quinta-feira, 31 de outubro de 2024

COP16 – Vamos a tempo de fazer paz com a Natureza?

We have nearly won, it seems, the war against nature, only to find ourselves on the losing side.(Ao que parece, já quase vencemos a guerra contra a natureza, apenas para constatar que nos encontramos do lado dos vencidos) Charles Eisenstein

Nature is not dying so much as being killed, by people who know perfectly well what they’re doing.(A natureza não está meramente a morrer mas a ser morta, por pessoas que sabem perfeitamente o que estão a fazer) Jeff Sparrow

Há dois anos atrás escrevi neste mesmo blogue sobre a COP15, cimeira bienal da Convenção para a Diversidade Biológica (CBD), sob os auspícios da ONU, que decorria então em Montreal, no Canadá. Realcei na altura que estas COPs são distintas das COP dedicadas ao clima (daí a numeração diferente) e são também menos mediáticas. Não é pois de estranhar que poucos se apercebam que está neste momento a decorrer até dia 1 de Novembro (começou a 21 de Outubro) em Cali, na Colômbia, a COP16, cujo lema é “Paz com a Natureza” (“Paz com la Naturaleza”) – ver p.ex. aqui ou aqui. Tem havido algumas notícias nos sites noticiosos portugueses (destaco a boa cobertura do Público) e internacionais, mas serão certamente menos perceptíveis do que as que ouviremos e leremos em breve quando começar a COP29 (do clima) no dia 11 de Novembro, em Baku (Azerbaijão), dada a maior cobertura mediática dada habitualmente à crise climática.

Acontece que o panorama sobre a biodiversidade a nível global é tão negro como o do clima e as 23 metas estabelecidas no acordo aprovado em 2022 na COP15 – o Quadro Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal (GBF), considerado “o Acordo de Paris da biodiversidade” – estão longe de ser alcançadas – ver p.ex. aqui e aqui. A meta mais emblemática era a de proteger 30% dos habitats terrestres e marinhos até 2030. Para se compreender a distância a que estamos de cumprir essa meta, poderia citar o relatório “On track or off course?”, encomendado pelo Bloomberg Ocean Fund e publicado nas vésperas da COP16, e que mostra que, no caso dos oceanos e da biodiversidade marinha, só foram efectivamente protegidas 2,8% das áreas críticas – ver aqui. Infelizmente, há mais dados pouco animadores. Citando outros exemplos de relatórios recentes, destaco as conclusões do “Living Planet Report 2024” da WWF que apontam para um declínio de 73% na dimensão média das populações de animais selvagens globais entre 1970 e 2020 e que, nos mesmos 50 anos, só na América Latina e Caraíbas, a queda registada foi de 95% - ver p.ex. aqui. Segundo o mesmo relatório, este declínio ficou a dever-se, nesta ordem, à perda ou degradação do habitat (sobretudo devido a desflorestação para uso agrícola), exploração exagerada de recursos, introdução de espécies invasoras, consequências das alterações climáticas e poluição. Um outro relatório refere-se à biodiversidade vegetal – a primeira Avaliação Global de Árvores (“Global Tree Assessment”) – e foi divulgado pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) já durante a COP16. Segundo os dados obtidos, uma em cada três espécies de árvores do mundo está em risco de extinção – ver aqui. O problema é que o número de espécies de árvores ameaçadas (cerca de 38% do total das mais de 47000 espécies avaliadas), em 192 países, é mais do que o dobro de todas as aves, mamíferos, répteis e anfíbios combinados, segundo alerta a IUCN. Mais uma vez, as principais causas são a destruição de habitats (em particular, a desflorestação) e a introdução de espécies exóticas.

