sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Perdoar e esquecer o pandemónio?

Um artigo de opinião da profª de economia norteamericana Emily Oster no The Atlantic propõe uma 'amnistia' para apaziguar os ânimos das contendas mais extremadas sobre a validade e consequências das medidas de mitigação da pandemia:

(…) We have to put these fights aside and declare a pandemic amnesty. We can leave out the willful purveyors of actual misinformation while forgiving the hard calls that people had no choice but to make with imperfect knowledge. (…) The standard saying is that those who forget history are doomed to repeat it. But dwelling on the mistakes of history can lead to a repetitive doom loop as well. Let’s acknowledge that we made complicated choices in the face of deep uncertainty, and then try to work together to build back and move forward.

Mas acabou por ter o efeito contrário - e os que criticaram a sua alegada postura conciliatória têm razão: aqueles que sofreram na pele a discriminação e ostracização social durante quase três anos não podem simplesmente 'perdoar e esquecer' o que aconteceu apenas porque não se sabia tudo e foi preciso agir por precaução, e porque agora é tempo de avançar e não de cultivar rancores. O que seria necessário era garantir que o que sucedeu durante a pandemia não voltasse a suceder perante outra crise. Mas o que se viu com a guerra na Ucrânia foi novamente a censura e a diabolização de quem tem questionado a narrativa oficial propalada por governantes e media – ver p.ex. aqui, aqui ou aqui.


Recomendo pois a leitura de alguns dos textos que fazem uma análise crítica da apologia conciliatória de Oster:

Charles Eisenstein: https://charleseisenstein.substack.com/p/amnesty-yesand-here-is-the-price

(…) Let us inaugurate an era of accountability based in transparency rather than punishment. The invisible workings of the Covid machine must be laid bare if we are to prevent something similar from happening again. People and institutions must become cognizant of the role they played in the social catastrophe that was Covid. I will support amnesty when universities admit that they coerced young people to take unnecessary and dangerous vaccines. I will support amnesty when Pfizer describes how it manipulated data to get its shots approved. I will support amnesty when regulators confess that they allowed shoddy vaccine manufacturing processes to proceed without oversight. I will support amnesty when medical boards and hospitals acknowledge that they expelled doctors for using beneficial therapies. I will support amnesty when the FDA admits that it removed helpful drugs from the market. I will support amnesty when social media platforms acknowledge that they censored important, true information. I will support amnesty when fired workers are reinstated with back pay. I will support amnesty when the state of Rhode Island reinstates my wife as a licensed acupuncturist. I will support amnesty when the government acknowledges vaccine damage and compensates the victims. I will support amnesty when regulatory agencies are freed of corporate influence. I will support amnesty when vaccines are subjected to long-term, robust scientific study to determine safety and efficacy. I will support amnesty when mainstream media gives attention to the dissidents and whistleblowers it has ignored and ridiculed. I will support amnesty when brave, conscientious doctors like Peter McCullough and Meryl Nass are reinstated by professional organizations and medical boards. I will support amnesty when a moratorium is declared on genetically engineered bioweapons research, and its full extent made transparent to the public. These are the kinds of things that would have to happen for me to trust that amnesty wouldn’t mean license to repeat the crimes, again with the excuse of “We didn’t know.”


Vinay Prasad: https://vinayprasadmdmph.substack.com/p/pandemic-accountability

The COVID-19 pandemic resulted in many bad policies being implemented. We need accountability so that we never institute these policies again. Let me enumerate some structural solutions (…)


Eugyppius: https://www.eugyppius.com/p/emily-oster-proposes-a-pandemic-amnesty

(…) Emily Oster’s latest act of moderation is the suggestion that we forgive and forget all the disastrous policies inflicted on us by terrified wealthy urbanites, clueless technocrats and mad scientist vaccinators since 2020, because, hey, these were just honest mistakes, anybody could’ve messed up like that, it’s all good.


Madhava Setty: https://childrenshealthdefense.org/defender/covid-pandemic-amnesty-accountability/

(…) Yes. We do need to forgive each other in order to move forward — but that will be possible only if we take full account of the mistakes that were made and come to an understanding of why so many people made them. Sadly, Oster isn’t interested in this level of inquiry and the editors at The Atlantic aren’t either. What happened over the last two-and-a-half years was reprehensible, and her attempt to get to the bottom of things is fanning the flames of fury among those whose lives were destroyed by ad hominem attacks, de-platforming, delicensure, demonetization, demonization and debilitating vaccine injuries. (…) She’s right about one thing. Getting things wrong during a time of uncertainty was not a “moral failing.” The moral failure occurred whenever people in her position of uncertainty ruthlessly attacked anyone who happened to get it right…

Já no final de 2020 (aqui) me tinha recusado a aceitar a expressão 'um ano para esquecer' - e reitero-o agora, repudiando as tentativas de banalizar e branquear a engenharia social que foi imposta a reboque do pandemónio. Considero particularmente gravosos os seguintes factos: a forma brutal como foram demonizadas as pessoas que se recusaram a vacinar-se, assim como outras medidas, incluindo chantagem emocional e psicológica, para incentivar a vacinação; a imposição de certificados e passes sanitários, quando já se sabia que as vacinas não preveniam a transmissão. Aproveito para recordar os posts onde manifestei a minha indignação, dando voz a muit@s d@s que questionaram a narrativa dominante e a propaganda permanente - em 2021 (aqui e aqui) e em 2022 (aqui).


quinta-feira, 10 de novembro de 2022

COP27: cantando a mesma cantiga desde 1995

  • A crise climática é o maior desafio da humanidade
  • É urgente estancar o aquecimento climático
  • Esta cimeira é fundamental para colocar o mundo no rumo da neutralidade carbónica
  • É imperioso deixar um planeta saudável para as próximas gerações
  • O mundo deverá descarbonizar com urgência
  • Precisamos de assumir compromissos concretos e ambiciosos
  • Líderes mundiais devem estar à altura da emergência climática
  • A janela de tempo para fazer a transição energética está a fechar-se rapidamente
  • Só temos esta década para implementar uma acção climática eficaz
  • O mundo está a arder

