segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Rejeitar a guerra para defender a paz

A paz constrói-se com a paz, eliminando a guerra da história da humanidade. Ser a favor da paz é fundamental, mas não é suficiente. (…) Acima de tudo, temos de ser contra a guerra”. Carta aberta ‘Pela rejeição total da guerra’ (Agora des Habitants de la Terre)

a paz hoje não tem acolhimento, porque os ventos sopram no sentido da guerra”. Manuel Pinto

A publicação recente de uma missiva que apela ao repúdio cabal da guerra (ver adiante) levou-me a regressar ao tema que me tem atormentado o espírito desde há meses, aliado a uma necessidade de exorcizar os sentimentos de angústia e de frustração que tantas vezes ameaçam paralisar-me. O espectro da(s) guerra(s) continua a empestar o ar – e ainda mais intensamente do que quando escrevi o post sobre as guerras perpétuas em Março deste ano (onde denunciei a hipocrisia e a desfaçatez das elites que as promovem, bem como as suas manobras de propaganda). Soam de novo os tambores da guerra: anuncia-se a Terceira Guerra Mundial, a Guerra Total, o Apocalipse e o Armagedão – ver p.ex. aqui ou aqui!... Como se não tivéssemos já ameaças existenciais suficientes para nos desassossegar e tirar o sono... A funesta e insistente narrativa mediática sobre as guerras eminentes ou em curso (NATO vs. Rússia, Médio Oriente, EUA vs. China) ameaça não só normalizar a sua perpetuação, como procura legitimar despudoradamente a sua alegada inevitabilidade e a crescente militarização (como já tinha denunciado no meu post de Março). Por outro lado, oculta outras que passam quase desapercebidas aos olhares do mundo, como a guerra mortífera no Sudão – ver p.ex. aqui. Mesmo aquilo que eu achava que era um linha vermelha que a humanidade do século XX tinha decidido que nunca voltaria a ultrapassar – um conflito nuclear – voltou a ser invocado por políticos de diferentes quadrantes ideológicos e geografias, assim como por jornalistas dos media dominantes (mas não só) – ver aqui, aqui ou aqui. Um dos componentes da narrativa deplorável de alguns governantes ocidentais para legitimar o seu belicismo e os gastos militares tem sido a repetição do axioma (ou seus derivados), com origem num autor do Império Romano, Si vis pacem, para bellum – “se queres a paz, prepara-te para a guerra” – ver p.ex. aqui ou aqui –, habilmente desconstruído por Manuel Pinto num artigo com o título “Se queres a guerra, despreza a paz” (mas também na carta aberta que analiso mais abaixo), onde o autor associa aquela retórica à tentativa de justificar a canalização de fundos públicos para os orçamentos militares e para as empresas de armamento.


No caso das incursões militares em curso na Palestina e no Líbano (e que ameaçam alastrar ainda mais), perpetradas pelo governo sionista de Bibi Netanyahu e com o conluio dos EUA e de diversos países europeus, o consenso no apoio (quase) incondicional à actuação impune de Israel foi conseguido nos EUA por pressões vindas de sectores religiosos conservadores (evangélicos ou cristãos sionistas), como a CUFI (‘Christians United for Israel’) – ver p.ex. aqui –, ou de grupos de lóbi israelitas, como o AIPAC (‘American Israel Public Affairs Committee’) – ver p.ex. aqui – ou a ‘Voices of Israel’ – ver p.ex. aqui. O primeiro caso é especialmente revelador e foi denunciado no documentário “Praying for Armageddon” da realizadora norueguesa Tonje Hessen Schei, em colaboração com o norte-americano Michael Rowley – é possível assistir às duas partes do documentário que foi exibido pela Al Jazeera: aqui e aqui. As revelações mais significativas são, por um lado, a marcada influência da corrente evangélica mais fundamentalista na política externa norte-americana, em particular, por parte dos Republicanos (incluindo o ex-presidente Donald Trump), e, por outro, a sua argumentação no apoio incondicional a Israel baseada numa leitura literal da Bíblia que alega que nos aproximamos do Armagedão e da 2ª vinda de Jesus, eventos nos quais Israel e a presença dos judeus na cidade de Jerusalém teriam um papel central. O fundamentalismo religioso que o Ocidente atribui aos países muçulmanos, e em particular ao Irão, e que usa como pretexto para apoiar o belicismo mortífero de Israel e do seu governo radical, está afinal profundamente enraizado na sociedade americana e reflecte-se de forma evidente e chocante na política externa dos EUA para o Médio Oriente, independentemente da filiação política da administração vigente. A irracionalidade do fundamentalismo religioso está portanto também a desvirtuar por dentro os “valores ocidentais” do direito à paz, à auto-determinação e à liberdade.


Esta tese é igualmente invocada pelo jornalista argentino Alberto López Girondo no seu artigo “Apocalipsis (Bíblico) Now”. O autor começa por citar o livro “The Age of Extremes” (1994) do historiador (marxista) britânico Eric Hobsbawm, onde este analisa os conflitos militares entre 1914 e 1991 como espelhos das pretensões incontroladas de poder e dominação das nações beligerantes, estimuladas pelos modelos económicos antagónicos, mas igualmente expansionistas, do capitalismo e do socialismo de Estado: “Por que razão, então, as principais potências de ambos as facções consideraram a Primeira Guerra Mundial como um conflito no qual só se podia contemplar a vitória ou a derrota total? A razão é que, ao contrário de outras guerras anteriores, impulsionadas por motivos limitados e concretos, a Primeira Guerra Mundial, perseguia objectivos ilimitados. Na era imperialista, produziu-se a fusão da política e da economia. A rivalidade política internacional estabeleceu-se em função do crescimento e da competitividade da economia, mas o elemento característico era precisamente o de não ter limites”. Para López Girondo (com base nas teses de Hobsbawn), é a situação actual de tensão crescente de domínio imperialista (e económico) entre o bloco EUA/Europa (NATO) e o bloco Rússia/China que está na origem dos conflitos militares em curso, onde a submissão e a violência se sobrepõem a qualquer possibilidade de conciliação. O autor questiona-se então: “Quão loucos são os líderes do primeiro quartel do século XXI? Até que ponto estariam dispostos ao ‘tudo ou nada’ para manter a supremacia? Quão racionalmente poderiam agir quando na sociedade da nação mais poderosa – embora em declínio – existem grupos cada vez mais numerosos e influentes que não temem o Armagedão, mas muito pelo contrário: procuram-no com uma fé religiosa, desesperada por começar um novo mundo melhor, para acabar com o Mal na Terra?” López Girondo invoca, sucessivamente, o plano clandestino chamado “The Armageddon Plan” desenhado por Dick Cheney e Donald Rumsfeld durante a administração Reagan para garantir a continuidade da governação na eventualidade de uma ataque militar de grande dimensão (p.ex. um ataque nuclear), o ressurgimento da ameaça nuclear após o início da guerra na Ucrânia em 2022 (e o discurso de Joe Biden onde este afirmou que o mundo está no nível mais próximo do Armagedão desde a Crise dos mísseis de Cuba) e ainda a tese fundamentalista evangélica do Armagedão e da ‘guerra justa’ para justificar o apoio dos EUA ao estado de Israel na sua fúria vingativa e genocida contra os palestinos em Gaza (a que me referi acima). López Girondo cita o crítico de cinema Matthew Carey que comenta o documentário “Praying for Armageddon” (aqui): “Imaginem não só acreditar que o mundo está a chegar ao fim, mas também querer que isso aconteça. Ardentemente. Então, dêem um passo mais e imaginem pessoas com esta mentalidade a projetar a política e as relações externas americanas para alcançar exatamente aquilo que procuram: o apocalipse”. O jornalista argentino relembra então as acusações de fundamentalismo religioso usadas no Ocidente para condenar as acções militares terroristas, em especial de grupos ou países muçulmanos, e confronta-as com o fundamentalismo dos evangélicos americanos que invocam leituras literais da Bíblia para justificar ‘guerras santas’ apocalípticas, mas também com a lei aprovada pelo Knesset em 2018 que designa Israel como “o Estado-nação do povo judeu, no qual exercem o seu direito natural, religioso e histórico à autodeterminação”, acrescentando que este direito à autodeterminação é “exclusivo do povo judeu”. Finalmente, López Girondo refere-se aos sucessivos avanços e recuos nas negociações dos tratados de não proliferação nuclear ou de redução de armas estratégicas, assim como ao belicismo expresso por dirigentes ocidentais que invocam o axioma romano (que citei acima) para justificar a guerra por procuração contra a Rússia, culminando com a impensável ameaça dos preparativos para um conflito nuclear entre os eixos EUA-Europa e Rússia-China num futuro próximo.


