Windigo, Norval Morriseau (1964) |
Born of our fears and our failings, Windigo is the name for that within us which cares more for its own survival than for anything else. (…) It is the Windigo way that tricks us into believing that belongings will fill our hunger, when it is belonging that we crave. Robin Wall Kimmerer
We have to remember that we are living under a spell, and this spell is destroying our worlds. It’s time to cast another spell, to call other worlds into being, to conjure other worlds within this world. Natasha Myers
If wetiko exists, it is because it exists within us. (...) once we are in the mode of seeing wetiko, we can hack the cultural systems that perpetuate its logic. Alnoor Ladha & Martin King
Uma das autoras que invoca o mito de Windigo é a professora de biologia ambiental e cidadã da Nação Potawatomi, Robin Wall Kimmerer, no seu livro “Braiding Sweetgrass” (2013). ‘Windigo footprints’ e ‘Defeating Windigo’ são os títulos de dois capítulos do livro que descrevem a figura da mitologia dos povos originários, assim como as metáforas a ela associadas. Kimmerer sugere paralelismos com o pensamento ecológico e realça a importância das histórias tradicionais na transmissão de valores éticos: “Born of our fears and our failings, Windigo is the name for that within us which cares more for its own survival than for anything else. In terms of systems science, the Windigo is a case study of a positive feedback loop, in which a change in one entity promotes a similar change in another, connected part of the system. In this case, an increase in Windigo hunger causes an increase in Windigo eating, and that increased eating promotes only more rampant hunger in an eventual frenzy of uncontrolled consumption. In the natural as well as the built environment, positive feedback leads inexorably to change - sometimes to growth, sometimes to destruction. When growth is unbalanced, however, you can’t always tell the difference. Stable, balanced systems are typified by negative feedback loops, in which a change in one component incites an opposite change in another, so they balance each other out. When hunger causes increased eating, eating causes decreased hunger; satiety is possible. Negative feedback is a form of reciprocity, a coupling of forces that create balance and sustainability. Windigo stories sought to encourage negative feedback loops in the minds of listeners.” A autora estabelece também uma ponte com o sistema económico dominante, baseado na depredação e na ganância: “Maybe we’ve all been banished to lonely corners by our obsession with private property. We’ve accepted banishment even from ourselves when we spend our beautiful, utterly singular lives on making more money, to buy more things that feed but never satisfy. It is the Windigo way that tricks us into believing that belongings will fill our hunger, when it is belonging that we crave. On a grander scale, too, we seem to be living in an era of Windigo economics of fabricated demand and compulsive overconsumption. What Native peoples once sought to rein in, we are now asked to unleash in a systematic policy of sanctioned greed.”
Um autor que expande drasticamente o conceito de Windigo (Wetiko) para o de uma doença civilizacional é o poeta e ensaísta nativo americano Jack D. Forbes (professor de Estudos Nativos Americanos na Universidade da Califórnia, falecido em 2011) no seu livro “Columbus and Other Cannibals: The Wétiko Disease of Exploitation, Imperialism, and Terrorism”, publicado originalmente em 1978 - existe uma tradução portuguesa do livro publicada pela Antígona em 1998. Nele o autor, para além de uma abordagem da história colonial europeia sob o prisma das culturas nativas americanas, invoca o conceito de Wetiko para estabelecer paralelismos com processos históricos e culturais noutras partes do mundo que resultaram igualmente na destruição de modos de vida e de habitats naturais. Escreve Forbes: “Os imperialistas, violadores e espoliadores não são propriamente pessoas que se perderam por caminhos errados. São dementes e vis no exacto sentido que têm estas palavras. São pessoas enfermas do ponto de vista mental, e o que é trágico é que a forma assumida por esta patologia espiritual revela-se infecciosa e alastra.” O autor atribui várias características normalizadas nas sociedades ocidentais, como a agressão, a violência, a arrogância, a ganância, a gula, a escravidão, o terrorismo, o genocídio e o consumo da vida e das posses de outras criaturas, a uma psicose Wetiko – “doença espiritual com um vector físico” - que ele apelida de canibalismo, considerando-a “a maior epidemia conhecida pelo ser humano”. Forbes alerta para o facto de que “aqueles que ascendem [numa cultura wetiko] são, ou tornam-se, wetiko, e apenas perpetuam o sistema de corrupção ou opressão”. Forbes estabelece ainda um vínculo entre a luta pela libertação em relação àqueles que exploram a Terra e os seus povos, e as lutas pela autodeterminação e pela auto-realização. À psicose Wetiko Forbes contrapõe a ideia de parentesco, ou o que os navajos apelidam de k'é. O parentesco apela a sentimentos positivos e apego aos outros, não apenas em relação à própria família ou grupo tribal, mas também a todos os seres animados, às plantas, bem como rios e ao planeta em geral. Forbes defende que há um poder de cura na terra e um forte sentimento de enraizamento e pertencimento que vem com tais práticas de parentesco.
