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Rescaldo do incêndio em Palmela (Jul 2022) |
Há várias dezenas de anos prevíamos e denunciávamos
publicamente que estávamos a transformar as nossas montanhas numa pira de
óptimo material combustível, a que até um “iluminado” ministro [Mira Amaral] chamou
o “petróleo verde” de Portugal. Realmente tem razão; [o eucalipto] arde tão bem ou melhor do que o petróleo.
Jorge Paiva
El éxodo rural, los cambios
socioeconómicos y el cambio climático facilitan una acumulación inmensa de
combustible vegetal listo para arder con intensidades y velocidades nunca
vistas. Antes vivíamos del bosque; ahora nos defendemos de él. Marc Castellnou e Alejandro García
No caso de Portugal, Espanha e
França, 98% dos incêndios são precocemente extintos, mas os 2% restantes são
responsáveis por 95,4% da área ardida. A conclusão é cortante como uma lâmina:
para evitar incêndios devastadores nas condições especialmente hostis das
alterações climáticas, a chave está no ordenamento e não no combate. Viriato Soromenho Marques
Um país cronicamente incapaz de
prevenir fogos ao longo de décadas, vira-se agora com ferocidade contra a
primeira vítima do fogo, a natureza, que por ser combustível e arder, tem que
ser eliminada, mesmo que sejamos nós, incauta ou criminosamente, a atear 99 %
dos fogos – se não houver vítima, não pode haver agressor ou agressão; se não
houver combustível, não há combustão. Maria José Castro
À medida que o mundo rural da
agricultura familiar se tornou o bastardo rejeitado por interesses económicos e
políticos e o eucalipto se expandiu, os fogos tornaram-se, para alguns, uma
lucrativa “indústria” de milhões. Maria Carolina Varela
Com a recente onda de calor, regressou o triste e trágico espectáculo
mediático do flagelo dos incêndios, acompanhado do habitual rol de meios usados
no ‘combate às chamas’, dos estragos directos (para os humanos) e dos hectares
ardidos - quando, na verdade, os parâmetros mais relevantes para mostrar a real magnitude
dos incêndios seriam a sua velocidade de propagação e a energia emitida (ver p.ex.
aqui
ou aqui).
E por atacado vem a estupefação e consternação pelas tragédias humanas, que
alimentam o sensacionalismo e voyeurismo doentios amplificados ad nauseam pelas TVs. Mas raramente leio
ou ouço menção às espécies vegetais e animais perdidas ou à destruição de
ecossistemas e aos anos que demorará a sua recuperação - se é que será
possível... Timidamente, surgem menções à conexão entre as vagas de calor e a
mudança climática (antropogénica), potenciadora do que já foi apelidado como o Piroceno (ver aqui ou aqui), mas muito poucas às causas profundas dos recorrentes mega-incêndios, como a calamitosa
gestão do território florestal e rural pelos sucessivos governos (nacional ou
locais) ou a trágica desertificação humana do interior. O
título de um recente artigo de opinião no Público (‘Continuamos a apagar fogos’) deixou-me esperançoso,
mas o seu conteúdo frustrou as minhas expectativas. Pelo contrário, o artigo
da engenheira silvicultora aposentada Maria Carolina Varela no jornal i enumera
os múltiplos interesses que beneficiam dos incêndios (indústria madeireira,
celuloses e empresas de prevenção e combate) e desconstrói algumas das falácias
mais recorrentes: os eucaliptais das celuloses não ardem, outras espécies
florestais são igualmente pirófilas, os matos e o abandono do minifúndio
disperso são os culpados. Diversas vozes vêm aliás alertando para a necessidade
de apostar num mosaico florestal que evite as extensas monoculturas de pinheiro
ou eucalipto – que muitos insistem perversamente em apelidar de ‘florestas’
(ver aqui
ou aqui).
Mas os poderosos interesses instalados, incluindo o lóbi das celuloses,
conseguem cooptar académicos e especialistas que defendem o seu modelo de
gestão florestal (ver p.ex. aqui).