Felizmente, ainda vão surgindo vozes sensatas que se revoltam contra estas posturas belicistas, doentias e distópicas, e que me dão algum alento. Aconteceu recentemente quando me cruzei com uma carta aberta intitulada “Pour le refus intégral de la guerre” (“Pela rejeição total da guerra”, versão PT aqui), publicada pela associação internacional “Agora des Habitants de la Terre” (colectivo que se pugna pela justiça social, pela defesa dos direitos humanos, pela democracia participativa, por um outro desenvolvimento sustentável e pela cidadania global) e subscrita por um conjunto de cidadãos europeus. Recomendo, pelo menos, a leitura do texto introdutório, de onde destaco o seguinte excerto: “Toda a gente diz que é a favor da paz, mas nem toda a gente é contra a guerra. Acima de tudo, temos de ser contra a guerra. Porque é que temos de ser contra a guerra? Porque temos de abandonar a ideia de que, se queremos a paz, temos de nos preparar para a guerra, que sempre foi inventada e imposta pelos detentores do poder para justificar e manter o seu poder e o seu domínio. A guerra é destruição, morte e ódio. Não existe uma «guerra justa» em nome de Deus, da nação, da civilização ou da segurança. Por detrás da invocação destes nomes, está sobretudo a lógica assassina da dominação e os interesses económicos de poder e riqueza dos mais fortes.” Achei particularmente relevante a visão sistémica que lhe está subjacente, patente em parte da argumentação que traça paralelos entre as posturas bélicas do Ocidente e a defesa do modelo socioeconómico dominante, como por exemplo neste trecho: “Como é que se pode eliminar a guerra? Através da audácia e da fraternidade. (...) É uma ilusão pensar que é possível construir a paz sem abolir as patentes de apropriação privada para fins lucrativos, sem proibir as licenças de comércio de armas, sem [abolir] os paraísos fiscais, sem eliminar a independência dos mercados financeiros, sem regular as grandes oligarquias planetárias em guerra permanente pelo domínio. Os cidadãos devem libertar-se desta ilusão.” A carta prossegue com a enunciação de quatro reflexões sobre o futuro, que aprofundam a argumentação a favor da mobilização contra a guerra. A primeira defende que a principal narrativa que importa combater é a da instrumentalização da guerra ao serviço da paz, em particular a da “guerra defensiva”: dos ‘valores ocidentais’, do ‘mundo livre’, da ‘economia de mercado livre’. É com esta narrativa que se tentam legitimar a corrida aos armamentos, o comércio internacional de armas e a inflação dos orçamentos militares, mas também as atrocidades sobre populações inteiras. Para inverter esta realidade, a carta propõe ilegalizar os tratados internacionais de alianças militares e reformar as Nações Unidas, em particular o Conselho de Segurança para torná-lo eficaz – algo que foi reafirmado agora com a aprovação do Pacto para o Futuro, na semana passada na sede da ONU (ver p.ex. aqui ou aqui).


A segunda reflexão é, a meu ver, especialmente relevante pois sustenta que a mobilização contra a guerra deve ser claramente conduzida com o objetivo de fazer compreender a absoluta inutilidade da guerra e, no contexto actual, a irreparabilidade das destruições provocadas pela guerra, nomeadamente no domínio da vida. Defende que a luta “contra a guerra” deve ter dois objectivos prioritários interdependentes, que são hoje desvalorizados ou desprezados: a efectivação do direito universal à vida para todos e da vida como tal; a salvaguarda e a promoção dos bens comuns mundiais, materiais e imateriais, essenciais à vida. Nesta reflexão relembram-se os diversos tratados internacionais firmados desde a 2ª Guerra Mundial no âmbito das Nações Unidas (como o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas à Autodeterminação e ao Autogoverno ou da Declaração sobre a Biodiversidade) que, apesar de não terem conseguido impedir as piores violações, permitiram, até aos anos 80, o funcionamento e o desenvolvimento do sistema mundial, apesar das suas limitações, insuficiências e contradições, da Guerra Fria e de numerosas guerras locais (ligadas ao processo de demolição dos impérios coloniais europeus), mas sem uma terceira guerra mundial. De facto, o mundo assistiu a uma redução do ritmo de crescimento das desigualdades entre países ricos e pobres, o que contribuiu para reduzir o impacto das forças geradoras de conflitos estruturais e, consequentemente, de guerras destrutivas. No entanto, a partir daí, com o desmoronar da União Soviética e os processos de multinacionalização e globalização da economia e das finanças, de acordo com os princípios, objectivos e mecanismos violentos da economia de mercado e do neoliberalismo, o sistema mundial viu explodir as suas contradições, insuficiências e fragilidades, com o recrudescimento de novos conflitos armados entre, ou promovidos por, superpotências imperialistas.


A terceira reflexão sustenta que, uma vez que a mobilização contra a guerra envolve lutas pela reconstrução planetária dos dois pilares já enunciados (direito à vida e bens comuns mundiais), esta deve centrar-se em dois objectivos: a abolição das patentes para fins privados e lucrativos; e a ilegalização da finança predatória. Defende que, em condições marcadas por uma profunda crise do sistema de suporte de vida da Terra, será necessário agir globalmente para “desarmar a tecnologia da conquista da vida” (ou seja, as patentes) e, ao mesmo tempo, “ilegalizar as finanças predatórias” (que se traduzem na transformação de todas as formas de vida em activos financeiros).

A quarta reflexão é dedicada em particular ao genocídio dos palestinianos em Gaza por Israel e defende a condenação cabal e a cessação de qualquer acto de genocídio, encarado como negação total da vida e da justiça. O texto sustenta que pôr cobro ao genocídio não é apenas uma questão de fazer cumprir o direito internacional; “é, acima de tudo, uma questão de responsabilidade humana e ética planetária que incumbe a todos os sujeitos da Humanidade, incluindo as comunidades sociais, culturais e morais do mundo.

