiça climática multiespécie, que defenda os direitos de moluscos, pessoas e espíritos, como propõe Donna Haraway. (…) As várias peregrinações e festividades da zona, muitas delas remanescentes de tradições pagãs, encontram na propriedade privada [Herdade da Comenda] um impedimento à sua realização – templos, caminhos e parques que antes eram de todas, estão agora fechados e condenados ao turismo, à agricultura intensiva ou ao abandono. (…) A pequena peregrinação a S. Luís confronta-nos com o conjunto de ameaças que já sabíamos pairar sobre a região, mas mostra-nos ainda uma outra: o afastamento das populações locais dos seus espaços naturais ajuda a insensibilizar para o esventramento. Longe da vista, longe do coração. Se por um lado não nos permitem ver o cancro a crescer, por outro, ao vedar o acesso aos espaços de lazer, desligam-nos da Natureza e dos seus ritmos…. Sobram os lazeres artificiais, os ritmos acelerados, o cimento e o alcatrão. Dificulta-se a sobrevivência dos círios e das procissões que, segundo o que eu própria estou a experienciar, podem ser momentos de reflexão sobre a interdependência de tudo e espaços simbólicos de ritualização da vida, ou seja, alívios contra as dores de viver num mundo encantado e amaldiçoado. Sonhos de travar o grande desenvolvimento em nome de espíritos, caracóis e procissões. É assim tão absurdo querer tapar os gigantes buracos das cimenteiras para salvar frágeis caracóis? Impedir que os espaços comuns possam ser privatizados porque queremos peregrinar até eles e «pedir» pelas espécies em vias de extinção?

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Respigos de Verão (1)

The Cleaners (2019), Julie Nahon

Retomo o formato que ensaiei neste blog na Primavera deste ano (aqui) para partilhar algumas leituras ou visionamentos dos últimos meses, tentando ao mesmo tempo contrariar a habitual tendência para os ‘fait-divers’ da época estival – também apelidada de ‘silly season’. Esta é a 1ª mão-cheia de respigos - a 2ª pode ser lida aqui.

Começo com o tema da crise ambiental e, em particular, a mudança climática, que continua a ser o tópico dominante da atenção mediática, muitas vezes em detrimento de outras componentes daquela crise igualmente relevantes (escrevi sobre isso aqui e aqui). Aquela cobertura mediática tem gerado, ora uma ansiedade paralisante (‘eco-ansiedade’) nalgumas pessoas (ver p.ex. artigos recentes nas revistas The Lancet e Nature), ora apatia, frustração ou mesmo rejeição, noutras. Estas reacções devem-se em grande medida, por um lado, ao constante (e aparentemente imparável) agravamento da crise climática – quase sempre noticiado de forma dramática (ver mais adiante) - e, por outro, à inacção política ou à ineficácia das acções levadas a cabo por governos e outras instituições nacionais ou internacionais (ver p.ex. aqui ou aqui). Já a minha maior frustração tem sido a constatação da desvalorização ou da quase ausência de menção, na maioria das notícias sobre alterações climáticas, da ligação entre a crise ambiental e o modelo económico dominante (e os modos de vida a ele associados), que é sem dúvida a sua causa profunda, como tenho defendido aqui ou aqui. Denomino esta atitude dominante por negacionismo económico, que considero mais grave do que o chamado ‘negacionismo climático’, por aquele estar ainda mais disseminado e enraizado (como bem sabem os decrescentistas – ver p.ex. aqui ou aqui).