Presumo que muitas destas frases serão familiares por terem vindo a ser repetidas e transcritas pelos media, ano após ano, por ocasião das conferências anuais das Nações Unidas dedicadas ao Clima – conhecidas por COP – e que se iniciaram em 1995 (ver aqui). Está a decorrer até ao dia 18 de Novembro mais uma COP – a #27 – no Egipto (ver aqui ou aqui). Lamentavelmente, já se percebeu que as COPs servem essencialmente para gastar rios de dinheiro (e gerar toneladas de CO2 e de lixo) na organização de um evento que não está à altura do desafio da crise climática e que deixa tudo quase na mesma - rumo à catástrofe anunciada pelo painel de peritos (IPCC) patrocinado pela própria ONU (ver p.ex. aqui) ou por avisos sucessivos de cientistas mundiais (como aquele que foi publicado no final de Outubro). Como escreveu Daniel Tanuro em 2019, antes da COP25: "Da COP1 à COP24, os governos empenharam-se sobretudo em arranjar forma de não reduzirem as suas emissões, ou de as fazer reduzir aos outros, ou de fingir que as reduzem, deslocalizando-as, ou de conseguir novos mercados para compensar o seu compromisso em reduzi-las de forma homeopática, ou de fazer adotar a ideia absurda de que não abater uma árvore equivale a não queimar combustíveis fósseis.” E eu acrescento que o enfoque da discussão em volta dos balanços de carbono é perigosamente redutor, pois sabemos não só que a crise ambiental é bem mais profunda (ver p.ex. aqui), como também que a sua raiz está no modelo económico global que (quase) ninguém que se senta à mesa das negociações ousa sequer propor mudar (escrevi sobre isto aqui e aqui).


Este ano a COP27 padece de diversas agravantes: decorre numa famosa  estância turística à beira do Mar Vemelho, num país que reprime dissidentes e protestos, e conta com patrocínios de corporações como a Coca-Cola ou a Microsoft, o que já lhe valeu acusações de ‘greenwashing’ e os cancelamentos de participação de figuras mediáticas, como Greta Thunberg e outr@s activistas – ver aqui, aqui ou aqui. Ao contrário das COPs anteriores, não haverá portanto cimeiras alternativas ou protestos no local – embora estejam previstas manifestações noutras partes do mundo, incluindo Lisboa (ver aqui). Ironicamente e apesar dos patrocínios, os conferencistas têm-se queixado da escassez de água e de alimentos no recinto da COP!


Apesar de tudo, os ‘líderes’ mundiais continuam a proferir as mesmas frases dramáticas nos seus discursos empolgados, talvez para encobrir a sua própria incapacidade ou impotência para lidar com a catástrofe em curso. António Guterres afirmou, numa mensagem vídeo enviada aos conferencistas: “No momento em que arranca a COP27, o nosso planeta está a enviar um sinal de sofrimento”, acrescentando: “Devemos responder ao sinal de alarme do planeta com ações climáticas ambiciosas e credíveis. A COP27 é o lugar e o momento para o fazer.” Numa entrevista ao jornal The Guardian, advertiu: “continuamos a alimentar o nosso vício em combustíveis fósseis. Perante isto, temos uma de duas opções: ou a ação coletiva, ou o suicídio coletivo.” E no seu discurso na abertura da cimeira, disse: “Estamos numa auto-estrada rumo ao inferno, com o pé no acelerador.” Por sua vez, Ursula van der Leyen ripostou no 3º dia da cimeira: “Não vamos pela auto-estrada que nos leva ao Inferno, tiremos um bilhete limpo que nos leva ao Céu”, enquanto Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, prometeu: “vamos [UE] continuar a ser campeões da acção climática.”

Como escrevi há um ano a propósito da COP26, “Desde a aprovação do ‘Acordo de Paris’ em 2015, os governos dos diferentes países tentam, sem êxito, negociar as estratégias concertadas e os meios necessários para cumprir as metas de redução de emissões. No entanto, como continuam a tentar fazê-lo sem mudar o paradigma económico global [baseado no crescimento permanente da produção e do consumo] e sem integrar as outras dimensões interligadas da crise ecológica (…), é natural que as emissões tenham continuado a aumentar, apesar de uma ligeira redução durante o ano 2020 devido [ao impacto das] medidas de mitigação da pandemia da Covid-19 [na actividade económica]”. Desde então assistiu-se a retrocessos na transição para energias ‘verdes’ na Europa, a reboque da guerra na Ucrânia (ver p.ex. aqui ou aqui), assim como a novas demonstrações de hipocrisia por parte das instituições financeiras que afirmam querer contribuir para a mitigação da crise climática, algumas das quais tendo abandonado ou ameaçado abandonar a coligação Glasgow Financial Alliance for Net Zero (GFANZ) criada em 2021 na COP26 por temerem as repercussões legais (e financeiras) de não cumprir os seus compromissos (ver aqui ou aqui). O resultado foi o recuo das ambições da GFANZ que anunciou que não irá cumprir as metas da campanha ‘Race to Zero’ da ONU.

Por outro lado, as ameaças das soluções tecnológicas promovidas pelo ‘capitalismo verde’ têm sido acertadamente denunciadas pela sua ineficácia ou por serem contraproducentes, em particular por sectores da ‘esquerda’ (ver p.ex. aqui), que defendem, por sua vez, um papel mais activo dos Estados na promoção de investimentos de vulto na chamada ‘transição verde’ ou na regulação do investimento privado, para cumprir as metas climáticas. No entanto, parecem querer ignorar que a maioria dos Estados foi capturada pelo poder económico e pela mercantilização global, que promovem a desregulação e o caos climático. Aqueles mesmos sectores defendem também que os países ricos devem compensar as ‘economias emergentes’ dos países do sul global, através por exemplo de mecanismos de ‘perdas e danos’, discutindo os montantes das verbas a alocar, como se tudo se resolvesse atirando milhões de euros ou dólares aos problemas. A justiça climática é indispensável - e podia começar com o anulamento das dívidas dos países mais frágeis do sul global - mas deverá envolver outras formas de solidariedade que não se traduzam (apenas) em cifrões.


Enfim, resta pouca esperança de não se repetir o desalento que se seguiu à COP anterior em Glasgow, alcunhada de FLOP26, sarcasticamente documentado pelo comediante britânico Tom Walker (aka Jonathan Pie). A comunidade internacional que se reúne anualmente para as COP parece-me assemelhar-se cada vez mais à banda que continuou obstinadamente a tocar à medida que o Titanic mergulhava nas águas gélidas do Atlântico Norte.