Em forma de conclusão, a carta enfatiza que não serão as corporações industriais, tecnológicas e financeiras internacionais ou instituições como o Banco Mundial, o FMI, a União Europeia ou a NATO, que poderão evitar ou impedir uma “Terceira Guerra Mundial”. Isso só será possível numa acção conjunta dos cidadãos indignados de todo o mundo – ver apelo do cientista político italiano Ricardo Petrella a propósito desta carta aberta. São ainda apresentados alguns exemplos de soluções concretas, em complemento ou para reforçar as propostas já formuladas, a aplicar nos domínios da vida, da sua salvaguarda, promoção/proteção, dos direitos e bens comuns, e na promoção das condições necessárias e indispensáveis à construção da paz. É possível subscrever a carta aberta através deste link.


Quanto a mobilizações e manifestações internacionais, destaco a “Terceira Marcha Mundial pela Paz e a Não-Violência”, que partirá de São José da Costa Rica já no dia 2 de Outubro de 2024 para lá regressar no dia 5 de janeiro de 2025, após dar a volta ao mundo. O roteiro passará pela Europa no mês de Novembro. O manifesto pode ser lido aqui. Por outro lado, este fim-de-semana (28-29 Set) houve dois eventos anti-guerra nos EUA, um em Washington DC (“Rage against the war machine”) e outro em Kingston NY (“Peace & Freedom Rally”). Recomendo esta entrevista ao jornalista do The Grayzone e activista anti-guerra Max Blumenthal onde ele realça a importância de dar voz aos protestos contra a guerra num contexto de grande tensão internacional e de ameaça de um conflito nuclear, assim como de descredibilização das contestações e repressão contra a liberdade de expressão.


Não posso ainda deixar de referir-me às diligências internacionais mediadas pelas Nações Unidas no sentido de denunciar e procurar travar os conflitos em curso, em particular nos recentes eventos da Cimeira do Futuro* e da 79ª Assembleia Geral (UNGA79)**, que tiveram lugar na sede da ONU – ver aqui. Lamentavelmente, várias resoluções do Conselho de Segurança (bem como as condenações do Tribunal Penal Internacional) não tiveram impacto na contenção dos conflitos na Ucrânia, no Médio Oriente ou no Sudão, em parte pela recusa das partes beligerantes (ou dos países que as apoiam militarmente) de acordar num cessar-fogo ou numa solução negociada. A maioria dos discursos dos governantes presentes na UNGA79** incluiu pois, quase invariavelmente, referências aos conflitos em curso, em alguns casos com condenações veementes da incapacidade ou ausência de vontade dos beligerantes de cessar as hostilidades e as matanças – ver p.ex. aqui ou aqui. Já o analista de política internacional William Patton defendeu, num recente artigo de opinião, que o Pacto para o Futuro que resultou da Cimeira do Futuro deve ser analisado criticamente, mas que as reacções de cinismo ou de apatia perante a sua antecipada inconsequência são contraproducentes. Em vez disso, Patton defende que: “devemos responsabilizar os nossos líderes pelas suas promessas, especialmente no que diz respeito à reforma há muito esperada do Conselho de Segurança da ONU, que poderá pôr fim a muitas das nossas guerras e fazer avançar a humanidade.


Embora tenha criticado anteriormente neste blogue os discursos do Secretário-geral da ONU, António Guterres, pelo seu tom dramático que contrasta com a sua flagrante inconsequência, não posso deixar de louvar a sua perseverança em não se deixar vencer pelos sucessivos desaires com que se têm deparado as causas que tem defendido, bem como pela forma corajosa com que tem defendido os princípios e as pessoas da instituição que lidera. No discurso de abertura da UNGA79 (24 Set), Guterres criticou o nível de impunidade “politicamente indefensável e moralmente intolerável” praticado por “um número crescente de Governos” em todo o mundo, desde o Médio Oriente até ao “coração da Europa” ou no Corno de África, tendo traçado um cenário sombrio do mundo actual, que está “num estado insustentável”, onde “guerras acontecem sem nenhum vislumbre de como terminarão” e a “postura nuclear e novas armas lançam uma sombra escura” sobre o planeta. Guterres criticou com veemência a impunidade dos dirigentes que violam os direitos humanos e as normas do direito internacional: “Eles podem atropelar o direito internacional. Podem violar a Carta das Nações Unidas. Podem fechar os olhos a convenções internacionais de direitos humanos ou decisões de tribunais internacionais. Podem fazer pouco caso do direito internacional humanitário. Podem invadir outro país, devastar sociedades inteiras ou desconsiderar completamente o bem-estar do seu próprio povo. E nada vai acontecer”. Sobre Gaza, afirmou, “é um pesadelo ininterrupto que ameaça levar toda a região com ele”; e sobre os ataques recentes de Israel: “Deveríamos todos ficar alarmados com a escalada. O Líbano está à beira do abismo. O povo do Líbano – o povo de Israel – e o povo do mundo – não se podem dar ao luxo de que o Líbano se torne outra Gaza”. Já na sessão comemorativa do Dia Internacional para a Eliminação Total das Armas Nucleares, Guterres afirmou que “Desde o auge da Guerra Fria que o espectro das armas nucleares não lançava uma sombra tão negra. A belicosidade nuclear atingiu um nível febril. Ouvimos até ameaças de usar uma arma nuclear” e que os Estados “devem parar de jogar com o futuro da humanidade”. Embora tenha admitido que “as normas estabelecidas sobre a disseminação de armas nucleares estão a ser desgastadas”, Guterres salientou que a Cimeira do Futuro e o resultante Pacto para o Futuro produziram um novo compromisso global para revitalizar o regime de desarmamento global. Para o bem das gerações futuras, reforçou: “O momento para a eliminação total das armas nucleares é agora”.


Seja como for, parece-me que temos de deixar de apelidar parte da elite do poder internacional de ‘líderes mundiais’ e passar a chamar-lhes o que realmente são, ou seja, um bando de belicistas e sociopatas totalmente desprovidos de empatia em relação à restante humanidade, presente e futura – motivados por desejos de poder ou por ganhos financeiros de curto prazo! Esta minoria demencial, que deveria ser desmascarada (de forma não enviesada!) por uma imprensa realmente livre e com sentido ético (por ora, diversos media digitais independentes, alguns dos quais listei no meu post de Março, ainda vão fazendo esse trabalho), parece achar que sobreviverá a uma guerra generalizada ou a um holocausto nuclear. Isto não é mera ficção científica ou teoria de conspiração: alguns CEOs, bilionários e ‘celebridades’ têm comprado propriedades em lugares remotos ou ilhas isoladas, enquanto outros pretendem refugiar-se nos bunkers que têm mandado construir para esse efeito – ver p.ex. aqui ou aqui! A perspectiva de ser apenas esta gente a sobreviver a um holocausto nuclear ou outro evento apocalíptico é verdadeiramente deprimente. Melhor seria que algum bilionário igualmente desvairado os convencesse a todos a embarcarem na primeira nave espacial para Marte e que ficassem lá para sempre!


Como afirmou Tom Engelhardt num artigo que citei no meu post de Março: “a humanidade está agora em guerra contra si própria… (…) [conseguimos] criar uma forma devastadoramente rápida [guerra nuclear] e outra espetacularmente lenta [alterações climáticas] de nos auto-destruirmos (e a tantas outras coisas).(…) graças em parte à nossa incapacidade de travar as guerras entre nós, parece estarmos a querer assegurar que as alterações climáticas não serão o foco total da nossa atenção como deveriam ser.” No entanto, ao usar “a humanidade” como sujeito abstracto e universal o autor está a incorrer numa grave imprecisão que oculta o facto fulcral de que os principais responsáveis por essa dupla guerra são na verdade uma pequena minoria sociopata e extremista dessa mesma humanidade.