O jornal Público fez um destaque especial de 12 páginas na sua edição de 19 de Agosto sobre o estado do planeta – “A Terra em estado crítico” (edição impressa) ou “O ano de todos os avisos da Terra” (edição online). O enfoque foi essencialmente sobre a crise climática e os seus impactos catastróficos - ondas de calor, incêndios, inundações e outros eventos extremos. O artigo central faz uma listagem desses eventos mais recentes e junta-lhe os diagnósticos alarmantes do IPCC e da Organização Meteorológica Mundial, assim como alguns depoimentos de climatólogos e outros investigadores. Entre os vários artigos adicionais (sobre impactos na saúde ou sobre prioridades políticas nacionais e europeias) e os testemunhos de 11 personalidades nacionais e internacionais, tecem-se considerações sobre o caos climático - como se a catástrofe ecológica se limitasse ao clima -, atribuindo as suas causas à queima de combustíveis fósseis, às políticas dos governos populistas de (extrema-)direita ou às tendências negacionistas ou ecocidas de parte da humanidade. Mas (quase) nem uma palavra sobre o sistema económico que está na sua génese! Na verdade, num dos testemunhos, a escritora/jornalista brasileira Eliane Brun afirma que “o capitalismo destruiu não só a casa-planeta como o instinto de sobrevivência da espécie humana” e o filósofo Viriato Soromenho-Marques refere-se à civilização industrial da modernidade como responsável pelo ecocídio em curso, além de acusar a política e a economia de analfabetismo científico, e os políticos nacionais e europeus de falta de proactividade. E sobre saídas do imbróglio, fala-se sobre ‘soluções’ essencialmente técnicas/tecnológicas para atingir a neutralidade carbónica, sobre a necessidade de adaptação, sobre a importância da ciência, do conhecimento e da educação (Luisa Schmidt), e sobre a esperança depositada nos mais jovens. Este é aliás um tema do editorial desta edição, onde transparece uma desresponsabilização dos ‘adultos na sala’ (a geração que teve/tem poder de influência ou de decisão) e uma delegação da responsabilidade por eventuais acções consequentes nas novas gerações – que, alegadamente, só têm de crescer para nos salvar! Curiosamente, o Bartoon desse mesmo dia denuncia a hipocrisia desta atitude. O grande 'elefante na sala' que o Público não teve a coragem de nomear e a causa profunda do actual estado de calamidade é - como vários autores, pensadores, cientistas, etc. têm defendido, alguns há décadas! - o sistema económico dominante e os interesses instalados que o mantêm, assim como a visão de mundo que lhe está associada, que, por sua vez, promovem modos de vida que têm conduzido ao consumo insustentável de recursos não renováveis e à destruição ambiental (incluindo, mas não se limitando, às alterações climáticas), assim como a brutais injustiças sociais. Escrevi sobre isto várias vezes: aqui, aqui, aqui ou aqui. Alguns dias mais tarde (21 Ago) o Bartoon acerta na mouche com o dilema: optar pela economia ou pelo planeta? Nesse mês, o cartoon de Luís Afonso pôs o dedo na ferida mais duas vezes, denunciando as evidentes contradições das preocupações políticas nacionais ou internacionais: aqui (aeroporto Lisboa) e aqui (procura global de petróleo). 
No final de Julho, a Comissão Europeia divulgou um relatório do Joint Research Center sobre o impacto das mudanças climáticas na procura turística nas diversas regiões da Europa, que introduz mesmo um novo parâmetro criado para o efeito – o 'Tourism Climatic Index' (um indicador do conforto humano relativo ao clima)! Segundo uma nota de imprensa, prevê-se que as regiões costeiras do sul percam turistas durante o verão, especialmente em cenários de aquecimento de 3°C e 4°C, enquanto as regiões costeiras do norte da Europa registarão um aumento da procura. Em todo o continente, a procura turística cairá em Julho e crescerá em Abril, mas o relatório prevê que o turismo continuará a crescer(!) apesar das mudanças sazonais previstas. Sobre os impactos negativos do próprio turismo no clima e no ambiente, nem uma palavra... As projecções do relatório e outros dados recentes do European Travel Commission originaram notícias com títulos a condizer – ver p.ex. aqui, aqui ou aqui. Constata-se portanto que para a indústria do turismo os interesses económicos também se sobrepõem às preocupações ambientais. Ainda a propósito de hipocrisia e contradições, não posso deixar de destacar o contraste entre o dramatismo da edição especial do Público de 19 de Agosto e o registo fútil e despreocupado do suplemento Fugas dessa mesma edição!

