A palavra
apocalipse sugere comummente cenários de calamidade e de ‘fim do mundo’. No
entanto, a palavra grega original significa revelação (literalmente, remover o
véu) e, por exemplo, no contexto bíblico é usada com esse mesmo sentido – o
Livro do Apocalipse é também chamado o Livro da Revelação. E é neste sentido
que eu a invoco aqui, para alegar que esta pandemia da Covid-19 e o microscópico vírus que a
causa vieram, não só tornar visíveis uma série de realidades sociais e
económicas que permaneciam invisíveis para muitas pessoas, mas também mostrar
possíveis caminhos para lidar com elas. Esta mesma acepção foi invocada por John
Naughton num artigo recente onde cita o historiador Frank Snowden (autor de ‘Epidemics
and Society’) que defende que as epidemias funcionam como um espelho para os
seres humanos, revelando não só a sua relação com a vida e a morte, mas também
aquelas que estabelecemos uns com os outros.
Uma das
realidades evidenciadas pelo novo coronavírus e a epidemia que originou é a
facilidade e velocidade com que a transmissão pessoa a pessoa se propaga – por
um lado, nas grandes cidades superpovoadas, como aconteceu no seu início na
cidade chinesa de Wuhan e acontece agora um pouco por todo o mundo, e, por
outro, na sua dispersão por diferentes países, dada a movimentação permanente
de pessoas entre destinos globais, facilitada pela acessibilidade e abundância
de voos internacionais. Estes dois factos estão, por sua vez, directamente
ligados a duas características do modelo de desenvolvimento dominante nas
sociedades modernas: por um lado, a urbanização crescente que levou milhões de
pessoas a migrarem dos ambientes rurais para as cidades, e por outro, a
globalização e desregulação associada aos modelos económicos baseados no
crescimento e no consumo que geraram uma mobilidade de pessoas e bens entre
países inaudita e promoveram uma indústria turística massificada alimentada
pela competição feroz entre companhias aéreas, em particular as ‘low cost’. Estes
modos de vida em sociedade e de organizar a economia devem ser repensados pois estão a revelar as suas
limitações e fragilidades, quer em termos do bem-estar que proporcionam, quer em
termos de sustentabilidade.
Outra
revelação operada pela pandemia é o facto das nossas sociedades desenvolvidas
não estarem afinal preparadas para lidar com um fenómeno que não é novo (o número de
epidemias tem vindo a crescer nas últimas décadas, em particular o das zoonóticas
– transmitidas a partir de animais) e cuja probabilidade de acontecer é
considerável. Os avisos tinham sido lançados e havia simulações e relatórios
com propostas de planos de acção e medidas estratégicas (ver p.ex. aqui ou
aqui). Apesar disso, a coordenação internacional funcionou apenas parcialmente
e o tipo e ‘timing’ das medidas tomadas tem sido desigual em diferentes países (ver p.ex. aqui).
Por um lado, os sistemas de saúde têm limites de carga que dependem dos modelos
de gestão de risco, mas também das políticas públicas de saúde de cada país. A
coordenação internacional é importante, mas está também dependente das
iniciativas de cada país, do grau de transparência na troca de informações e da fiabilidade destas (ver p.ex. aqui). Tem
vindo igualmente a tornar-se claro que as políticas de contenção de despesa
pública e de austeridade em vários países fragilizaram os seus sistemas de
saúde (ver p.ex. aqui).
Um outro
aspecto que se está a tornar evidente prende-se com os impactos económicos e
sociais das medidas de contenção e mitigação da epidemia, que levaram inúmeros
países a decretar confinamentos generalizados dos seus cidadãos, provocando a
interrupção brusca de uma série de actividades económicas não essenciais, mas
das quais dependiam as performances das economias de cada país (ver p.ex. aqui). O turismo
massificado foi apenas uma delas. Por outro lado, o abrandamento da actividade
económica está a ter impactos positivos a nível ambiental e mostra a ligação
directa entre o actual metabolismo económico excessivo e a crise ecológica
(como referi num post anterior). Mas aquela interrupção está a causar
repercussões económicas negativas, em maior ou menor grau (fala-se já de uma
eventual recessão ou depressão económica), que afectam desde os pequenos
negócios locais, às pequenas e médias empresas, a grandes empresas nacionais e
multinacionais (excepto as empresas alimentares e as plataformas digitais), às
empresas ligadas ao turismo (aviação, hotelaria, restauração, etc.), até aos
mercados financeiros (ver p.ex. aqui). Aquelas repercussões são uma clara demonstração da
insustentabilidade e fragilidade do sistema económico global. As respostas dos
diferentes governos à ameaça duma recessão têm sido menos desiguais e vão desde
os ‘bail outs’ pelos bancos centrais, a pacotes de ajuda financeira a empresas
e famílias, com maior ou menor sensibilidade social (ver p.ex. aqui). Um outro impacto negativo está
a ocorrer ao nível da perda de empregos, de rendimentos do trabalho e de
protecção social, cuja intensidade varia de país para país, mas que afectam
sempre em maior escala as faixas da população mais desfavorecidas. A possibilidade de fortes rupturas sociais está no horizonte (ver p.ex. aqui).