Como se interroga Viriato Soromenho Marques num artigo de opinião recente: “A maioria esmagadora dos cidadãos no Ocidente recusam o suicídio. Como é possível que os nossos Governos e Parlamentos deixem a questão da vida ou morte dos povos do Ocidente entregue a incendiários aprendizes de Dr. Strangelove, como Stoltenberg? As portas do inferno já estão abertas. Vamos em frente?” A este convite só podemos responder com um liminar NÃO! E para além de uma postura de resistência e de rejeição firme da guerra e da militarização, devemos pugnar por uma sociedade e uma visão de mundo que não criem as condições para o recurso aos conflitos armados para resolver disputas por territórios e pelos bens comuns, tal como defende o texto da carta aberta que citei acima. Reproduzo o excerto final: “A luta anti-guerra é a luta dos justos, é a luta ética pela vida. É a reafirmação do primado do espiritual e da luta para regenerar a Terra, para tornar os desertos mais verdes, para devolver o oxigénio aos oceanos, para praticar a fraternidade, para viver a amizade; numa palavra, para devolver a alegria e o amor à vida.

Notas:
É possível assistir aos vídeos das sessões na sede da ONU através das seguintes playlists:
* Cimeira do Futuro (Summit of the Future): aqui 
** 79ª Assembleia Geral da ONU (UNGA79): aqui
Da primeira, seleccionei a intervenção de Niria Alicia Garcia (Youth Native American Representative): aqui.
Da segunda, seleccionei duas intervenções: a da primeira-ministra de Barbados, Mia Amor Mottley (aqui) e a do presidente da Colômbia, Gustavo Petro (aqui).


sábado, 27 de julho de 2024

Respigos de Primavera #3: Equívocos e lacunas no debate sobre imigração

Quem for contra a imigração é contra o desenvolvimento do país. Álvaro Mendonça e Moura (presidente da CAP)

Sem imigrantes a economia entrava em colapso. Francisco Assis (deputado do PS e ex-presidente do Conselho Económico e Social)

Em Portugal não há imigrantes a mais, há um problema de regularização de imigrantes e de acolhimento de imigrantes. Mariana Mortágua (dirigente do BE)


Tenho-me cruzado com vários escritos e tomadas de posição recentes sobre o tema da imigração em Portugal e lido muitas afirmações peremptórias que me deixaram incomodado ou perplexo. Sei que o assunto é complexo e que este tipo de afirmações já vem de há uns anos a esta parte – ver p.ex. aqui. Mas parece-me que existem vários mal-entendidos, contradições e mesmo alguma hipocrisia, com vieses ideológicos à mistura, nas abordagens ao tema. Uma daquelas afirmações, repetida por pessoas de diferentes sectores e cores políticas, é a de que ‘Portugal precisa de imigrantes’ ou, na sua versão ainda mais discutível, de que ‘a economia nacional colapsaria sem imigrantes’. A nuance entre os afiliados com a esquerda ou com a direita é que os primeiros defendem de forma mais veemente a legalização dos imigrantes, assim como salários justos e condições de trabalho e de vida dignos. No entanto, nem sempre apontam o dedo ao contexto económico e político que, não só não previne, como até promove, o oportunismo dos empregadores que se aproveitam da precariedade e fragilidade dos trabalhadores estrangeiros, pagando-lhes salários de miséria e não lhes oferecendo condições de trabalho dignas. Mas mais do que isso, não tenho encontrado reflexões mais aprofundadas sobre as consequências socioeconómicas e culturais da imigração precária a médio-longo prazo, ou sobre as suas causas profundas, nem análises que ponham em causa explicitamente o modelo de negócio dos empregadores, frequentemente mercantilista e neoliberal. Também não tenho encontrado nos debates sobre imigração quem questione a (in)sustentabilidade ambiental e socioeconómica dos sectores de actividade que empregam maioritariamente imigrantes, como a agricultura, a construção ou o turismo, e que necessitariam de profundas transformações. Em contraponto, tenho ouvido as crescentes investidas de sectores da chamada ‘extrema-direita’ que usam os imigrantes como bode expiatório para todos os males sociais ou económicos de que a sociedade portuguesa padece, recusando explicações menos simplistas como o oportunismo económico e a incompetência ou desfaçatez política, nomeadamente dos governantes do centrão que se revezam no poder há décadas e que são cúmplices ou fantoches do poder económico que beneficia da mão-de-obra precária.


Como exemplo do primeiro tipo de afirmações, recorro a artigos ou entrevistas recentes no jornal Público. Um deles (aqui) cita declarações do presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), Álvaro Mendonça e Moura, que afirmou taxativamente que “É muito importante percebermos todos que quem for contra a imigração é contra o desenvolvimento do país. Isto precisa de ser interiorizado”, tendo destacado a importância dos trabalhadores estrangeiros para sectores como a agricultura, turismo ou construção, que dependem desta mão-de-obra “para a sua sobrevivência”. O presidente da CAP defendeu ainda que se evitem populismos, nomeadamente a ideia de que Portugal poderia prescindir destes trabalhadores, o que disse ser “um disparate com gravíssimas implicações económicas”. Sobre as condições de trabalho e de vida dos imigrantes a laborar no sector agrícola, Mendonça e Moura defendeu que sejam contratados “em boa e devida forma”, com contratos de trabalho, e que os trabalhadores estrangeiros sejam “devidamente integrados, com condições de vida dignas e com respeito pelos seus direitos”. Já sobre o oportunismo e a falta de ética dos empregadores (e sub-contratadores) que exploram a mão-de-obra barata para maximizar os lucros, nada disse! O mesmo artigo refere ainda que Mendonça e Moura criticou aquilo que afirma (demagogicamente) “ser um «extremismo ambiental» que não aceita a agricultura e que gostaria que toda a paisagem fosse «um sítio de lazer para o citadino ir uma vez por ano», vincando que não se pode fazer uma dissociação entre sustentabilidade ambiental, social e económica.” Claro que em relação ao modelo de agricultura praticado por muitos empregadores, em particular no Alentejo, esse sim verdadeiramente extremista, quer ambiental- quer socialmente, o presidente da CAP nada diz – escrevi sobre este tema aqui.