Previsões da evolução da procura turística em diferentes cenários climáticos

Mas não sou o único a comentar esta edição do Público, embora destacando aspectos distintos. Uma semana depois, nas páginas do próprio jornal, António Marujo (editor da publicação online Sete Margens) elogiou a iniciativa do destaque mas aponta-lhe duas falhas: a omissão das mensagens do Papa Francisco sobre o tema, em particular na encíclica Laudato Si’ (onde fez aliás a ligação entre a crise ecológica e o modelo económico – ver p.ex. aqui), e a ausência de referência à guerra Ucrânia e aos contributos da indústria militar para as emissões de carbono. Marujo afirma: “Só um mundo desarmado (quer dizer isso mesmo: sem armas) e com mais democracia permitirá eficácia no combate à tragédia climática”; e conclui: “
estamos a viver a consciência do abismo e a absoluta inconsciência de continuar a caminhar para ele, porque quem manda no mundo quer saber apenas de si e do seu dinheiro”.


O outro aspecto menos positivo do destaque do Público do dia 19 de Agosto foi o recurso ao sensacionalismo (basta ver as fotos escolhidas para a capa e que se estendem para a contracapa - ver acima) e ao alarmismo - em contradição com as intenções expressas no editorial (já citado acima). Não concordo que se escamoteie a gravidade da calamidade ambiental, mas defendo que se usem formas de comunicar que não agravem a tendência para o sensacionalismo em que os media se deixaram enredar e que, no caso da mudança climática, são contraproducentes. Numa das suas crónicas no próprio Público em Julho, António Guerreiro tinha escrito sobre aquilo que apelidou sarcasticamente de ‘
olimpíadas da catástrofe’: “todos os dias havia recordes de temperatura a serem atingidos, na terra e no mar, aqui e nos antípodas. O efeito deste desporto fatídico é o de criar um desejo inconfessável de superação, um amor pelo destino trágico, um amor fati.” E deixa a pergunta: “Alguém consegue ver hoje no objectivo da ‘descarbonização’ o esboço de uma vontade de interromper a lógica de extracção dos recursos como se eles fossem infinitos?No mês seguinte volta ao tema, comentando um outro artigo, da autoria de Carlos Antunes, no mesmo jornal, onde defende que é necessário aprender a resistir à vertigem do alarmismo climático sem, no entanto, negar a realidade. Por sua vez, o engenheiro geógrafo Carlos Antunes tenta responder à pergunta: como fugir ao alarmismo climático sem perder a credibilidade? Por um lado, perante o registo de vários artigos sobre os impactos das alterações climáticas – p.ex. sobre a quantificação de mortes provocadas por ondas de calor (aqui ou aqui), ou sobre o colapso da corrente atlântica AMOC (aqui) -, confessa-se perplexo perante a “falta de rigor científico nas afirmações, nas conclusões ou na sua interpretação por parte da comunicação social em geral”. E acrescenta: “Fico também preocupado com quem comunica ciência e traz estas notícias sem as enquadrar devidamente, sem explicar os pressupostos, as limitações da sua investigação e, sobretudo, a incerteza das conclusões. (…) Não sendo falsa, a notícia conduz à perceção errada da verdade científica e, consequentemente, aumenta a iliteracia e as narrativas que alimentam fake news”. Por outro lado, refere-se ao alarmismo climático resultante da divulgação de estudos científicos baseados em métodos com muitas incertezas – modelações matemáticas e análises estatísticas -, que geram dúvidas ou mesmo descrédito. Conclui afirmando: “Face às ameaças das notícias falsas, do jornalismo sensacionalista, da desinformação, da iliteracia científica e da falta de boa comunicação em ciências, é urgente um maior investimento do país no jornalismo científico, em programas educativos, programas de debate ambiental e climático na comunicação social, bem como na boa comunicação de ciências.