As causas do declínio de biodiversidade são aliás já conhecidas há muitos anos e tinham sido claramente reveladas no relatório de 2019 “Global Assessment Report on Biodiversity and Ecosystem Services” do painel da ONU para a biodiversidade (IPBES, equivalente ao IPCC), sobre o qual escrevi aqui. Na altura, o coordenador do IPBES (Richard Watson) defendeu que a perda de biodiversidade e de ecossistemas induzida pelas actividades humanas é tão devastadora como as alterações climáticas e que os dois desafios não podem ser resolvidos isoladamente. De facto, o relatório do IPBES mostrava que a mudança climática não é a principal causa para a perda de biodiversidade e destruição dos ecossistemas, cujos principais determinantes são a usurpação de vastas áreas terrestres e marinhas para uso humano (desflorestação para agricultura e pecuária, expansão da ocupação humana, sobrepesca, etc.) e a exploração directa de animais e plantas, para além da introdução de espécies invasoras. Um corolário igualmente importante desta constatação, mas que é mais raramente explicitado, é que as crises climática e de perda de biodiversidade são na verdade sintomas de uma crise ecológica mais abrangente, que está, por sua vez, interligada com as outras crises globais (social, económica, ética) e é uma consequência de um modelo civilizacional hegemónico insustentável que colocou os interesses de muito poucos à frente do bem-estar de todos – humanos e não-humanos, presentes e futuros. Portanto, não resolveremos a crise ambiental, onde se inclui o declínio da biodiversidade, se não mudarmos o modelo societal dominante e a visão de mundo subjacente – ver meus posts anteriores (aqui e aqui) e ainda p.ex. artigo de Fevereiro da iniciativa “Scientists’ Warning” que advoga abordagens de longo prazo e de âmbito planetário na gestão da biodiversidade. Acontece que aquelas mudanças de fundo continuam fora do conjunto de compromissos e de ambições das diversas cimeiras e iniciativas mundiais – como mostrei em posts anteriores em relação às COP do clima (aqui) ou em relação à Agenda 2030 dos ODS (aqui). Mas voltemos à COP 16.

Num artigo sobre esta cimeira já citado acima, com o subtítulo “Países chegam com muita conversa e pouca acção”, a jornalista Aline Flor escreve: “Entre as prioridades da Colômbia, estão «implementação, integração e investimento», incluindo a adopção dos mecanismos e procedimentos para a monitorização e revisão dos planos nacionais de biodiversidade que, em teoria, teriam de ser apresentados até esta COP16.” No entanto, constata-se que as expectativas geradas pela COP15 não estão a ser correspondidas por ações concretas: “Dois anos depois da aprovação do GBF, contudo, o empenho dos países na aplicação das 23 metas de Kunming-Montreal parece insuficiente. À hora de fecho desta edição [20 de Outubro], 102 países tinham submetido metas avulsas, mas apenas 31 submeteram estratégias e planos de biodiversidade nacionais (NBSAP) actualizados [Portugal não é um deles – ver aqui], como tinha ficado combinado na COP15, o que corresponde a 16% dos 195 países da CBD.” Note-se que p.ex. os EUA nem sequer são subscritores da CBD! Mais à frente Aline Flor escreve: “Uma análise do site Carbon Brief nota que, infelizmente, «ainda não houve nenhuma meta atingida em matéria de biodiversidade até hoje». Isto acontece num contexto que muitos cientistas têm caracterizado como a «sexta extinção em massa».” (Recordo que há quem prefira designar o catastrófico declínio da biodiversidade como “1º extermínio em massa” para enfatizar o grau de premeditação dos seus agentes – ver p.ex. este meu outro post). O artigo resume assim as expectativas em vésperas da COP16: “Nina Mikander, directora de políticas da Birdlife International, adapta os versos de Elvis Presley para fazer um ponto da situação: «We need a little less conversation, a lot more action» (um pouco menos de conversa, muito mais acção).” Talvez um problema seja mesmo a ideia de separar 'conversa' e 'acção'...

António Guterres, no discurso de abertura da COP16, afirmou que a humanidade está em guerra com a natureza, enfatizando que esta é “uma guerra onde não há vencedores”. Já Gustavo Petro, presidente do país anfitrião, afirmou: “Estamos a entrar na era da extinção humana. Penso que não estou a exagerar”. Guterres alertou também os participantes da cimeira de que, se pretendem que se cumpra o lema da COP16, a sua tarefa é “converter palavras em acção”, apresentando planos nacionais de conservação e proteção alinhados com os objectivos ambiciosos do GBF. Para além de relembrar a interligação entre as crises da biodiversidade e do clima, Guterres fez uma afirmação bem mais inesperada, fazendo a ponte com o modelo económico dominante: “os motores desta destruição estão enraizados em modelos económicos obsoletos, que alimentam padrões insustentáveis de produção e consumo”. Estas palavras foram ecoadas e amplificadas pelas de Gustavo Petro, que fez um discurso contra a ganância, o motor do lucro, que destrói a vida”, afirmando: “Não se resolve a crise climática através da rentabilidade nem através das taxas de juro. Estamos a enganar-nos e o tempo está a esgotar-se” – ver aqui. Uma das propostas que avançou foi a de converter a dívida de muitos países para conseguir financiamento para as acções necessárias em prol da natureza e do clima. Isto porque, segundo dados do Banco Mundial, 60% das nações de mais baixos rendimentos, muitas das quais são também as mais vulneráveis aos danos ambientais, estão em dificuldades com a sua dívida, o que limita as suas capacidades de proteger a biodiversidade ou responder a ameaças climáticas. Petro aludiu ainda à polémica questão de financiar as perdas e danos dos países mais vulneráveis às consequências das alterações climáticas, que são normalmente também os mais pobres do mundo, um ponto quente das negociações do clima. Petro não tem dúvidas que esse esforço terá de vir dos países mais ricos que são aqueles que geram afinal os verdadeiros riscos para os países mais pobres. O presidente colombiano rematou assim: “O que precisamos é de democracia global. Espero que esta COP16 seja um ponto de inflexão. Quisemos que não fosse uma reunião numa alta montanha cheia de neve, isolada da humanidade, mas antes que se pudesse sentir o calor, o espírito de alegria da região”.