Curiosamente, no mesmo dia, o redator principal do Público, Manuel Carvalho, escreveu um artigo de opinião onde denuncia a hipocrisia e indiferença no debate sobre a imigração, afirmando: “A imigração tornou-se assim objecto de reacções a quente, emocionais, por vezes sectárias. Não devia ser preciso um incêndio, um dislate de um político ou uma agressão bárbara para que nos obrigássemos a reflectir sobre as condições em que vive uma parte importante dos que nos procuram para viver e trabalhar. (…) Se essas pessoas são vítimas de racismo, a prova está na indiferença com que a sociedade portuguesa assiste à sua exclusão. Pode ser por causa de um sentimento de impotência, pelo egoísmo de dispor de serviços baratos ou por simples alheamento, mas a imigração recente deu lugar à banalização do abuso e à instituição da ilegalidade.” Estranhamente, não se refere às declarações do presidente da CAP, publicadas nesse mesmo dia… Carvalho defende ainda que: “Se a indiferença é pecado dos cidadãos, a responsabilidade do que está a acontecer é principalmente do Estado. A ideia onírica de abrir as portas a imigrantes sem acautelar as condições para os legalizar, acolher, encaminhar e proteger foi um crime contra o país e contra as pessoas.” Concordo com a denúncia da indiferença dos cidadãos e da negligência de entidades públicas e decisores políticos, mas faltou claramente apontar o dedo à falta de escrúpulos e ao oportunismo dos empregadores. O autor conclui assim: “Ficámos reféns do extremismo racista da direita ou do relativismo hipócrita da esquerda. O primeiro, um instrumento ideológico, o segundo, uma falácia porque, como escreveu Francisco Mendes da Silva [advogado e comentador], «a imigração é mesmo a única matéria em que a esquerda portuguesa é a favor da desregulação ultraliberal dos mercados».” Concordo em parte com esta última afirmação, como desenvolverei mais à frente, mas, mais uma vez, isentam-se os empregadores oportunistas e sem escrúpulos de culpas no cartório. Também não senti um questionamento do sistema económico que supostamente depende da mão-de-obra imigrante para a sua sobrevivência. Lamentavelmente, a afinidade de Manuel Carvalho pelo modelo agrícola industrial desenvolvido por grandes sociedades, multinacionais ou fundos de investimento internacionais, ‘baseado em tecnologia e ciência’ e que alega ser sustentável, mas que se alimenta da mão-de-obra barata e da devastação ambiental, tinha ficado patente em anteriores artigos seus, onde defende (sem espírito crítico) aquelas práticas agrícolas, apelidando-as de ‘revolução silenciosa’ (aqui) e de serem o ‘lado sexy’ da agricultura nacional (aqui)!


Numa entrevista recente, Francisco Assis, actual deputado (e ex-eurodeputado) do PS, e ex-presidente do Conselho Económico e Social, assume uma postura semelhante à de Mendonça e Moura: “A Europa precisa de imigrantes e Portugal precisa de imigrantes. Fui presidente do Conselho Económico e Social durante os últimos três anos e meio. E vi, variadíssimas vezes, os representantes nas reuniões da concertação social, os presidentes das confederações empresariais, da indústria, do turismo, do comércio e serviços da agricultura, apelar ao governo para que o governo fosse tomando providências no sentido de garantir a vinda mais fácil de imigrantes para Portugal, sob pena de alguns sectores da nossa actividade económica, pura e simplesmente entrarem em colapso.” Para além da sustentabilidade dos sectores de actividade nomeados, Assis menciona ainda a necessidade de compensar o que apelida de ‘recuo demográfico’, como justificação para a imprescindibilidade da imigração. Mais adiante afirma: “a ideia de que nós vamos agora aqui escolher os imigrantes é completamente absurda. A ideia de que nós precisamos de imigrantes altamente qualificados… é bom que venham pessoas altamente qualificadas, mas a verdade é que não é essa a preocupação fundamental dos nossos agentes económicos. Eles precisam de pessoas para trabalhar na indústria, pessoas para trabalhar nos restaurantes, nos cafés, nos hotéis, para trabalhar nas explorações agrícolas.” Assis não põe assim em causa a conduta oportunista dos ‘agentes económicos’ daqueles sectores de actividade, referindo-se antes à necessidade de legalizar e de proporcionar condições dignas para os trabalhadores estrangeiros, além de criticar os argumentos falaciosos da extrema-direita sobre os imigrantes.


Num artigo de opinião, a economista Susana Peralta, invocou igualmente os argumentos do colapso de sectores-chave da economia e da reversão do declínio populacional para justificar a necessidade de acolher trabalhadores imigrantes, citando dados de um relatório do Observatório das Migrações do final de 2023. Mas a sua análise foca-se principalmente na denúncia das várias debilidades do apoio social aos imigrantes que não lhes garante as condições dignas para viverem e trabalharem, destacando a precariedade das associações de apoio aos imigrantes e a burocracia das entidades públicas, assim como as redes de tráfico de mão-de-obra e a falta de habitações dignas e acessíveis. Peralta afirma: “A falta de meios das organizações causa-me bastante perplexidade porque a dignidade dos imigrantes devia ser uma prioridade absoluta das nossas políticas públicas… (…) os imigrantes estão expostos a maior precariedade, relações laborais mais instáveis, salários mais baixos e maior sinistralidade em setores como a construção civil, hotelaria e restauração, serviço doméstico: outra ótima razão para deixar as organizações de apoio continuarem o seu trabalho.” A validade destes argumentos é confirmada por notícias mais recentes - ver p.ex. aqui. A autora denuncia ainda as bandeiras típicas do discurso xenófobo e anti-imigração, exemplificadas pela moção “Portugal precisa de mais portugueses” apresentada na convenção nacional do Chega. No entanto, Peralta não faz menção ao carácter mercantilista e oportunista dos empregadores dos sectores que empregam mão-de-obra pouco qualificada, nem questiona a nossa aposta e consequente dependência daqueles sectores de actividade económica ou a ineficácia (ou inexistência) da sua regulação ou fiscalização. Talvez não seja de espantar a ausência de um questionamento mais explícito do modelo económico neoliberal por parte da autora, docente numa instituição de ensino (a NOVA School of Business and Economics) que é subserviente daquele mesmo modelo económico – ver p.ex. aqui.


Num registo não muito diferente, mas muito focadas na questão da necessidade de legalização dos imigrantes presentes no território nacional ou a nível europeu, foram as declarações e opiniões expressas por dirigentes do BE (Mariana Mortágua, Graça M. Pinto, Fabian Figueiredo) em artigos no site esquerda.net ou no Público, dirigindo críticas a documentos como o Pacto Europeu das Migrações (aqui) ou o Plano de Ação para as Migrações (PAM) proposto pelo actual governo (aqui e aqui), ou à actuação da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA, ex-SEF)(aqui). As falhas sucessivas da AIMA são evidentes e têm vindo a ser devidamente denunciadas – ver p.ex. aqui ou aqui. No entanto, reduzir o problema à questão da legalização dos imigrantes e à inoperância das entidades públicas, parece-me claramente insuficiente para o caracterizar adequadamente. No artigo em que alerta para os perigos da imigração ilegal, Mariana Mortágua afirma: “«Imigração ilegal» é o que acontece quando o Estado recusa acolher as pessoas que a economia convocou.” Por seu lado, em declarações sobre o PAM, Fabian Figueiredo afirma: “[a AIMA] não responde às necessidades dos imigrantes em Portugal, que são tão importantes, nomeadamente, para a economia do país, tal como já reconheceu o presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal, e para a sustentabilidade da Segurança Social.” Quer a primeira, quer o segundo, reforçam a ideia da indispensabilidade dos imigrantes para ‘a economia’ sem no entanto referir explicitamente ou questionar o tipo de economia em que os imigrantes se integrariam após a legalização. Pior esteve Fabian Figueiredo ao invocar a argumentação do presidente da CAP (cujas declarações comentei acima) ou a sustentabilidade da Segurança Social.