Ainda a propósito de alarmismo climático, no mês de Julho, os media nacionais (ver p.ex. aqui ou aqui) e internacionais (ver p.ex. aqui ou aqui) noticiaram novas declarações dramáticas do secretário-geral da ONU António Guterres (aqui), na sequência da divulgação de mais um relatório de cientistas climáticos que confirma a ligação entre os recentes eventos meteorológicos extremos e a mudança climática induzida pela acção humana. Nessa conferência de imprensa, Guterres afirmou: “As alterações climáticas chegaram, são assustadoras e isto é só o início. A era do aquecimento global acabou, chegou a era da ebulição global”. Quase todas as notícias deram destaque à expressão ‘ebulição global’, mas a sua utilização não foi bem acolhida por alguns cientistas climáticos – ver p.ex. aqui ou aqui. Guterres voltou a apelar aos líderes políticos que parem com as hesitações e desculpas: “deixem de esperar que os outros ajam primeiro. Simplesmente já não há tempo para isso… (…) o nível dos lucros dos combustíveis fósseis e da inação climática é inaceitável”. Já me tinha referido anteriormente (aqui) aos potenciais efeitos contraproducentes de dessensibilização, indiferença, descrédito ou apatia provocados pelo uso reiterado deste tipo de apelos dramáticos e da manifesta hipocrisia política a nível global – alguém ainda se lembra das diversas declarações de “emergência climática” durante o ano 2019? (ver p.ex. aqui ou aqui)
Antes de prosseguir, deixo uma interrogação que é, ao mesmo tempo, uma dúvida lícita e uma provocação: será que este alarmismo ou sensacionalismo das narrativas mediáticas e políticas é genuíno? Ou terá por detrás uma intencionalidade dissimulada de provocar uma sensação de frustração e de impotência que desmobiliza os cidadãos em vez de os motivar a ser pro-activos? Sim, porque só uma pessoa muito ingénua ou equivocada poderá pensar que os decisores políticos, comprometidos com os poderes económicos e financeiros, vão realmente fazer o que seria necessário para mitigar a crise ambiental global - mesmo que prometam investimentos em tecnologias alegadamente salvíficas.

Num artigo de opinião sobre os vários sintomas da catástrofe climática em curso, o jornalista Patrick Mazza (aqui) recordou os avisos que o climatólogo James Hansen tinha deixado 35 anos antes aos governantes em Washington e que terão caído em saco roto. Perante a ineficácia das políticas de mitigação das últimas décadas, Mazza acaba por fazer a apologia do decrescimento como alternativa incontornável ao modelo económico dominante: “I confess, as someone who has been writing about climate disruption almost since Jim Hansen went up on Capitol Hill, and who has worked to bring on climate solutions much of recent decades, I have been skeptical of degrowth. It has been hard to see how it can be reached through the practical politics of the day. But decades of seeing the problem only become worse while actions to address it have hardly made a dent drive me to believe the only practical solutions are radical. We need to change course as a world, and quickly, or leave a legacy of chaos to our children. We have to consider degrowth.”