P.S. O jornal online de temas ambientais francês Reporterre fez um balanço das COP e questiona (também) se ainda servem para alguma coisa - ver aqui.
© Clarisse Albertini / Reporterre


P.P.S. Uma análise da lista de conferencistas registados na COP27 mostrou que o lóbi das indústrias de combustíveis fósseis está presente em força, superando o número de representantes daquelas indústrias o de membros de qualquer das representações nacionais (excepto a dos Emiratos Árabes) - ver aqui





terça-feira, 25 de outubro de 2022

Parrésia: confrontar o poder falando verdade

Nota prévia: inauguro com este post uma nova série de textos mais curtos, que intercalarei com outros mais extensos, numa tentativa de conferir maior dinamismo a este blog.

A expressão anglosaxónica 'speaking truth to power' tem sido muito usada para descrever acções individuais ou colectivas de contestação ou de desobediência civil ligadas a diferentes activismos, que vão dos movimentos políticos ou de defesa dos direitos humanos, aos pacifistas ou aos ambientalistas. Nomes como os de Nelson Mandela ou de Ghandi são muitas vezes invocados como exemplos dessa forma de resistência ou de confronto pacífico face aos poderes instalados. No entanto, a sua origem pode ser atribuída ao conceito grego de 'parrhesia' (parrésia em PT) – ver p.ex. aqui. O filósofo Michel Foucault investigou e reflectiu sobre o tema na sua derradeira série de palestras intitulada «O governo de si e dos outros/A coragem da verdade» – ver aqui. Etimologicamente, a palavra significa dizer tudo, mas o seu uso referia-se à capacidade (e virtude) de falar aberta e francamente, mesmo que isso pudesse ir contra o senso comum ou causasse incómodo aos outros. Foucault refere que esse acto pode acarretar um risco para o falante (parresiasta), sendo que "o perigo vem sempre do facto de que a verdade dita é capaz de ferir ou enfurecer o interlocutor". Afirma ainda que "Parrhesia é uma forma de crítica, seja em relação a outro ou em relação a si mesmo, mas sempre numa situação onde o falante ou confessor está numa posição de inferioridade em relação ao interlocutor". Foucault resume assim o conceito: "a parrhesia é uma atividade verbal na qual um falante expressa a sua relação pessoal com a verdade e arrisca a sua vida porque reconhece o acto de dizer a verdade como um dever para melhorar ou ajudar outras pessoas (assim como a si mesmo). Na parrhesia, o falante usa a sua liberdade e escolhe a franqueza ao invés da persuasão, a verdade ao invés da falsidade ou do silêncio, o risco de morte ao invés da vida e da segurança, a crítica ao invés da bajulação, e o dever moral ao invés do interesse próprio e da apatia moral".

É nesta acepção que invoco aqui o conceito de parrésia para destacar alguns acontecimentos recentes que me pareceram exemplares. O primeiro refere-se a uma declaração conjunta de um grupo de oito jovens agrónomos franceses ('Des agros qui bifurquent'), recém-licenciados pela universidade AgroParisTech, na cerimónia de entrega de diplomas em Maio deste ano – ver aqui (vídeo; é possível activar legendas em quatro línguas) e aqui (texto da declaração em FR). A sua postura tranquila, mas determinada, de quem compreendeu que a universidade onde passaram os últimos anos da sua formação os preparou para se adaptarem a um sistema ambiental- e socialmente nocivo, com o qual eles decidiram não compactuar escolhendo outros caminhos, é absolutamente notável. Recomendo vivamente a leitura da declaração, que faz uma crítica incisiva do sistema capitalista e tecnocrático vigente, assim como das falsas alternativas do ‘desenvolvimento sustentável’, do ‘crescimento verde’ ou da ‘transição ecológica’. A lucidez e a integridade destes verdadeiros parresiastas foram louvadas por alguns órgãos de comunicação francófonos ou anglófonos (ver aqui ou aqui), mas vilipendiadas por muitos outros (predominantemente franceses) que os acusaram de deserção social, sem dúvida por se sentirem confrontados pela atitude destemida e claramente contra-hegemónica daqueles jovens (ver p.ex. aqui). Por cá, nem pio… Surpreendentemente (ou talvez não), a própria universidade emitiu um comunicado (ver aqui) elogiando o protesto dos estudantes e aproveitando para se auto-congratular, alegando que a postura emancipatória daqueles estudantes, mas também a da maioria dos outros que não tiveram tal ousadia, era uma prova cabal de que a instituição cumprira a sua missão de dar aos seus formandos competências para escolherem o seu próprio caminho e para estarem à altura dos desafios e debates da sociedade!

Um outro exemplo de uma acção parresiástica colectiva dentro de uma universidade aconteceu quando um grupo de activistas pacifistas (Resist and Abolish the Military Industrial Complex – RAM INC) interrompeu uma aula sobre mudança climática na Harvard Kennedy School (faculdade da Harvard University) que estava a ser leccionada por uma executiva (Meghan O’Sullivan) da empresa norteamericana de armamento Raytheon, denunciando a gigantesca hipocrisia patrocinada pela própria universidade, dado o reconhecido contributo do complexo-industrial militar para as emissões de gases com efeito de estufa – ver vídeo comentado aqui e notícia aqui. A Raytheon é uma das quatro grandes empresas que têm lucrado com as vendas de armas à Ucrânia ou à Arábia Saudita (ver p.ex. aqui).

Os outros dois exemplos que seleccionei são de parresiastas que agiram individualmente. O primeiro refere-se ao depoimento da jovem activista climática britânica Mikaela Loach que aproveitou um convite para participar num evento patrocindado pela Fundação Gates - a BMGF Goalkeepers Award Ceremony 2022 – para denunciar o contributo dos bilionários e do capitalismo para a crise climática, bem como o papel do filantrocapitalismo no ‘greenwashing’ das suas próprias iniciativas – vídeo aqui e comentário aqui. O segundo refere-se a depoimentos recentes da eurodeputada irlandesa Clare Daly em sessões do Parlamento Europeu, nos quais denunciou a hipocrisia e incitação à guerra por parte da União Europeia e dos EUA/NATO, que lhe valeram acusações de propagandista pró-russa e anti-europeísta – ver vídeos aqui e aqui.