É evidente que o modelo económico e os poderes políticos dominantes promovem ou permitem as situações de grande injustiça e precariedade que têm sido denunciadas, mas infelizmente (e convenientemente) rapidamente esquecidas, como as que resultam da actuação de máfias do tráfico de mão-de-obra de imigrantes, muitas vezes com o conluio dos empregadores ou dos sub-contratadores – ver exemplos referentes ao sector agrícola relatados aqui, aqui, aqui ou aqui. No entanto, acho que é fundamental rebater frontalmente a afirmação de que 'a economia' precisa de imigrantes, pois é a natureza dessa mesma economia que terá de de ser questionada. Aquilo de que precisamos seria uma economia que servisse as pessoas -
 imigrantes ou não - nos seus territórios e que as fixasse nesses mesmos territórios, promovendo a justiça social e a sustentabilidade ambiental.


Embora esteja mais ou menos de acordo com algumas das diferentes opiniões que detalhei acima, sinto falta de uma maior abertura e abrangência nos debates sobre o tema obviamente complexo da imigração, que incluam questões de fundo como: as consequências para todos os trabalhadores assalariados, imigrantes ou não, da prática oportunista dos agentes económicos que provocam a redução de salários e das regalias sociais, desencadeando descontentamento social generalizado; a natureza mercantilista e predatória do modelo socioeconómico dominante que promove práticas económicas que tiram proveito e fomentam a precariedade laboral, sem que os governos locais tenham capacidade ou vontade política para as regular; as causas profundas dos movimentos migratórios, que incluem nomeadamente o modelo socioeconómico dominante globalmente e a dinâmica geopolítica resultante, que conduzem a profundas desigualdades e injustiças sociais ou ao desencadear de conflitos nos países de origem (que são muitas vezes, por sua vez, consequência das políticas financeiras e económicas dos países ocidentais de destino dos imigrantes); os impactos sociais e culturais da presença de pessoas com valores e práticas culturais muito diversas das dos países de acolhimento e como conciliá-las com o respeito pela diversidade, pela coexistência e pela identidade cultural de cada região. Sei que é um aspecto controverso, mas em relação a este último ponto, considero especialmente relevante que se abram discussões sobre os impactos da presença de muitos imigrantes cuja presença no nosso país é temporária, porque serve apenas como trampolim para países europeus com melhor nível de vida ou porque se destina meramente a fazer o dinheiro suficiente para regressar ao país de origem, não havendo assim uma ligação duradoura ao território ou à cultura, tendo como consequência uma progressiva descaracterização ou até degradação desses mesmos territórios, como acontece p.ex. em certas regiões urbanas do Algarve ou em zonas suburbanas dos arredores de Lisboa. É evidente que cuidar do território e das comunidades locais deve ser uma tarefa colectiva de todos os que o habitam, imigrantes ou não, assim como das instituições aí sedeadas, mas se não existir uma ligação forte ou afinidade cultural com esse território existem fortes probabilidades de que ele se descaracterize ou se degrade. Poderia invocar vários exemplos de países europeus com uma história de imigração mais antiga (como a França, a Holanda ou a Suécia) e que se debatem com várias destas questões e com níveis de descontentamento social que têm favorecido a ascenção de partidos políticos populistas e xenófobos. Para concluir, transcrevo o excerto final do artigo de Manuel Carvalho que citei acima: "[há que] 
discutir sem medo a imigração tal como ela está a acontecer e as suas consequências. Ter medo do debate aberto é dar trunfos à extrema-direita."

domingo, 30 de junho de 2024

Respigos de Primavera #2: O descalabro dos ODS e o futuro incerto

Devemos acelerar a ação para os ODS — e não temos tempo a perder
. António Guterres

Desenvolvimento sustentável significa um mundo que é economicamente próspero, socialmente justo, ambientalmente sustentável e em paz. E nós não temos nada disso actualmente. Jeffrey Sachs

Não é a África que é um problema, mas sim o mundo. Logo, no centro dos ODS deveria estar o funcionamento desse mundo. Elísio Macamo

Foram publicados em Junho dois relatórios que fazem uma avaliação ou balanço da chamada Agenda 2030 dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), lançada pela ONU em 2015 (ver p.ex. aqui): o ‘Sustainable Development Report 2024’ (SDR 2024), publicado pela ‘Sustainable Development Solutions Network’ (SDSN) a 17 de Junho, e o ‘Sustainable Development Goals Report 2024’ (SDG 2024), divulgado pela ONU a 28 de Junho. Já tinha abordado a temática dos ODS em dois posts meus em 2019 (aqui) e em 2023 (aqui), onde destaquei algumas críticas àquela agenda.

As conclusões dos dois relatórios não são muito diferentes: os 17 ODS, assim como a maioria (pelo menos 70%) das correspondentes 167 metas, não serão presumivelmente cumpridos até 2030. As razões alegadas para esse falhanço drástico são várias: dificuldades em monitorizar o progresso nos diferentes países, descoordenação internacional, crises externas – pandemia, guerra na Ucrânia, inflação -, constrangimentos financeiros, desfasamento entre propostas técnicas e científicas e falhas na sua implementação pelo poder político. Sem grande surpresa, os ODS mais longe de serem atingidos prendem-se com questões ambientais e sociais, e com a paz.

Mas vamos por partes. O primeiro relatório (SDR 2024) foi apresentado durante a conferência internacional “Paving the Way to the Pact of the Future” organizada pela SDSN-Portugal e que decorreu em Lisboa nos dias 17 e 18 Junho. Esta conferência antecede a grande ‘Cimeira do Futuro’, convocada por António Guterres para Setembro na sede das Nações Unidas em Nova Iorque, onde será apresentado o chamado ‘Pacto para o Futuro’ que tem como objectivo “voltar a colocar o mundo no caminho certo para alcançar os ODS” (ver p.ex. aqui e aqui). O Público dedicou-lhe um extenso artigo que resume assim o diagnóstico feito no relatório: “A análise mostra que não apenas não estamos no caminho para atingir nenhum dos ODS a nível global, como ainda existem «grandes desafios» em seis dos 17 objectivos: fim da fome (ODS 2), saúde e bem-estar (3), comunidades e cidades sustentáveis (11), vida marinha (14), vida terrestre (15) e paz, justiça e instituições fortes (16). As metas relacionadas com os sistemas alimentares e terrestres, distribuídas por diferentes ODS, estão «particularmente fora de rumo», nota o relatório. Os restantes objectivos mantêm-se estagnados. Para o objectivo nº 10, de redução das desigualdades, não há sequer dados para fazer uma avaliação rigorosa sobre a tendência. Em suma, não estamos nada bem. (…) Tendo em conta que já se ultrapassou metade do tempo para fazer cumprir a Agenda 2030, as velocidades extremamente díspares [em diferentes países] são particularmente penosas de observar.” Mais à frente pode ler-se: “Ao observar os objectivos e as metas, os que mais avançaram parecem estar relacionados com mercados e dinheiro – energia limpa (ODS 7) e indústria, inovação e infra-estrutura (ODS 9) –, enquanto os aspectos sociais, ambientais e da paz parecem estar em retrocesso”. Ainda no mesmo artigo destacam-se alguns factores que terão contribuído para o incumprimento dos ODS: as crises externas, a inexistência de dados e métricas adequados, a ausência de convergência entre os ODS e as políticas nacionais e europeias, e as lacunas no financiamento aos países mais pobres. Grande parte da análise pareceu-me bastante superficial, sem aflorar aspectos que fazem parte das criticas de fundo aos ODS que detalharei mais adiante, sendo as incongruências entre os diferentes ODS mencionadas apenas indirectamente.