O financiamento dos esforços globais de conservação e proteção da biodiversidade e dos ecossistemas definidos no GBF, é um dos temas principais da COP16. E é um dos que mais polémica gera, como acontece nas negociações das COP do clima. O compromisso assumido por todos os países na COP15 seria o de mobilizar 200 mil milhões de dólares até 2030 (cerca de 185 mil milhões de euros), incluindo 20 mil milhões por ano até 2025 (cerca de 18 mil milhões de euros), para acções de preservação da natureza e dos seres vivos. O valor angariado até agora para o Fundo do Global da Biodiversidade, já com contribuições anunciadas por oito países do Norte global durante a actual COP16, é de 407 milhões de dólares (perto de 377 milhões de euros), ou seja apenas 2% do que foi prometido - ver aqui. Neste artigo, Clara Barata contextualiza este valor assim: “Como termo de comparação, este valor é menos de metade dos lucros da petrolífera portuguesa Galp só nos primeiros nove meses de 2024, 890 milhões de euros.” O outro mecanismo indirecto, que está também em cima da mesa das negociações durante a COP16, é o desvio de dinheiro que tem sido usado para financiar actividades nocivas para a natureza, como os subsídios para as indústrias de combustíveis fósseis ou para a agricultura industrial intensiva, e que poderia gerar cerca de 500 mil milhões de dólares (460 mil milhões de euros) por ano até 2030 – ver aqui. Segundo este artigo: “de acordo com um estudo da organização WWF publicado em Maio, até 60% do financiamento da Política Agrícola Comum (PAC) da UE, num total de 32,1 mil milhões de euros anuais, poderá estar a ser gasto em actividades agrícolas industriais «insustentáveis», que «devastam os habitats naturais». A WWF contabiliza ainda outros subsídios directos que potencialmente contribuem para a perda de natureza em sectores como as pescas (entre 59 e 138 milhões de euros), infra-estruturas de transportes (1,7 a 14,1 mil milhões de euros) e infra-estruturas hídricas (1,3 a 2 mil milhões de euros).” Em relação a Portugal, a versão portuguesa abreviada do relatório da WWF, que ao nível nacional está articulada com a Associação Natureza Portugal (ANP), destaca os desafios do país para lidar com a crise do clima e da biodiversidade e reivindica “um plano concreto para eliminar todos os subsídios a combustíveis fósseis até 2030”. O mesmo relatório sublinha que a Lei do Restauro da Natureza, diploma europeu agora em vigor, deveria ser “apoiada por um plano nacional que identifique áreas e espécies prioritárias para recuperação, com financiamento adequado, público e privado”. Manifesta ainda preocupação com a manutenção de barragens fluviais obsoletas e discordância com o investimento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) na barragem de Pisão, que, para a ANP, “irá destruir biodiversidade e impulsionar um modelo agrícola desadequado e insustentável” – ver também aqui.

O problema da ênfase nas questões do financiamento, mas também o das chamadas “Soluções Baseadas na Natureza” (SBN) ou das “Empresas de Activos Naturais” (EAN) – a que aludi aqui –, é a ideia (aparentemente bem intencionada) de que a resolução da crise ambiental e a mitigação dos seus impactos nocivos se resolvem mobilizando os fundos necessários ou a benevolência do sector empresarial corporativo – mas leiam-se os artigos críticos deste tipo de abordagens (que citei no meu post sobre a COP15): aqui, aqui e aqui. Aquela parece ser a convicção de uma académica e um especialista portugueses (Helena Freitas e Afonso Dinis) das áreas da ecologia e sustentabilidade, apologistas do ‘desenvolvimento sustentável’, da agenda dos ODS e da ‘economia verde’, que escreveram um artigo de opinião para o Público por estes dias, onde dão ênfase às oportunidades económicas das acções de proteção da natureza. O espírito (e a linguagem) empresarial está bem patente, p.ex. nestes excertos do artigo: “As empresas desempenham um papel decisivo na maximização dos benefícios das SBN. Ao adotarem práticas que respeitam e promovem a natureza, podem não apenas mitigar o impacto ambiental das suas operações, mas também explorar novas oportunidades de negócio. (…) As SBN posicionam as empresas como catalisadoras de uma economia mais verde e resiliente, criando valor partilhado que beneficia tanto os seus clientes quanto as comunidades e os ecossistemas locais. Este modelo fortalece as relações com os stakeholders e aumenta a aceitação social dos projetos, criando vantagens competitivas num cenário global em transformação”. Não quero dizer com isto que não haja iniciativas empresariais que contribuam genuinamente para o restauro e a regeneração de ecossistemas, mas a lógica mercantil e do lucro, assim como a visão antropocêntrica do mundo, que lhes subjazem não são postas em causa – ver p.ex. esta campanha da iniciativa Navdanya International, que denuncia a financeirização e mercantilização dos bens naturais. E isso é um claro entrave à mudança radical que seria necessária para invertermos o rumo do ecocídio em curso – ver os meus posts anteriores, aqui e aqui. A outra questão de fundo importante é que a insistência em quantificar os bens naturais e os chamados ‘serviços de ecossistemas’ atribuindo-lhes valores monetários (ver p.ex. a secção sobre ‘Impactos económicos’ deste artigo já citado acima), não só lhes ocultam o valor intrínseco, como exacerbam a perspectiva economicista e o excepcionalismo humano que estão na base dessa mesma abordagem – ver este meu post de 2015.