A coragem, a integridade e a coerência são três das facetas mais notáveis que caracterizam os parresiastas, conseguindo assim abalar a impunidade dos poderosos e vencer o conformismo social, inspirando outros a fazer o mesmo – ver p.ex. aqui. Os autores deste artigo, que enaltecem a parrésia como uma ética radical, afirmam: “Only through the extreme courage to pursue, continually and not exceptionally, our own and always singular ethos that gives content to an alternative form of life, outside the laws of scientific, philosophical and prophetic truths, can we–perhaps–slay the Hydra of impunity.”

No entanto, a parrésia não é isenta de perigos, nomeadamente os da apropriação ou desvirtuação pelo próprio sistema de poder, acabando por servir a sua perpetuação. Um exemplo recente é o da jovem poetisa afroamericana Amanda Gorman, cuja eloquência na defesa e na afirmação de comunidades discriminadas ou oprimidas socialmente lhe valeu rasgados elogios vindos dos sectores mais progressistas da sociedade norteamericana, tendo sido escolhida para ler um poema seu na tomada de posse do presidente Biden em 2021 – ver p.ex. aqui ou aqui. Apesar da aclamação e celebridade que se seguiram, as suas decisões de dar corpo a campanhas publicitárias de grandes corporações internacionais ou a reportagens em revistas de moda valeram-lhe acusações de oportunismo e de colaboracionismo com o sistema que alega criticar – ver p.ex. aqui ou aqui. Em sua defesa, Gorman tem afirmado que tem consciência das potenciais incoerências da exposição mediática, mas que esta serve a sua causa de lutar contra a injustiça social e que tenciona mesmo candidatar-se à presidência dos EUA. Há quem desconfie que a sua ousadia se terá transmutado em deslumbramento e hubris. Uma outra aclamada escritora de origem nigeriana – Chimamanda Adichie – cuja obra celebra o poder das histórias na afirmação e emancipação social das mulheres africanas, foi recentemente convidada para a mesma cerimónia a que me referi acima a propósito da jovem parresiasta Mikaela Loach. Só que na conversa que teve com a bilionária Melinda Gates (ver aqui), não se vislumbra uma atitude parresiástica; antes pelo contrário, fiquei boquiaberto ao ouvir a escritora elogiar as iniciativas da Fundação Gates nos países mais pobres em todo o mundo, incluindo a África. A incoerência é tão gritante que tenho de dar razão ao discurso radical de Onyesonwu Chatoyer no artigo citado acima, no qual faz uma crítica devastadora a várias mulheres de origem africana (incluindo Gorman) cuja ascensão a lugares de poder ou de visibilidade na sociedade norteamericana não tem afinal confrontado ou posto em causa o sistema supremacista, imperialista e neocolonialista dos EUA.

P.S. Após publicação deste post recebi uma amável resposta de uma leitora que partilhou um escrito de 2013 sobre o mesmo tópico (invocando a personagem parresiástica de Casy no filme 'As vinhas da ira' de John Ford), do qual extraí a seguinte frase: "O parrésico não diz em nome de Deus, da sabedoria ou da técnica. Diz em nome de um ethos, a sua relação com a verdade é fundamental e dizê-la é um dever perante os outros [e, acrescento eu, em particular, perante o poder opressivo e desumanizante] e perante si próprio."

P.P.S. Já tinha escrito anteriormente (aqui e aqui) sobre outros casos de parresiastas que sofreram consequências mais gravosas pelos seus actos corajosos de defesa da liberdade de informação ou de expressão, ou de defesa dos seus territórios e modos de vida.


terça-feira, 30 de agosto de 2022

Uma azinheira em Monsanto

(Este post resultou de uma investigação-criação para o festival Pedras’22 do c.e.m-centro em movimento)

Todo o conhecimento cósmico é um ponto de vida (e não apenas um ponto de vista), toda a verdade é o mundo no espaço de mediação do vivente. Nunca se poderá conhecer o mundo enquanto tal sem passar pela mediação de um vivente. Emanuele Coccia (A vida das plantas, 2018)

Vegetar é crescer em contiguidade com o mundo, coabitar lugares, aderir e fazer espaços, engajar-nos com aquilo que nos circunda – ou, antes, nos atravessa. Criar raiz e lançar sementes. In: Vozes Vegetais, J. Cabral de Oliveira et al. (2021)

De há uns anos a esta parte tenho reflectido sobre o papel que a nossa relação com o mundo-mais-do-que-humano (a que chamamos muitas vezes ‘natureza’) desempenha nas visões que construímos sobre o mundo que habitamos e no modo como gerimos as sociedades em que vivemos (ver p.ex. aqui ou aqui). Muitos outros se têm debruçado sobre esta temática, desde filósofos a naturalistas e activistas, e já invoquei por diversas vezes as suas vozes ou os seus escritos (ver p.ex. aqui ou aqui). Tenho levado algumas dessas reflexões para a minha colaboração com o c.e.m-centro em movimento, em particular para as ‘conversas transpensar’ que decorreram às 2ªs-feiras à tarde entre Outubro de 2021 e Junho de 2022. Em paralelo, iniciei no final de Abril uma série de incursões no Parque Florestal de Monsanto com a intenção de desenvolver uma proposta para o festival Pedras’22. Aquele parque florestal é um excelente exemplo de simpoiese (tema de post anterior) na medida em que o que nos é dado ali a apreciar e vivenciar no presente é o resultado de um processo de cocriação entre humanos e e não-humanos: em particular, as plantas, mas também alguns animais e ainda muitos fungos e bactérias. De facto, a maioria das árvores de grande porte que ali encontramos resultaram de um processo de reflorestação que se iniciou no final da década de 1930 (ver p.ex. aqui e aqui). O processo prolongou-se até ao final dos anos 1940 e partir daí seguiram-se décadas de gestão florestal activa com novas plantações (essencialmente espécies autóctones), mas também de renovação natural, acentuando as características de bosque mediterrânico, que conferem ao parque um carácter de floresta silvestre.