Um outro autor que invoca Forbes e descreve Wetiko simultaneamente como doença mental (que ele apelida de ‘malignant egophrenia’) e como doença cultural ou psicose colectiva, que conduziu ao actual estado do mundo, é Paul Levy no seu livro de 2013 “Dispelling Wetiko: Breaking the curse of evil” (ver também aqui). Influenciado pela psicologia jungiana, Levy equipara wetiko a uma doença viral que transmite as características da ganância, da voracidade e da violência, e que promove e é estimulada por uma cultura com as mesmas características. Operando dissimuladamente através dos pontos cegos da psique humana, o vírus wetiko torna as pessoas inconscientes da sua própria condição, obrigando-as a agir contra os seus próprios interesses. Também Levy amplia o conceito para englobar situações específicas do mundo - como a destruição da floresta amazónica por uma miríade de corporações multinacionais, ou a criação das chamadas ‘sementes exterminadoras’ pelas corporações agro-alimentares na sua ambição de controlar a produção de alimentos - encarando-as como encenações na vida real, tanto literal quanto simbolicamente, daquele processo interior autodestrutivo. A outra manifestação da epidemia, segundo Levy, é o sistema económico e financeiro global que ele descreve como “maleficent psycho-pathology getting down to business” e que designa por ‘wetikonomy’: “A economia global (…) exibe a lógica linear da doença wetiko baseada no medo, uma vez que reduz tudo a dólares e cêntimos. Vivemos dentro de uma estrutura económica horrível e abstrata que em si é um símbolo vivo e representação da insanidade fora de controlo do vírus wetiko. O sistema financeiro global é um dos vetores e caminhos mais rápidos através dos quais o vírus wetiko está a converter-se numa pandemia por todo o mundo.” Recorrendo ao conceito jungiano de sombra, a verdadeira cura para wetiko, na perspectiva de Levy, é uma mudança radical na autoconsciência e um discernimento de que “não há lugar para nos refugiarmos, excepto na verdadeira natureza do nosso ser”. O resultado seria um novo tipo de lógica que reconhece que a interdependência, a totalidade ilimitada e a unidade de todas as coisas constituem a estrutura de um novo paradigma que nos liberta da velha história da civilização industrial e representa o término do nosso vínculo com a psicose coletiva. Esconjurar e curar wetiko é portanto torná-lo visível, expô-lo, desconstruí-lo, promovendo a auto-consciência, a lucidez e o espírito crítico.
Windigo, Norval Morriseau |
Na mesma linha de pensamento e bebendo das ideias de Forbes e Levy, Alnoor Ladha e Martin Kirk identificam, quer o colonialismo, quer o capitalismo, como formas duma mesma cultura wetiko de raíz europeia, num artigo para a revista Kosmos: “Seeing Wetiko: On Capitalism, Mind Viruses, and Antidotes for a World in Transition” (2016). Os autores começam por invocar a memética, equiparando os memes a vírus culturais com poder de replicação, assim como as ideias de diversas tradições espirituais e de cosmovisões indígenas da natureza mental da criação e das chamadas formas-pensamento (‘thought-forms’), tomando wetiko como exemplo. Ladha e Kirk alegam que esta figura da mitologia ameríndia constitui uma metáfora poderosa para compreender as raízes da actual policrise global. Citando Forbes, atribuem primeiramente o genocídio das populações ameríndias pelos colonizadores europeus a uma manifestação da sua cultura wetiko: “os seus actos hediondos foram decretados com uma certeza moral racionalizando a destruição em nome do 'progresso' e da 'civilização'. Esse enquadramento dissimula a extensão da infecção wetiko na cultura invasora. Eles estavam tão cegos pela sua convicção auto-referencial que não conseguiam ver a vida do outro como sendo tão importante quanto a sua.” Defendem também que a cultura wetiko tem raízes europeias: “a epidemiologia de wetiko deixou claros indicadores da sua linhagem. E embora não possa ser patologizada segundo linhas geográficas ou raciais, a estirpe cultural que conhecemos hoje tem certamente muitas das suas raízes mais profundas na Europa. Afinal, foram os projetos europeus – do Iluminismo à Revolução Industrial, ao colonialismo, ao imperialismo e à escravatura – que desenvolveram a tecnologia que abriu os canais que facilitaram a disseminação da cultura wetiko em todo o mundo. Desta forma, somos todos herdeiros do colonialismo wetiko.” Estendem depois esta análise ao capitalismo moderno que reúne duas facetas marcantes da cultura wetiko – a