Num artigo ainda mais contundente, o jornalista
Jonathan Cook traça um retrato arrasador da dissonância cognitiva e da desfaçatez por detrás da inacção climática. Transcrevo alguns excertos: “So how did we reach this point of abject failure: where the greater the scientific consensus, and real-world evidence, the smaller the impact that consensus has on decision making? The astonishing disjunct between threat and response is possible only because the oil lobby has historically shaped, and continues to shape, popular understanding of the gravity of what lies ahead. Cognitive dissonance reigns. (…) Throughout the 1990s, Big Oil successfully sabotaged meaningful climate action by pressuring western states to sign an energy treaty tying their hands on cuts to fossil-fuel use. That was for a good reason. Under the capitalist system, the primary duty of oil corporations – like other corporations – is to maintain profitability and guarantee value for investors and stockholders. Ethics never got a look-in.” Cook critica também o enfoque na mudança individual devido às suas evidentes limitações. Destaca, por outro lado, os poderosos interesses instalados que não mostram qualquer interesse em mudar o sistema económico: “Corporate money in politics meant the political class was in no mood to take on the oil industry, whatever the scientists were saying. In any case, politicians, desperate for re-election, were not about to start questioning the precepts of capitalism in a two-party system in which both parties were expected to worship the model of endless economic growth. The establishment media was embedded in the same network of interconnected corporations that profited from an oil-based economy. Their own short-termist goals depended on shoring up an irrational faith among the public in eternal economic growth on a finite planet.” Denuncia ainda a falácia dos chamados ‘Pactos Verdes’ e das metas de descarbonização: “Recent reports show that ethical and green investment funds have poured money into fossil-fuel companies after those firms rebranded themselves. The oil giants’ profits have again hit record levels. Under the so-called Green New Deals, nothing fundamentally changes. We still drive our own cars in pretty, individualised colours. We still holiday abroad. We still shop in large supermarkets with everything – including year-round exotic fruit flown in from abroad – wrapped and protected in oil-based plastics. We are still encouraged through advertising to consume as much as possible and throw away items of new technology – from personal computers to phones – every few years through planned obsolescence. But this individualised, competitive, wasteful way of life is being given a makeover. Cars are now hybrids or electric. Holidays are “carbon offset” somehow. Plastic on our food is described as recyclable. Advertising now explains to us how all the stuff we buy is saving the planet. (…) The new watchword is “net zero”. But in truth, it is a giant psychological operation (psyop), as climate scientists have gradually started to appreciate. In 2021 a group of three leading academics admitted that for years they had been duped into championing the promises of the Green New Deal. Technological fixes, such as carbon capture, offsetting and geoengineering, were «no more than fairy tales», they warned. Net zero policies «were and still are driven by a need to protect business as usual, not the climate».” Critica ainda os movimentos de luta contra a crise climática por apoiarem os ‘Pactos Verdes’ e por não se oporem frontalmente ao ‘investimento’ ocidental na guerra da Ucrânia: “Significant sections of the protest movement itself have been hoodwinked into believing the Green New Deal offers good-faith solutions – despite the fact that it has been hijacked to disguise business as normal. As a result, the elephant in the room – the inherent, self-destructive tendencies of capitalism – is pushed by protesters to the sidelines or out of sight completely. Protests are invariably restricted to policy failures or government U-turns. (…) In recent months [Greta Thunberg] has become an increasingly high-profile partisan in the Ukraine war, effectively greenwashing the West’s cynical proxy fight against Russia on behalf of its war and energy industries. The Ukraine war, provoked all too predictably by Nato expansion to Russia’s borders, has offered enormous profiteering opportunities for the West’s military, weapons and oil industries.” Finalmente identifica as grandes corporações industriais e financeiras multinacionais como principais responsáveis pela actual policrise, que alia à emergência climática as crises económica, social e democrática, e por um eventual colapso societal: “Western publics are confused, embittered and divided – the ideal conditions in which inertia reigns and Big Oil can carry on as normal. With no one in the mainstream grappling with the reality of what lies ahead, leading financial institutions have been free to pretend that capitalism’s relentless growth paradigm can be squared with sustainability. (…) The climate emergency, and the wider ecological crisis, will put this kind of neoliberal orthodoxy under ever greater strain. Without a meaningful response, something will have to give. Already, the twin pillars of the West’s liberal democratic order are starting to crumble: the commitment to free speech and the right to protest. Ahead lie ever more unaffordable energy bills, empty supermarket shelves, floods and heatwaves, wasted expenditure on resource wars, and the more general symptoms of ecological collapse. Burying our heads in the sand a little longer won’t make the coming battle go away. It will just make survival even less likely.”


Regresso ao jornal Público para repor alguma justiça na minha avaliação dos seus conteúdos e elogiar a publicação da entrevista a
o pensador indígena Ailton Krenak, que esteve no início de Julho na Culturgest, onde deu uma conferência (é possível aceder ao audio da sessão aqui). As respostas de Krenak constituem uma boa introdução às suas ideias sobre temas como tempo (e urgência), comunicação, refugiados ou ligação corpo-território (já tinha escrito aqui sobre o pensamento de Krenak). Nunca usa a palavra decrescimento, mas o seu pensamento é profundamente decrescentista e sinto-me pessoalmente muito alinhado com as suas posições sobre o papel da visão de mundo hegemónica na actual crise socio-ambiental e a necessidade absoluta de questionar o paradigma dominante. Transcrevo alguns excertos: “A realidade global que possibilita que algumas regiões do planeta estejam em permanente situação de guerra vai mudar quando as pessoas não fugirem de lá e perguntarem porque é que aquele lugar foi escolhido para ser um campo de guerra. (...) Os refugiados do mundo inteiro têm de descobrir o endereço de quem está destruindo o mundo deles. (…) A gente deveria se perguntar por que é que continuamos produzindo o desastre que acaba com os mundos e produz gente sem mundo, movendo-se por aí. Temos de fazer essa pergunta, senão vamos estar naturalizando a situação de milhões de pessoas. (…) Nós estamos vivendo num planeta-pirata? Onde as grandes companhias actuam como se fossem saqueadores de pedaços do planeta até que não sobre nada? Todos vamos ser refugiados, nós todos. A tal da humanidade vai ser só refugiados. Será que a gente não tem a opção de nos transformarmos em pessoas activas, corpo-território, que de repente podem dizer uma insanidade: «Vocês querem destruir esse lugar onde eu estou? Podem destruir, mas a gente vai ficar aqui.» Qual é que seria o efeito disso?