Nas minhas deambulações na zona sul de Monsanto, cruzei-me com uma azinheira na orla de uma zona florestada que me cativou pela forma acolhedora da sua copa, fazendo lembrar um caramanchão (passei aliás a designá-la por “azinheira-caramanchão”). Esse encontro activou em mim algumas ligações mentais-sensoriais que remeteram para as estruturas (‘bowers’) construídas pelas chamadas ‘aves-jardineiro’ - tradução possível para a palavra inglesa ‘bowerbird’, que designa um grupo de aves da Papuásia e Austrália (ver p.ex. aqui ou aqui). Tinha-me cruzado com aquelas estruturas ao investigar para um post que escrevi sobre a hipótese do músico e filósofo norteamericano David Rothenberg em relação à criatividade dos animais não-humanos - que ele resumiu na expressão “survival of the beautiful”. Desta vez, não me interessou tanto a discussão em volta da validade dos atributos de artistas ou arquitectos que são conferidos àquelas aves, mas mais à sua actividade de recolectoras ou colecionadoras de objectos que encontram nas florestas onde habitam. Durante várias semanas visitei regularmente aquela azinheira singular e permaneci em estado de escuta demorada sob a sua copa. Em cada visita deixei-me levar pelo impulso de recolher e trazer para ali diferentes objectos que fui encontrando nas imediações, alguns deles assumidamente inspirados nos que são escolhidos pelas aves-jardineiro. As acções de selecionar e compor os diferentes objectos que fui recolhendo – flores, líquenes, pinhas, ramos, pedras, cascas de pinheiro, hastes de gramíneas, sementes - levaram-me, por um lado, a reflectir sobre as suas qualidades, que motivavam as minhas próprias preferências e, por outro, a experimentar o puro gozo desse mesmo exercício. Foram a alegria e o deleite desses gestos que me fizeram ali voltar e demorar, alimentando o desejo de cada (re)encontro.



Durante aquele processo realizei diversas caminhadas nas imediações da azinheira-caramanchão que me deram a oportunidade de apreciar as diferentes qualidades das diversas zonas em seu redor e as suas subtis nuances. Descobri por exemplo que já existiam outros vestígios de intervenção humana (criativa) naquele espaço (ver fotos abaixo), acrescentando-lhe uma outra camada de simpoiese sob a forma de estruturas, a que podemos atribuir a designação de ‘land art’.



No entanto, o principal foco da minha atenção e curiosidade durante as caminhadas dirigiu-se às plantas, apreciando a diversidade e distribuição de árvores e arbustos, bem como das herbáceas e como estas vão variando e se vão sucedendo ao longo das semanas e meses, na transição da Primavera para o Verão. Num grande prado em declive suave junto ao Pólo Universitário da Ajuda, pude assistir à fascinante e prodigiosa sucessão das herbáceas, com as suas flores mais ou menos vistosas - os diversos tipos de malmequeres, as malvas, as soagens, as tanchagens, as chicórias, os verbascos, ou os vários cardos. O corrupio de variados insectos – em particular, abelhas e escaravelhos de diferentes tipos e tamanhos, atraídos pelas flores - era igualmente notável. O outro grupo de herbáceas muito abundante e diverso naquele prado, ainda que mais discreto, é o das gramíneas. A diversidade de formas das suas sementes, que convidam a um olhar apurado e demorado, assim como a flexibilidade das suas hastes, ondulando ao sabor do vento, são especialmente deslumbrantes (ver este post que escrevi para o blogue do Pedras’22). Igualmente deslumbrante foi a constatação da criatividade que se expressa na diversidade de soluções (flores e sementes) para as mesmas funções de reprodução e dispersão. Várias vezes me deixei ficar - o corpo suspenso em momentos esquecidos de pura contemplação e êxtase - perante tamanha preciosidade e tão profunda sabedoria.



Recordo aqui o fenómeno de ‘cegueira botânica’, a que aludi num post que escrevi em 2021. A expressão traduz uma incapacidade ou insensibilidade de notar ou reconhecer a diversidade do mundo vegetal à nossa volta - extensível a outros componentes do mundo-mais-do-que-humano, como os líquenes (ver também post sobre líquenes e musgos que escrevi para o blogue do Pedras’22). As minhas demoras em Monsanto impeliram-me a reflectir novamente sobre o que impedirá muitas pessoas de ver e de se deslumbrar com a variedade de cores, formas, texturas e movimentos, que as diferentes plantas exibem e como esses mesmos atributos vão variando ao longo de um dia, ou de vários dias, semanas ou meses. Desconfio que tenha a ver com uma disponibilidade e uma demora que permitem que se vá estabelecendo uma intimidade entre cada um/a de nós e esses outros seres, transformando progressivamente uma eventual indiferença ou estranheza em curiosidade e deslumbramento crescentes. Trata-se portanto de aprofundar uma relação, um estar-com que não precisa de para-quês ou de comos, que se contenta com a magia dessa co-presença e que intui as diversas agências dos outros seres viventes no co-fazer do mundo. Invoco aqui o livro ‘A vida das plantas’ do filósofo Emanuele Coccia (citado no início deste post) onde o seu autor discorre sobre o desprezo a que as plantas foram votadas ao longo da história da filosofia, defendendo a necessidade de resgatar uma filosofia da natureza cosmológica e argumentando demoradamente sobre a relevância das plantas como ‘agentes culturais’, no sentido de criadoras-construtoras do mundo.



Sabemos que o que vemos do mundo é apenas uma fracção de uma realidade complexa e com múltiplas camadas, que é filtrada pelos nossos sentidos, mas também pelas nossas práticas desses sentidos, que são, por sua vez, influenciadas pelo nosso contexto cultural e social, pela nossa história de vida e visão do mundo. Mas por mais que a nossa percepção da realidade externa seja limitada ou condicionada isso não nos desresponsabiliza como agentes de co-criação de mundo. Como sugere a citação do livro ‘Vozes Vegetais’ no início deste post, podemos sempre participar num com-viver que aprofunda e cuida do entre-corpos, recusando e resistindo às histórias de separação e de excepcionalismo que, na sua miopia ou cegueira, semeiam destruição e injustiça. Precisamos por isso de resgatar os espaços e o tempo que nos restituam a capacidade de ver, de sentir, de empatizar – numa palavra, de nos reencantarmos - com o mundo-mais-do-que-humano, do qual somos parte integrante. E que melhor exemplo de mediação nesse processo que o da azinheira-caramanchão - ou outra planta (ou ser não-humano) que elejamos para ser noss@ companheir@?