Em 2017, em artigo de opinião numa publicação digital sobre cultura (Comunidade
Cultura e Arte), que permanece apenas disponível aqui,
Pedro Santos discorria sobre os verdadeiros incendiários que opinam a partir das
urbes – excertos: O fogo que arde em
Lisboa, nas redações dos principais jornais, revistas e televisões do país,
propaga-se na voz de gente que já não sai de Lisboa. Que não conhece o país.
Que não tem qualquer ligação ou empatia com o modo de vida rural, com as suas
práticas. Mas que dirige os principais meios de comunicação do país. (…)
[Os incendiários que querem bodes expiatórios para culpar] São os mesmos que escarnecem das lutas de ambientalistas e ativistas.
Que se riem de quem tenta falar contra os esquemas das barragens inúteis que
vão destruir os nossos rios e encarecer a fatura da eletricidade; que se riram
quando houve oposição ao fecho de linhas de caminho de ferro no Tua, no Corgo,
no Tâmega, por esse Alentejo fora; que se riem quando se fala em Proteção da
Natureza; que acham bem que se tenha acabado com Guardas Florestais e Guarda
Rios; que ignoram as lutas contra a exploração de gás natural e petróleo; que
propagam os mitos da agricultura intensiva, de um Alqueva em cada esquina ou de
um fábrica de pasta de papel em cada região. O autor conclui que cabe aos
cidadãos tomar nas suas mãos a responsabilidade de criar as condições para pôr
fim à calamidade recorrente dos incêndios. Também em 2017 (ver aqui), António Dores destacou vários dos aspectos referidos atrás, assim como outros que refiro adiante, e,
perante a incapacidade do Estado em lidar com as raízes do problema, defendia uma
mudança de regime político baseada na auto-organização territorial das suas
populações, enumerando algumas das diversas organizações da sociedade civil
que, desde 2017, têm promovido iniciativas de reflorestação no território
nacional (ver nota 1 no final do post).
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Foto de capa do jornal Público de 16 Out 2017 |
Desvarios
Apesar dos apelos de organizações ambientalistas, quer em
Portugal, quer em Espanha, a profundas mudanças nas políticas florestais (ver
p.ex. aqui,
aqui
e aqui), o primeiro-ministro
continua a enjeitar responsabilidades do governo na (má) gestão florestal, admitindo
a incapacidade de resolver o problema dos incêndios e transferindo essa missão
para os cidadãos. Fê-lo em 2017, garantindo que o país continuaria a arder (ver
p.ex. aqui)
- o que de facto tem acontecido! -, e voltou a reforçar este ano que a “responsabilidade
de evitar a ocorrência de incêndios” é dos portugueses, tendo decretado estado
de contingência com restrições de múltiplas actividades, mas reafirmando que o
Estado não é “segurador universal” e não tem que compensar eventuais impactos
negativos das medidas (ver p.ex. aqui).
Pior ainda, os seus governos têm decretado medidas avulsas de eficácia duvidosa,
nomeadamente: a cega ‘limpeza dos matos’ imputada aos proprietários, que
resultou em aberrações de extermínio da biodiversidade vegetal e no agravamento
da perda de humidade e da erosão dos solos (ver p.ex. artigo de opinião
da professora universitária Maria
José Castro); as reflorestações promovidas por grandes empresas, com
critérios duvidosos na seleção das árvores plantadas; ou a recente proibição de
usufruto de espaços florestais e de jardins(!), alegando que a presença de
pessoas constitui risco de incêndio (ver p.ex. aqui)!
É verdade que muitas ignições ocorrem por incúria, devido p.ex. a queimadas,
mas a presença de pessoas naqueles espaços pode ajudar no alerta precoce, que
evita que um fogo possa tomar proporções incontroláveis, não deixando também campo
aberto aos incendiários que são responsáveis por muitas outras ignições.