Na verdade, o aspecto que mais me surpreendeu no artigo foi a invocação do tema do ‘pós-crescimento’ e da crítica ao PIB como métrica de performance económica (‘Beyond GDP’ foi o tema de uma das sessões do primeiro dia da conferência que se realizou em Lisboa – ver aqui, aos 4h48min), assim como o questionamento da economia de mercado, em particular pelo presidente da SDSN, o economista Jeffrey Sachs, que deu em simultâneo uma extensa entrevista ao Público. No artigo citado acima escreve-se: “Um dos grandes obstáculos para que os ODS sejam considerados prioritários é que «organizámos a economia mundial em grande parte como um sistema de mercado de propriedade privada», explicou Jeffrey Sachs (…). Apesar de o Estado ter um papel importante em países como os da União Europeia, «as forças políticas dominantes continuam a ser impulsionadas pelos mercados».” E, na entrevista, Sachs afirma quando questionado sobre a pertinência do decrescimento: “Aprendemos que existem limites planetários — podemos agradecer aos cientistas por nos terem explicado isso de forma mais clara — e precisamos de viver dentro deles. O que é que isso significa em relação ao crescimento? O crescimento é simplesmente uma taxa de mudança de algo. Decrescimento significa que já não há mudanças? Não. Significa que não há mudança nas coisas prejudiciais. Precisamos de decrescimento nos combustíveis fósseis, sem dúvida. Precisamos de decrescimento na desmatação para criar pastagens, com certeza. Precisamos de decrescimento na utilização da informação digital? Não, porque há pessoas no mundo que não têm acesso a ela actualmente — mais informação será melhor. Decrescimento dos serviços de saúde? Claro que não — precisamos de mais serviços de saúde, porque há milhares de milhões de pessoas sem cobertura adequada. Acho que a discussão sobre o decrescimento não é muito precisa.” Jeffrey Sachs revela grande desconhecimento sobre o que é o decrescimento (ver p.ex. aqui), mas estas suas afirmações não são de estranhar: ele assume-se como social-democrata e tecnocrata, que acredita no recurso a instrumentos económicos para atingir objectivos pré-definidos, executados por especialistas e sem constrangimentos ideológicos ou políticos. Aos cidadãos fica reservado o papel de observadores atentos: “O cidadão comum deve compreender os objectivos, perceber se o seu governo está a fazer um bom trabalho ou não, exigir eficiência no governo, sem esbanjamento, corrupção ou guerras inúteis.

Já tinha escrito aqui sobre a agenda do ‘pós-crescimento’ e faço notar que a própria ONU publicou em 2023 o relatório “Valuing what counts - UN System-wide Contribution on Beyond GDP”. Numa secção intitulada ‘Sustentabilidade ou PIB’, o artigo do Público que referi acima consultou também Maria João Rauch, gestora da Rede Nacional para o Desenvolvimento Sustentável (SDSN Portugal): “Há uma desadequação destes modelos e das métricas que medem o desenvolvimento e a realidade. (…) No fundo, nós temos um modelo de desenvolvimento que é baseado na produção da riqueza e que é um modelo pós-guerra.” Mais à frente pode ler-se: “A conclusão é que não basta aumentar o financiamento para investir nos ODS – é preciso introduzir métricas suplementares ao PIB que valorizem [as conquistas sociais] (e penalizem os retrocessos). Ou seja, é preciso uma harmonização entre as várias áreas de política em torno de uma visão conjunta sobre para onde caminha a economia. Ao perder-se essa matriz social, as populações mais desfavorecidas têm sido mais atingidas ao longo do tempo por esta falta de redistribuição. (…) Também nas questões ambientais se vêem as limitações da forma como medimos a saúde das nossas economias, «chegando ao ponto ridículo de que, quando se cortam florestas na Amazónia, o PIB do Brasil sobe, porque estamos a produzir mais». «Dá cabo do planeta, mata gente, mas não faz mal, porque faz subir o PIB».” Não admira pois a afirmação de Sachs durante a entrevista e que citei na abertura do post. O problema é que a agenda dos ODS não vai à raiz da insustentabilidade do sistema socioeconómico dominante, além de vários ODS serem incompatíveis entre si. Mas já lá vamos.

O segundo relatório (SDG 2024), produzido pela ONU, foi apresentado em Nova Iorque com a presença de António Guterres, que fez uma declaração de abertura com algumas das suas já habituais tiradas dramáticas – ver p.ex. aqui ou aqui. Como disse acima, as conclusões são semelhantes às do SDR 2024, mas a sua divulgação foi acompanhada da publicação de imagens-resumo sobre os diferentes ODS, com mensagens bem pungentes – seguem-se alguns exemplos:

Guterres frisou que apesar de melhorias em alguns indicadores (paridade entre géneros, acesso a recursos digitais e internet, controlo das infecções por HIV e produção de vacinas contra a malária, transição para fontes renováveis na produção eléctrica), a velocidade e escala da mudança para um verdadeiro desenvolvimento sustentável ainda são demasiado lentas, além de haver indicadores ambientais e alimentares em retrocesso. Defendeu que serão necessárias acções mais abrangentes e céleres em áreas chave como a paz, a acção climática, a conectividade e economia digital, o envolvimento dos jovens e o financiamento. Em relação a este último tópico, defendeu ainda a aposta na estratégia ‘SDG Stimulus’ para financiar os países em desenvolvimento e que deve incluir a redução da sua dívida. Algumas daquelas propostas de acção já são apregoadas há décadas, mas sem resultados palpáveis, enquanto outras parecem-me demasiado genéricas para promover a mudança necessária.

Acontece que a noção de que as metas dos ODS não iriam ser cumpridas já existe desde o lançamento inicial da Agenda 2030 em 2015, tendo mesmo havido diversas críticas ao seu carácter neocolonialista e neoliberal - ver p.ex. aqui ou aqui. No ano passado, em que se cumpria o meio-caminho do período de vigência da Agenda 2030, o relatório ‘Global Sustainable Development Report 2023’ já indiciava o incumprimento da maioria dos ODS – ver p.ex. aqui ou aqui. As principais conclusões são aliás muito semelhantes às dos relatórios deste ano. Nessa altura, alguns académicos defenderam que os ODS são demasiado ambiciosos, mas que deveriam funcionar como orientação para as políticas regionais ou nacionais, desde que os decisores sigam as propostas técnicas dos estudos académicos e científicos, o que não terá acontecido – ver p.ex. aqui e aqui. Este último artigo cita Charles Kenny, investigador senior do “Center for Global Development”, que afirma: “A razão pela qual estamos a ficar para trás nos ODS é que eles eram super, super ambiciosos. E embora pudéssemos ter a capacidade técnica para cumpri-los, não implementámos agendas políticas super, super ambiciosas aos níveis nacional e global em parte alguma…”. E acrescenta: “talvez a única coisa pior do que não conseguir alcançar os ODS seria não perguntar como acreditámos que eles seriam alcançáveis”.