Nota 1: o texto deste post teve por base os seguintes posts que escrevi para o blogue do Pedras’22: https://pedras22.wordpress.com/2022/06/03/demora-sob-a-azinheira-caramanchao-1/ ; https://pedras22.wordpress.com/2022/06/07/demora-sob-a-azinheira-caramanchao-2/; https://pedras22.wordpress.com/2022/06/17/demora-sob-a-azinheira-caramanchao-4-cegueira-botanica/

Nota 2: o processo de investigação-criação culminou com um evento para o festival Pedras’22 (Tarde no campo, 28 Jun), preparado em colaboração com a historiadora Teresa Castro e que incluiu um piquenique no pinhal, uma caminhada e uma conversa à sombra da azinheira-caramanchão – ver este post do blogue do festival.

Fotos: Álvaro e Marcin (ver fotos adicionais disponíveis nos posts citados na Nota 1)

domingo, 31 de julho de 2022

Época de incêndios: desvarios e milagres

Rescaldo do incêndio em Palmela (Jul 2022)
Há várias dezenas de anos prevíamos e denunciávamos publicamente que estávamos a transformar as nossas montanhas numa pira de óptimo material combustível, a que até um “iluminado” ministro [Mira Amaral] chamou o “petróleo verde” de Portugal. Realmente tem razão; [o eucalipto] arde tão bem ou melhor do que o petróleo. Jorge Paiva

El éxodo rural, los cambios socioeconómicos y el cambio climático facilitan una acumulación inmensa de combustible vegetal listo para arder con intensidades y velocidades nunca vistas. Antes vivíamos del bosque; ahora nos defendemos de él. Marc Castellnou e Alejandro García

No caso de Portugal, Espanha e França, 98% dos incêndios são precocemente extintos, mas os 2% restantes são responsáveis por 95,4% da área ardida. A conclusão é cortante como uma lâmina: para evitar incêndios devastadores nas condições especialmente hostis das alterações climáticas, a chave está no ordenamento e não no combate. Viriato Soromenho Marques

Um país cronicamente incapaz de prevenir fogos ao longo de décadas, vira-se agora com ferocidade contra a primeira vítima do fogo, a natureza, que por ser combustível e arder, tem que ser eliminada, mesmo que sejamos nós, incauta ou criminosamente, a atear 99 % dos fogos – se não houver vítima, não pode haver agressor ou agressão; se não houver combustível, não há combustão. Maria José Castro

À medida que o mundo rural da agricultura familiar se tornou o bastardo rejeitado por interesses económicos e políticos e o eucalipto se expandiu, os fogos tornaram-se, para alguns, uma lucrativa “indústria” de milhões. Maria Carolina Varela

Com a recente onda de calor, regressou o triste e trágico espectáculo mediático do flagelo dos incêndios, acompanhado do habitual rol de meios usados no ‘combate às chamas’, dos estragos directos (para os humanos) e dos hectares ardidos - quando, na verdade, os parâmetros mais relevantes para mostrar a real magnitude dos incêndios seriam a sua velocidade de propagação e a energia emitida (ver p.ex. aqui ou aqui). E por atacado vem a estupefação e consternação pelas tragédias humanas, que alimentam o sensacionalismo e voyeurismo doentios amplificados ad nauseam pelas TVs. Mas raramente leio ou ouço menção às espécies vegetais e animais perdidas ou à destruição de ecossistemas e aos anos que demorará a sua recuperação - se é que será possível... Timidamente, surgem menções à conexão entre as vagas de calor e a mudança climática (antropogénica), potenciadora do que já foi apelidado como o Piroceno (ver aqui ou aqui), mas muito poucas às causas profundas dos recorrentes mega-incêndios, como a calamitosa gestão do território florestal e rural pelos sucessivos governos (nacional ou locais) ou a trágica desertificação humana do interior. O título de um recente artigo de opinião no Público (‘Continuamos a apagar fogos’) deixou-me esperançoso, mas o seu conteúdo frustrou as minhas expectativas. Pelo contrário, o artigo da engenheira silvicultora aposentada Maria Carolina Varela no jornal i enumera os múltiplos interesses que beneficiam dos incêndios (indústria madeireira, celuloses e empresas de prevenção e combate) e desconstrói algumas das falácias mais recorrentes: os eucaliptais das celuloses não ardem, outras espécies florestais são igualmente pirófilas, os matos e o abandono do minifúndio disperso são os culpados. Diversas vozes vêm aliás alertando para a necessidade de apostar num mosaico florestal que evite as extensas monoculturas de pinheiro ou eucalipto – que muitos insistem perversamente em apelidar de ‘florestas’ (ver aqui ou aqui). Mas os poderosos interesses instalados, incluindo o lóbi das celuloses, conseguem cooptar académicos e especialistas que defendem o seu modelo de gestão florestal (ver p.ex. aqui). 

Em 2017, em artigo de opinião numa publicação digital sobre cultura (Comunidade Cultura e Arte), que permanece apenas disponível aqui, Pedro Santos discorria sobre os verdadeiros incendiários que opinam a partir das urbes – excertos: O fogo que arde em Lisboa, nas redações dos principais jornais, revistas e televisões do país, propaga-se na voz de gente que já não sai de Lisboa. Que não conhece o país. Que não tem qualquer ligação ou empatia com o modo de vida rural, com as suas práticas. Mas que dirige os principais meios de comunicação do país. (…) [Os incendiários que querem bodes expiatórios para culpar] São os mesmos que escarnecem das lutas de ambientalistas e ativistas. Que se riem de quem tenta falar contra os esquemas das barragens inúteis que vão destruir os nossos rios e encarecer a fatura da eletricidade; que se riram quando houve oposição ao fecho de linhas de caminho de ferro no Tua, no Corgo, no Tâmega, por esse Alentejo fora; que se riem quando se fala em Proteção da Natureza; que acham bem que se tenha acabado com Guardas Florestais e Guarda Rios; que ignoram as lutas contra a exploração de gás natural e petróleo; que propagam os mitos da agricultura intensiva, de um Alqueva em cada esquina ou de um fábrica de pasta de papel em cada região. O autor conclui que cabe aos cidadãos tomar nas suas mãos a responsabilidade de criar as condições para pôr fim à calamidade recorrente dos incêndios. Também em 2017 (ver aqui), António Dores destacou vários dos aspectos referidos atrás, assim como outros que refiro adiante, e, perante a incapacidade do Estado em lidar com as raízes do problema, defendia uma mudança de regime político baseada na auto-organização territorial das suas populações, enumerando algumas das diversas organizações da sociedade civil que, desde 2017, têm promovido iniciativas de reflorestação no território nacional (ver nota 1 no final do post).