Por
outro lado, têm sido gastos milhões de euros na prevenção (lembram-se do
tristemente famoso SIRESP?) e no combate aos incêndios (bombeiros e meios
aéreos). É sempre mais simples (e menos arriscado) para os decisores políticos
tentar mitigar os estragos do que actuar sobre as causas sistémicas - vê-se
isso há anos na questão dos fogos e viu-se também na gestão da pandemia. É bom
para a sua imagem e assim protegem os interesses instalados em vez de defender o
verdadeiro interesse público. Nem mesmo o ‘presidente dos afectos’ consegue
exercer uma eficaz magistratura de influência nesta matéria e, apesar de
imparável nas suas deslocações e declarações, as suas boas intenções ficam-se
pelas selfies e os abraços. Tudo isto é lamentável (mas não inesperado), tanto
mais que vários indícios de corrupção ou de conluio criminoso têm vindo a lume,
denunciados p.ex. em reportagens jornalísticas de 2017 e 2018 em Espanha e em
Portugal (ver nota 2 no final do post). Em Espanha assiste-se também a uma
intensificação deste flagelo e o mega-incêndio de Junho deste ano (2022) gerou pelo menos forte indignação
social no país vizinho (ver aqui
e aqui).
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Cartoon de Vasco Gargalo (2017) |
Milagres
Perante o esperado agravamento das alterações climáticas,
que gerará mais ondas de calor potenciadoras de grandes incêndios, e a incapacidade ou irresponsabilidade dos
poderes públicos de travar o flagelo, será que nos resta aguardar por algum milagre que nos salve da catástrofe
iminente? Felizmente, esses ‘milagres’ já estão a acontecer. Para além das
iniciativas citadas na nota 1 (no final), este ano já foi possível constatar os
benefícios dos projectos de restauro de vegetação autóctone, como o da
Associação BioLiving que funcionou como travão na progressão do incêndio de
Estarreja no início do mês de Julho – ver aqui
e aqui.
De facto, para aquela associação este episódio demonstra claramente a
importância da floresta nativa – as chamadas ‘árvores bombeiro’ – para a
segurança das populações e a necessidade de uma gestão florestal pensada à
escala do território e não da propriedade, evitando as grandes extensões de
eucaliptal ininterrupto.
Em 2018, escrevi um texto sobre um outro ‘milagre’ chamado Mata da Margaraça, que
reproduzo a seguir para concluir este post. Faço notar que a complexidade desta questão não se limita às questões que abordei aqui e defendo (como muitos outros) que seriam necessárias políticas públicas que promovessem uma gestão bem mais sustentada do território (ver p.ex. o artigo de opinião dos engenheiros florestais espanhóis Marc Castellnou e Alejandro García, já citado), fomentando p.ex. a fixação de populações no interior ou a plantação de bosque autóctone e de folhosas de crescimento lento ('árvores bombeiras', ver p.ex. aqui).
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Mata da Margaraça: 2017 vs. 2018 |
O 'milagre' da Margaraça
‘Onde há vida, há esperança’ foi o título que dei a um post
no qual comentei várias reflexões sobre os sentimentos antagónicos de esperança
e de desespero que podem surgir perante as ameaças e os desastres ambientais
que enfrentamos. Mal sabia que iria encontrar, passadas umas semanas, uma
confirmação inesperada daquele aforismo. De facto, no início de Agosto (de 2018) percorri
algumas das áreas do país mais afectadas pelos incêndios florestais de 2017, em
particular a região de Arganil/Coja, que foi palco do segundo maior mega-incêndio
jamais registado em Portugal (Outubro 2017) e que teve características únicas, nomeadamente o
maior fenómeno piroconvectivo alguma vez observado na Europa e o maior do mundo
em 2017 (ver aqui
e aqui).