Tendo surgido na sequência da agenda precedente da ONU dos (oito) Objectivos do Milénio (2000-2015), que não foi cumprida (ver p.ex. aqui), os ODS foram uma tentativa bem-intencionada de integrar as dimensões ambiental, social e económica para desenhar estratégias para o bem-estar e prosperidade universais. No entanto, vários autores têm alertado para as incongruências e para a ‘agenda oculta’ dos ODS, que promovem uma visão de desenvolvimento ocidentocentrica e neoliberal. Para além dos dois artigos citados no início do parágrafo anterior, destaco o relatório “Stockholm+50: Unlocking a better future”, publicado pelo ‘Stockholm Environmental Institute’ em 2022, que destaca a incompatibilidade entre os limites dos sistemas biofísicos e sociais e a agenda de crescimento económico e de bem-estar universal inerente aos ODS: “the world's social and natural biophysical systems cannot support the aspirations for universal human well-being embedded in the SDGs”. Por seu lado, no capítulo sobre integridade planetária do livro “The Political Impact of the Sustainable Development Goals” de 2022, Louis J. Kotzé e colaboradores defendem que os ODS não dão suficiente prioridade à proteção ambiental: “não reconhecem que as preocupações com o planeta, as pessoas e a prosperidade fazem parte de um único sistema terrestre, e que a protecção da integridade planetária não deve ser um meio para um fim, mas um fim em si mesmo” e que “permanecem fixados na ideia de que o crescimento económico é fundamental para alcançar todos os pilares do desenvolvimento sustentável”.  Os autores destacam também as seguintes deficiências no desenho da agenda dos ODS: “o número de objetivos, a estrutura do quadro de objetivos (por exemplo, a sua estrutura não hierárquica), a (in)coerência entre os objetivos, a especificidade ou mensurabilidade das metas, a linguagem utilizada no texto e a sua aposta num desenvolvimento sustentável baseado no sistema económico neoliberal como sua orientação central.” A outra fraqueza da agenda dos ODS apontada pelos mesmos autores prende-se com as orientações éticas baseadas em noções modernistas (ocidentais) de desenvolvimento: “soberania dos seres humanos sobre o seu ambiente (antropocentrismo), individualismo, competição, liberdade (direitos em vez de deveres), interesse próprio, crença no mercado que conduz ao bem-estar colectivo, propriedade privada (protegida pelos sistemas legais), recompensas baseadas no mérito, materialismo, quantificação de valor e instrumentalização do trabalho.

No post que escrevi em 2019, citei um artigo do sociólogo moçambicano Elísio Macamo que critica o viés neocolonialista da agenda dos ODS a partir da perspectiva da sua aplicação em África. Macamo questiona: “É a África que precisa deles ou a burocracia internacional do desenvolvimento e da caridade remunerada que precisa de uma África que precise dos ODS?” e afirma: “Ao invés de lograr o desenvolvimento através da deliberação e da confrontação de projectos alternativos, os ODS sufocam o debate premiando aqueles que com eles concordam”, destacando que “o maior problema consistiu na fraca capacidade africana de gerir os efeitos das soluções.” Põe também em causa a prossecução de fins em detrimento da discussão sobre os meios para os atingir: “A África, hoje, não é pobre por ser pobre. É pobre porque é objecto de intervenção institucional para acabar com a pobreza.” O autor questiona ainda o próprio conceito de pobreza, assim como a estratégia para a mitigar (aspecto que destaquei no meu post de 2023): “Porque nunca nos passou pela cabeça que seja a riqueza o problema? A pobreza é o problema não porque o seja realmente, mas sim porque o sistema económico que gere o mundo assim a torna. (…) é fácil explicar porque a África devia rejeitar os ODS. Eles definem fins que definham o espaço político, impedindo uma discussão sobre os meios. Hoje, a pobreza é activamente produzida pelo modo dominante de gestão do mundo. (…) É suspeito querer resolver um problema criado por uma certa estrutura sem mexer nessa estrutura. Não é a África que é um problema, mas sim o mundo. Logo, no centro dos ODS deveria estar o funcionamento desse mundo.

A definição desadequada do conceito de pobreza e a desconsideração dos factores que para ela contribuem foram também aspectos negativos destacados pelo economista britânico (decrescentista) Jason Hickel logo em 2015 (aqui). No entanto, a sua crítica mais veemente prende-se com a incompatibilidade do crescimento económico com a sustentabilidade ambiental e a justiça social. Hickel considera que os ODS são não só uma oportunidade perdida, mas também activamente perigosos porque fazem depender a agenda de desenvolvimento global de um modelo económico falido. O autor destaca que o crescimento económico não reduz a pobreza e não resolve, antes intensifica, as desigualdades inerentes ao sistema neoliberal dominante, que são praticamente ignoradas pela Agenda 2030. Num artigo de 2024, Sam Markert defende igualmente que a promoção do crescimento a qualquer custo conduz a um desenvolvimento ambiental- e socialmente insustentável, em contradição com os objectivos daquela agenda. Confundindo a sustentabilidade com o progresso em áreas como a eco-eficiência, os ODS incentivam contra-intuitivamente um desenvolvimento insustentável e desigual. Markert defende a necessidade de experimentar modelos económicos alternativos, como a economia de estado estacionário, o decrescimento ou a ‘Doughnut Economics’, que abraçam a sustentabilidade e a prosperidade sem a dependência do crescimento económico, contribuindo para um futuro onde o desenvolvimento humano e a preservação ambiental são possíveis em simultâneo.

Existem várias propostas para tentar salvar, ou, pelo menos, realinhar, a agenda dos ODS que serão discutidas na ‘Cimeira do Futuro’ em Setembro, onde será apresentado o ‘Pacto para o Futuro’ – ver p.ex. aqui ou aqui. Muitas delas parecem-me meramente cosméticas por não fazerem face às questões fundamentais que acabei de mencionar. A discussão em volta do ‘pós-crescimento’ e da substituição do PIB soa-me mais promissora, mas não será claramente suficiente. Um outro indício mais ousado é referido no artigo do Público que citei no início, onde é mencionada uma proposta avançada no relatório ‘SDR 2024’ de restruturação das próprias Nações Unidas (incluiria a reforma da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança, bem como a criação de outros conselhos) e de reforma da arquitectura financeira global. Duvido que seja possível reformar ou mesmo eliminar instituições, como o FMI ou o Banco Mundial, mas seriam sem dúvida passos fundamentais para transformar o sistema financeiro global que, há décadas, beneficia os países do Norte global e penaliza os do Sul. Finalmente, na ONU já se discute qual deverá ser a estratégia pós-2030. Uma ideia, que se baseia em estudos sobre as interações entre os ODS, é o enfoque num número menor de objetivos transversais, incluindo o bem-estar humano, a descarbonização energética e economias sustentáveis e justas (ver p.ex. aqui). Atendendo ao caminho percorrido até agora, duvido que os actuais líderes políticos tivessem a capacidade ou a ousadia de agir no sentido de alcançar a definição desenvolvimento sustentável resumida por Jeffrey Sachs: “um mundo que é economicamente próspero, socialmente justo, ambientalmente sustentável e em paz” - como se viu p.ex. na recente cimeira do G7 (ver p.ex. aqui). A obsessão de Guterres (e de outros líderes mundiais) com a velocidade (“Devemos acelerar a ação para os ODS”) e com chavões vazios (“não deixar ninguém para trás”), são claramente fastidiosos e inconsequentes. Uma gralha no título de um artigo de 2016 que faz a apologia dos ODS acaba por descrever inadvertidamente a sua verdadeira natureza – “Unsustainable Development Goals” (em vez de “UN Sustainable Development Goals”)!