Foto de capa do jornal Público de 16 Out 2017

Desvarios

Apesar dos apelos de organizações ambientalistas, quer em Portugal, quer em Espanha, a profundas mudanças nas políticas florestais (ver p.ex. aqui, aqui e aqui), o primeiro-ministro continua a enjeitar responsabilidades do governo na (má) gestão florestal, admitindo a incapacidade de resolver o problema dos incêndios e transferindo essa missão para os cidadãos. Fê-lo em 2017, garantindo que o país continuaria a arder (ver p.ex. aqui) - o que de facto tem acontecido! -, e voltou a reforçar este ano que a “responsabilidade de evitar a ocorrência de incêndios” é dos portugueses, tendo decretado estado de contingência com restrições de múltiplas actividades, mas reafirmando que o Estado não é “segurador universal” e não tem que compensar eventuais impactos negativos das medidas (ver p.ex. aqui). Pior ainda, os seus governos têm decretado medidas avulsas de eficácia duvidosa, nomeadamente: a cega ‘limpeza dos matos’ imputada aos proprietários, que resultou em aberrações de extermínio da biodiversidade vegetal e no agravamento da perda de humidade e da erosão dos solos (ver p.ex. artigo de opinião da professora universitária Maria José Castro); as reflorestações promovidas por grandes empresas, com critérios duvidosos na seleção das árvores plantadas; ou a recente proibição de usufruto de espaços florestais e de jardins(!), alegando que a presença de pessoas constitui risco de incêndio (ver p.ex. aqui)! É verdade que muitas ignições ocorrem por incúria, devido p.ex. a queimadas, mas a presença de pessoas naqueles espaços pode ajudar no alerta precoce, que evita que um fogo possa tomar proporções incontroláveis, não deixando também campo aberto aos incendiários que são responsáveis por muitas outras ignições.

Por outro lado, têm sido gastos milhões de euros na prevenção (lembram-se do tristemente famoso SIRESP?) e no combate aos incêndios (bombeiros e meios aéreos). É sempre mais simples (e menos arriscado) para os decisores políticos tentar mitigar os estragos do que actuar sobre as causas sistémicas - vê-se isso há anos na questão dos fogos e viu-se também na gestão da pandemia. É bom para a sua imagem e assim protegem os interesses instalados em vez de defender o verdadeiro interesse público. Nem mesmo o ‘presidente dos afectos’ consegue exercer uma eficaz magistratura de influência nesta matéria e, apesar de imparável nas suas deslocações e declarações, as suas boas intenções ficam-se pelas selfies e os abraços. Tudo isto é lamentável (mas não inesperado), tanto mais que vários indícios de corrupção ou de conluio criminoso têm vindo a lume, denunciados p.ex. em reportagens jornalísticas de 2017 e 2018 em Espanha e em Portugal (ver nota 2 no final do post). Em Espanha assiste-se também a uma intensificação deste flagelo e o mega-incêndio de Junho deste ano (2022) gerou pelo menos forte indignação social no país vizinho (ver aqui e aqui).

Cartoon de Vasco Gargalo (2017)

Milagres

Perante o esperado agravamento das alterações climáticas, que gerará mais ondas de calor potenciadoras de grandes incêndios, e a incapacidade ou irresponsabilidade dos poderes públicos de travar o flagelo, será que nos resta aguardar por algum milagre que nos salve da catástrofe iminente? Felizmente, esses ‘milagres’ já estão a acontecer. Para além das iniciativas citadas na nota 1 (no final), este ano já foi possível constatar os benefícios dos projectos de restauro de vegetação autóctone, como o da Associação BioLiving que funcionou como travão na progressão do incêndio de Estarreja no início do mês de Julho – ver aqui e aqui. De facto, para aquela associação este episódio demonstra claramente a importância da floresta nativa – as chamadas ‘árvores bombeiro’ – para a segurança das populações e a necessidade de uma gestão florestal pensada à escala do território e não da propriedade, evitando as grandes extensões de eucaliptal ininterrupto. 

Em 2018, escrevi um texto sobre um outro ‘milagre’ chamado Mata da Margaraça, que reproduzo a seguir para concluir este post. Faço notar que a complexidade desta questão não se limita às questões que abordei aqui e defendo (como muitos outros)  que seriam necessárias políticas públicas que promovessem uma gestão bem mais sustentada do território (ver p.ex. o artigo de opinião dos engenheiros florestais espanhóis Marc Castellnou e Alejandro García, já citado), fomentando p.ex. a fixação de populações no interior ou a plantação de bosque autóctone e de folhosas de crescimento lento ('árvores bombeiras', ver p.ex. aqui).