Pude constatar que as encostas da serra do Açor em volta da aldeia da Benfeita
tinham um aspecto verdadeiramente desolador, dominadas pelos troncos queimados
dos pinheiros que cobriam grande parte daquele território, deixando exposto o
solo - que só não estava despido porque a Primavera de 2018 foi chuvosa e fez
despontar fetos e herbáceas que deram algum tom verde à paisagem. Havia no
entanto alguns pequenos ‘oásis’ em certos vales encaixados e áreas limítrofes
das povoações, onde algumas árvores e arbustos tinham escapado à fúria das
chamas. Um daqueles vales encaixados cuja vegetação, constituída por árvores e
arbustos autóctones, sobreviveu foi o da Barroca de Degraínhos, na zona da
Fraga da Pena, embora as partes mais elevadas deste acidente geológico tenham
sido muito afectadas pelo fogo. Mas um pouco mais acima, a seguir à aldeia de
Pardieiros, encontrei aquilo a que se pode chamar um verdadeiro milagre: a Mata
da Margaraça. Trata-se de uma área de paisagem florestal protegida de rara
beleza, que tenho vindo a visitar há já vários anos, e que é constituída por uma
floresta mista de folhosas (castanheiros, carvalhos, ulmeiros, vidoeiros, folhados,
medronheiros, azereiros, cerejeiras, azevinhos, loureiros, aveleiras e
salgueiros), constituindo uma relíquia das antigas florestas que cobriam
algumas das encostas mais frondosas das nossas serras do interior (ver aqui
ou aqui).
Os primeiros relatos dos efeitos do mega-incêndio de Arganil fizeram-me temer o
pior (ver p.ex. aqui)
e já me tinha tentado preparar para o impacto de um cenário desolador - que foi
o que encontrei ao longo da estrada, desde Coja, até lá chegar. Mas ao aproximar-me dos limites da Mata, o
cenário dos troncos de pinheiro carbonizados foi sendo gradualmente substituído
por árvores cobertas de folhagem verde, cuja intensidade e extensão contrastava
fortemente com o tom escuro que predominava a toda a volta. A mancha da Mata
Margaraça, apesar de algumas zonas periféricas queimadas, sobressaía como um verdadeiro
oásis verde no meio do deserto de troncos queimados das encostas circundantes
(ver fotos acima). De facto, cerca de 60% da Mata ficou quase intacta (ver
p.ex. aqui)
e, pela descrição dos técnicos do ICNF (que gere aquele área protegida), o fogo
avassalador que a atravessou encontrou ali um foco de resistência à sua
propagação, devido às características da folhagem e ao maior índice de
humidade, como se não viu em qualquer outra área de igual extensão. Algo semelhante
havia ocorrido ali aquando de outro grande incêndio que afectou aquela região
em 1987.
Não há melhor prova da capacidade de resistência a um mega-incêndio de
características excepcionais, como o de Outubro de 2017, do que uma verdadeira floresta como a Margaraça,
quando comparada com as monoculturas de eucalipto e pinheiro que ainda cobrem
grande parte do território do centro do país. Infelizmente, a predominância e
insistência na plantação de eucalipto (ver p.ex. aqui
ou aqui),
a que não é alheia a pressão do lóbi das celuloses (ver p.ex. aqui),
continua a ser motivo de grande consternação e desesperança. Creio que toda a
gente deste país, em particular os jovens, deveria ir ver com os seus próprios
olhos aquilo que testemunhei (ver p.ex. aqui). Essa
visita devia ser mesmo obrigatória para os comentadores e especialistas que
insistem em ludibriar a opinião pública, tentando escamotear os efeitos
nefastos das plantações de eucaliptos que alimentam as celuloses (ver p.ex. aqui
ou aqui).
A Mata da Margaraça é um exemplo (vivo) de que onde existe vida na sua máxima
diversidade e complexidade - bem adaptada ao território e bem gerida -, existe de facto esperança. Saibamos nós retirar as
conclusões dos sucessivos flagelos dos incêndios florestais para podermos vislumbrar um
futuro menos sombrio do que aquele que podemos vir a ter.
Nota 1
Iniciativas de reflorestação e projectos agroflorestais
- Rede Reflorestar Portugal: https://www.facebook.com/ReflorestarPortugal/
- Aliança pela Floresta Autóctone: http://florestautoctone.webnode.pt/
- APAGAR – Aliança Para Acabar com as vaGAs Recorrentes de
Fogos:
http://www.campoaberto.pt/?p=1713010
- Terracrua (Permacultura e agrofloresta): http://terracrua.org/blog/floresta-mista-e-as-populacoes-locais/
- Projecto AFINET (Redes Regionais de Inovação Agroflorestal):
https://www.tveuropa.pt/noticias/sistemas-agroflorestais-reduzem-risco-de-incendios/
Nota 2