Mas estes
dois últimos aspectos estão também ligados ou foram intensificados pelo tipo de
opções políticas adoptadas por muitas democracias ocidentais, que se basearam
por sua vez em modelos económicos ditos neoliberais e mercantilistas, que
sacrificaram o bem comum, o bem-estar social e a sustentabilidade ambiental no
altar dos lucros (das grandes corporações ou das instituições financeiras) e
das disciplinas orçamentais. Como referi atrás, os próprios serviços de saúde públicos ficaram
fragilizados e com meios reduzidos por cortes orçamentais promovidos pela
aplicação de políticas neoliberais economicistas ou austeritárias.
Um outro
aspecto revelador da pandemia da Covid-19 é a forma como lidamos com a nossa
própria mortalidade e o medo que ela gera, empolado pela excessiva cobertura
mediática. Aqui revela-se, como em quase todas as situações de excepção, o
melhor e o pior da condição humana. Por um lado, as reacções egoístas da defesa
individual, com açambarcamento de alimentos, bens de consumo ou de protecção, e
por outro, as atitudes altruístas de inúmeras pessoas no apoio mútuo e na
dedicação incondicional dos profissionais de saúde e de outros trabalhadores de
áreas essenciais. Mas o medo – do vírus ameaçador, da doença, da morte, do
outro (que nos pode contaminar) – tem sido o sentimento predominante (já
aludido num post anterior, em que citei textos de José Gil e Manuel Loff). Esse
sentimento tem sido exacerbado pela narrativa bélica que invadiu quase todos os
discursos públicos, desde a OMS (que apelidou o vírus de ‘inimigo público #1’),
aos políticos e governantes de quase todos os países, até aos media e às redes
sociais (ver p.ex. aqui). Essa narrativa é contraproducente, pouco clarificadora
e não promove as respostas mais construtivas. A atribuição de uma intenção perversa
ao vírus é uma projecção moralista e antropomórfica completamente irracional e
despropositada. É uma clara demonstração da nossa ignorância sobre a natureza e
da forma disfuncional como nos relacionamos com ela (ver p.ex. aqui). Não admira pois que
estejamos a atravessar uma crise ecológica sem precedentes. Por
outro lado e como alerta Carlota Houart (estudante de mestrado no CES/Univ.
Coimbra) num post recente, aquela narrativa também influencia a forma como
respondemos à pandemia e como poderemos viver no pós-pandemia. Houart defende
que o vírus nos pode servir de guia, tentando perceber o que podemos aprender
com ele, reflexão que é partilhada por José Tolentino de Mendonça num outro
artigo recente. Para além da necessidade de adoptar estratégias de
decrescimento económico nos países mais ricos para mitigar a crise climática e
ecológica, as respostas à Covid-19 estão a mostrar como as pessoas se conseguem
mobilizar colectivamente e mudar os seus hábitos quotidianos para enfrentar uma
ameaça à sua própria segurança. Resta saber se conseguiremos prolongar essas
mudanças e transpô-las para níveis mais profundos de mudança estrutural e política como
resposta a essa outra ameaça existencial que é a crise ecológica global (ver também aqui). Tanto Houart
como Tolentino de Mendonça, defendem ainda que na resposta à pandemia tem sido
a ética do cuidado, da solidariedade e do apoio mútuo a proporcionar as
respostas mais adequadas e não as narrativas da confrontação e do medo, e que aquelas
são igualmente válidas para uma resposta eficaz à emergência climática e
ecológica. Aquela autora chama ainda a atenção para as ligações, com bases
científicas, entre a destruição ambiental e a origem de epidemias zoonóticas, como
a actual pandemia (ver p.ex. aqui ou aqui). Conclui que “não podemos esperar que a
Humanidade seja realmente saudável num planeta doente” e que “é fundamental
transformarmos a narrativa em torno do coronavírus, distanciando-nos daquela
que se baseia no medo, na guerra ou no ódio, e escolhendo pelo contrário aquela
que se baseia no amor, na solidariedade, na comunidade, na confiança e na
regeneração. Podemos não saber como esta crise irá evoluir nem o que o futuro
nos reserva, mas sabemos intuitivamente que o caminho da partilha, da
compreensão e do cuidado é o melhor…”
Termino com
uma citação de um excelente artigo de opinião da professora de filosofia
italiana Elettra Stimilli: “(…) no interior das casas onde estamos reclusos, obrigados
a racionar as relações sociais, podemos cuidar colectivamente dos nossos medos,
transformá-los e fazer ouvir, finalmente, as nossas vozes.” Esperemos pois que
as revelações proporcionadas por esta pandemia nos ajudem a tomar consciência da
insustentabilidade dos modos de vida de muitos, assim como do sistema sócio-económico
dominante que afinal beneficia poucos, e a perceber a necessidade de mudarmos de rumo
e de promover mudanças radicais. Mas será igualmente indispensável que o
distanciamento social imposto pelas medidas adoptadas por sucessivos governos
não seja substituído por uma euforia consumista e alienante que nos iniba de voltarmos a reunir-nos para encontrarmos colectivamente os caminhos de coragem
e de perseverança para um futuro mais justo e sustentável que sabemos ser
possível, mas que não será alcançado se voltarmos simplesmente àquilo que
tomávamos por normalidade.