insaciabilidade e a frieza – e ao qual atribuem a designação dada por Levy de ‘wetikonomy’. Entre as caracteríticas desta 'wetikonomy', destacam: “A sua voracidade por recursos finitos; o seu desprezo pela dor dos grupos e culturas que consome; a sua crença no consumo como salvação; a sua obsessão dominante com o seu próprio crescimento material; e a sua disseminação viral pela superfície do planeta.” Os autores defendem ainda que, como qualquer sistema complexo, a cultura wetiko transmite-se e autoperpetua-se no espaço e no tempo: “as elites do poder auto-organizam os recursos para manter um elevado grau de continuidade nas distribuições de poder, garantindo que essas distribuições servem eficientemente a sua sobrevivência e crescimento. Quando essa continuidade é interrompida ou destruída, ocorrem revoluções e o sistema fica ameaçado.” Segundo os autores, o segredo para a perpetuação do capitalismo (como sistema wetiko) é a sua natureza adaptativa e a forma como dissimula a sua lógica operativa, impedindo que seja ameaçado: “primeiro, significa inserir a lógica nas regras profundas que regem o todo. Não apenas esta ou aquela economia nacional, este ou aquele governo, mas o sistema-mãe – o sistema operativo global. E segundo, significa fazer com que essas regras pareçam tão intratáveis e inevitáveis quanto possível. Então, qual é essa lógica profunda do sistema operativo global? Tem duas componentes. Primeiro, há o propósito final, que poderíamos designar por Primeira Diretriz, que é simplesmente aumentar o capital, como o termo capitalismo implica. [validado como meio para alcançar o progresso] (...) Depois, há a lógica de como nós, os componentes vivos desse sistema, devemos comportar-nos, que resumiríamos no seguinte epíteto: O egoísmo é racional e a racionalidade é tudo; portanto, o egoísmo é tudo.” Finalmente, os autores propõem (tal como Levy) que o antídoto para a infecção e cultura wetiko está inscrito na sua própria natureza: “Uma lição fundamental da teoria dos memes é que, quando estamos conscientes dos vírus meméticos, é menos provável que adiramos a eles cegamente. A percepção consciente é como a luz do sol através das frestas de uma janela. Assim, um dos pontos de partida para a cura é o simples acto de descortinar wetiko em nós mesmos, nos outros e na nossa infraestrutura cultural. E uma vez que vemos, podemos nomear, o que é crítico porque as palavras e a linguagem são um campo de batalha central.” Ladha e Kirk alertam ainda para os estratagemas de cooptação do capitalismo que desvirtuaram projectos reformistas, como a economia da partilha ou o micro-crédito, e propõem: “uma vez que estamos no modo de descortinar wetiko, podemos desconstruir os sistemas culturais que perpetuam a sua lógica. Não é difícil descobrir por onde começar. Seguir o dinheiro ['follow the money'] pode geralmente levar-nos aos pilares centrais da maquinaria wetiko.”
Norval Morriseau |
Tal como estes dois últimos autores, creio que o conceito de Windigo/Wetiko pode realmente ajudar-nos a desvelar aspectos importantes do actual sistema-mundo, desequilibrado e destrutivo, contribuindo ao mesmo tempo para encontrar caminhos para mitigar a profunda crise civilizacional que atravessamos. Destaco por um lado, o carácter epidémico da nefasta cultura dominante e dos valores a ela associados (típicos da infecção wetiko) e, por outro, a sua natureza dissimulada, que torna difícil a sua identificação e cura. Reconhecendo as suas características, os sintomas tornam-se mais fáceis de detectar. Entre numerosos exemplos retratados por diferentes autores, poderia citar: a natureza abusiva e violenta da civilização dominante descrita amiúde por Derrick Jensen (p.ex. aqui); a insanidade das elites globais denunciada por Douglas Rushkoff (ver aqui ou aqui); a recente epidemia de narcisismo e egocentrismo descrita por Jean Twenge (ver aqui ou aqui); a 'era da hubris' relatada por Sean van der Lee (aqui); ou a epidemia de ganância exposta por Alison Richards (aqui). Como afirmam os diversos autores que citei anteriormente neste post, a cura ou esconjuração da pandemia de Windigo/Wetiko é possível, mas vai requerer um grande investimento de auto-conhecimento e de (auto-)consciência ('awareness'), assim como uma conjugação de esforços e de vontades em processos simpoiéticos de co-criação (ver aqui). Essa é, por exemplo, a proposta da antropóloga cultural canadiana Natasha Myers no seu manifesto “How to grow livable worlds” (2018), de onde retirei uma das citações que abre este post.