Mata da Margaraça: 2017 vs. 2018

O 'milagre' da Margaraça

‘Onde há vida, há esperança’ foi o título que dei a um post no qual comentei várias reflexões sobre os sentimentos antagónicos de esperança e de desespero que podem surgir perante as ameaças e os desastres ambientais que enfrentamos. Mal sabia que iria encontrar, passadas umas semanas, uma confirmação inesperada daquele aforismo. De facto, no início de Agosto (de 2018) percorri algumas das áreas do país mais afectadas pelos incêndios florestais de 2017, em particular a região de Arganil/Coja, que foi palco do segundo maior mega-incêndio jamais registado em Portugal (Outubro 2017) e que teve características únicas, nomeadamente o maior fenómeno piroconvectivo alguma vez observado na Europa e o maior do mundo em 2017 (ver aqui e aqui). Pude constatar que as encostas da serra do Açor em volta da aldeia da Benfeita tinham um aspecto verdadeiramente desolador, dominadas pelos troncos queimados dos pinheiros que cobriam grande parte daquele território, deixando exposto o solo - que só não estava despido porque a Primavera de 2018 foi chuvosa e fez despontar fetos e herbáceas que deram algum tom verde à paisagem. Havia no entanto alguns pequenos ‘oásis’ em certos vales encaixados e áreas limítrofes das povoações, onde algumas árvores e arbustos tinham escapado à fúria das chamas. Um daqueles vales encaixados cuja vegetação, constituída por árvores e arbustos autóctones, sobreviveu foi o da Barroca de Degraínhos, na zona da Fraga da Pena, embora as partes mais elevadas deste acidente geológico tenham sido muito afectadas pelo fogo. Mas um pouco mais acima, a seguir à aldeia de Pardieiros, encontrei aquilo a que se pode chamar um verdadeiro milagre: a Mata da Margaraça. Trata-se de uma área de paisagem florestal protegida de rara beleza, que tenho vindo a visitar há já vários anos, e que é constituída por uma floresta mista de folhosas (castanheiros, carvalhos, ulmeiros, vidoeiros, folhados, medronheiros, azereiros, cerejeiras, azevinhos, loureiros, aveleiras e salgueiros), constituindo uma relíquia das antigas florestas que cobriam algumas das encostas mais frondosas das nossas serras do interior (ver aqui ou aqui). Os primeiros relatos dos efeitos do mega-incêndio de Arganil fizeram-me temer o pior (ver p.ex. aqui) e já me tinha tentado preparar para o impacto de um cenário desolador - que foi o que encontrei ao longo da estrada, desde Coja, até lá chegar. Mas ao aproximar-me dos limites da Mata, o cenário dos troncos de pinheiro carbonizados foi sendo gradualmente substituído por árvores cobertas de folhagem verde, cuja intensidade e extensão contrastava fortemente com o tom escuro que predominava a toda a volta. A mancha da Mata Margaraça, apesar de algumas zonas periféricas queimadas, sobressaía como um verdadeiro oásis verde no meio do deserto de troncos queimados das encostas circundantes (ver fotos acima). De facto, cerca de 60% da Mata ficou quase intacta (ver p.ex. aqui) e, pela descrição dos técnicos do ICNF (que gere aquele área protegida), o fogo avassalador que a atravessou encontrou ali um foco de resistência à sua propagação, devido às características da folhagem e ao maior índice de humidade, como se não viu em qualquer outra área de igual extensão. Algo semelhante havia ocorrido ali aquando de outro grande incêndio que afectou aquela região em 1987.

Não há melhor prova da capacidade de resistência a um mega-incêndio de características excepcionais, como o de Outubro de 2017, do que uma verdadeira floresta como a Margaraça, quando comparada com as monoculturas de eucalipto e pinheiro que ainda cobrem grande parte do território do centro do país. Infelizmente, a predominância e insistência na plantação de eucalipto (ver p.ex. aqui ou aqui), a que não é alheia a pressão do lóbi das celuloses (ver p.ex. aqui), continua a ser motivo de grande consternação e desesperança. Creio que toda a gente deste país, em particular os jovens, deveria ir ver com os seus próprios olhos aquilo que testemunhei (ver p.ex. aqui). Essa visita devia ser mesmo obrigatória para os comentadores e especialistas que insistem em ludibriar a opinião pública, tentando escamotear os efeitos nefastos das plantações de eucaliptos que alimentam as celuloses (ver p.ex. aqui ou aqui). A Mata da Margaraça é um exemplo (vivo) de que onde existe vida na sua máxima diversidade e complexidade - bem adaptada ao território e bem gerida -, existe de facto esperança. Saibamos nós retirar as conclusões dos sucessivos flagelos dos incêndios florestais para podermos vislumbrar um futuro menos sombrio do que aquele que podemos vir a ter.

Nota 1

Iniciativas de reflorestação e projectos agroflorestais

- Rede Reflorestar Portugal: https://www.facebook.com/ReflorestarPortugal/

- Aliança pela Floresta Autóctone: http://florestautoctone.webnode.pt/

- APAGAR – Aliança Para Acabar com as vaGAs Recorrentes de Fogos:

http://www.campoaberto.pt/?p=1713010

- Terracrua (Permacultura e agrofloresta): http://terracrua.org/blog/floresta-mista-e-as-populacoes-locais/

- Projecto AFINET (Redes Regionais de Inovação Agroflorestal): https://www.tveuropa.pt/noticias/sistemas-agroflorestais-reduzem-risco-de-incendios/

Nota 2

Investigações jornalísticas e artigos sobre indícios de corrupção ou conluio criminoso (Portugal e Espanha):
O cartel do fogo ES (Set 2017) – ver aqui e aqui
(…) parece complicado relacionar las muertes de Pedrógão, y la superficie calcinada por incendios en Portugal y España en lo que va de año —118.000 hectáreas sólo en Portugal—, con otra causa que no sea la ineptitud política, los intereses de empresas locales o pequeños propietarios de tierras, la plantación descontrolada de eucalipto o los pirómanos. Sin embargo, todo apunta a que los fuegos que arrasan cada año la Península Ibérica se alimentan no sólo de oxígeno y madera, sino sobre todo de corrupción.
Reportagem TVI (Out 2017): https://tviplayer.iol.pt/programa/reporter-tvi/53c6b3483004dc006243bd77/episodio/t4e25
Artigos media PT:
http://visao.sapo.pt/actualidade/portugal/2017-07-25-Carteis-esquemas-e-estado-dos-helicopteros.-Os-negocios-do-fogo-revelados-nesta-entrevista
https://www.publico.pt/2017/09/04/sociedade/noticia/justica-portuguesa-investiga-ramo-portugues-do-cartel-do-fogo-1784152
http://www.jornaltornado.pt/cartel-do-fogo-ou-lobbies-dos-incendios/
Entrevista a Xabier Vázquez Pumariño (biólogo) sobre o lóbi florestal da Galiza (Out 2017):
http://www.lavanguardia.com/vida/20171019/432157474162/industria-fuego-galicia-xabier-vazquez-pumarino.html
A máfia do pinhal, investigação TVI (Abr 2018): https://tviplayer.iol.pt/programa/reporter-tvi/53c6b3483004dc006243bd77/episodio/t5e10
https://observador.pt/2018/04/13/incendio-que-consumiu-pinhal-de-leiria-foi-planeado-um-mes-antes/