Encontramo-nos perante o desafio imenso de superar uma crise global sem precedentes, que só um forte envolvimento dos cidadãos e da chamada sociedade civil poderia efetivar, experimentando uma diversidade de abordagens. As propostas decrescentistas abrem caminhos para mudanças socio-económicas e culturais, que muitos consideram ainda demasiado radicais e utópicas – ver p.ex. aqui. Termino com a referência ao relatório
Welcome to the Great Unraveling: Navigating the Polycrisis of Environmental and Social Breakdown” publicado em Junho no site do Post Carbon Institute (PCI). Richard Heinberg, um dos coautores do relatório e apoiante do decrescimento, escreveu um curto resumo para o site Resilience, onde defende a necessidade incontornável de mudar o paradigma económico e do qual transcrevo alguns excertos: “[The PCI report] seeks to build a coherent narrative about the roots of the polycrisis, the signs of its arrival and evolution, and why we should be thinking differently about the future. When confronted with evidence that our collective path is unsustainable, many of us tend to jump to “all-or-nothing” ways of thinking, sometimes framing our future in simplistic terms as “the end of the world” or “apocalypse.” But according to the report’s authors, this tendency is unhelpful. While a complete and sudden end of humanity is theoretically possible via nuclear war, our more likely future will consist of decades of social, economic, political, and ecological turmoil punctuated by periods of rescue and recovery. There is still considerable divergence between best- and worst-case scenarios, and we still have agency to affect outcomes. According to the PCI report, we should be spending far less effort building upon expectations of a future that looks much like today only with more technology, mobility, and wealth; instead, we should devote our collective brainpower to questions like, How does a civilization downsize gracefully? Or, What have we achieved that our distant descendants would like us to preserve for them? (…) Strategies that seemed to make sense before the polycrisis, such as efforts to grow national economies, will need to be replaced by different ones, such as efforts to build resilience. (…) if we work together now to build a truly sustainable way of life, maybe future generations will have at least some reasons to thank us.”

Continua... Segunda parte dos Respigos de Verão, aqui.

Deixo hiperligações para alguns artigos que advogam o decrescimento económico como via para a mitigação da crise climática (ou da crise ecológica mais abrangente):

Beth Roberts, The 'degrowth' economic model is key to fight climate change (2023): https://www.devex.com/news/opinion-the-degrowth-economic-model-is-key-to-fight-climate-change-105308

Tiomthée Parrique, Economic growth is fuelling climate change – a new book proposes ‘degrowth communism’ as the solution (2023): https://theconversation.com/economic-growth-is-fuelling-climate-change-a-new-book-proposes-degrowth-communism-as-the-solution-199572

J. Hickel, G. Kallis, T. Jackson, et al. Degrowth can work — here’s how science can help. Nature. 612, 400-403 (2022). https://www.nature.com/articles/d41586-022-04412-x (resumo aqui)

John Hobby, Degrowth as a solution to the climate crisis (2021): https://www.if.org.uk/2021/11/09/cop26-degrowth-as-a-solution-to-the-climate-crisis/

Lorenz T. Keyßer & Manfred Lenzen, 1.5 °C degrowth scenarios suggest the need for new mitigation pathways (2021): https://www.nature.com/articles/s41467-021-22884-9 (resumo aqui)