O tom do artigo de Freitas e Dinis contrasta com o da entrevista à bióloga Maria Amélia Martins-Loução (aqui) ou com o do artigo de opinião de Ângela Morgado, directora da ANP-WWF (aqui), que saíram também em Outubro. Na primeira, Martins-Loução lamenta a menor atenção dada à biodiversidade, quando comparada com o clima, e destaca a importância fulcral que aquela tem para inúmeras actividades humanas (embora opte por se referir aos ‘serviços’ que a biodiversidade presta aos humanos…). Destaca a pouca atenção e relevância dada à biodiversidade, quer pelos media, quer pelos decisores políticos, que justifica em parte a inação que se tem verificado. Denuncia ainda o poder do lobby agrícola na UE, que alega ser ainda mais poderoso do que o dos combustíveis fósseis, e os retrocessos na implementação do Pacto Ecológico Europeu. As contradições e retrocessos da UE em matéria de proteção ambiental foram também denunciadas neste artigo já citado acima. Por seu lado, Ângela Morgado alerta para o ponto de não retorno em que o sistema terrestre entrou devido aos “impactos negativos acumulados causados por décadas de más práticas” e que a “a mudança perpetuar-se-á de forma descontrolada, abrupta e potencialmente irreversível”. Morgado refere ainda: “Os decisores políticos estão mais do que conscientes desta realidade: estamos a atingir todos os limites de risco. E sabem também que, na sua grande maioria, as ameaças ao clima e à biodiversidade têm origem em más práticas governamentais e empresariais orquestradas ao longo de todos estes anos, alimentados por interesses de curto prazo que trazem uma ilusão de felicidade e bem-estar apenas para alguns, comprometendo o nosso futuro comum.” Embora não atribua ao sistema económico a causa profunda para este estado de coisas, Morgado defende “que haja coragem para criar e implementar um verdadeiro Plano de Recuperação e Resiliência só para a Natureza, mas desta vez sem os interesses mascarados de desenvolvimento sustentável e transição climática presentes no plano atual” e recorda que “a União Europeia canaliza, todos os anos, mais de 30 mil milhões de euros em subsídios para atividades que prejudicam a biodiversidade”.


Um ponto importante que ficou consagrado no GBF foi o reconhecimento do papel fundamental dos povos indígenas e comunidades locais como actores centrais na sua execução, criando mecanismos de participação nos processos oficiais de tomada de decisão. O próprio secretário-geral das Nações Unidas saudou os planos de criação de um organismo permanente na CBD para ter em conta o conhecimento e os interesses dos povos indígenas e comunidades locais, afirmando que “Temos de proteger quem protege a natureza”. O reconhecimento do papel destes povos e comunidades na conservação da biodiversidade e ecossistemas está consagrado na CBD e tinha sido reconhecido no relatório do IPBES publicado em 2019 (que analisei aqui). Um dos mecanismos legais que o tem reafirmado é o reconhecimento da natureza ou de elementos naturais como sujeitos de direitos (os também chamados ‘Direitos da Natureza’), sendo a sua proteção garantida por guardiões das comunidades que neles habitam e deles dependem, com alguns exemplos de sucesso (ver p.ex. aqui) – escrevi sobre este tópico aqui, onde também expus as limitações dessa abordagem. Este assunto está igualmente em discussão na COP16 pelas vozes de representantes de povos indígenas, que defendem o direito ao usufruto e gestão das suas terras, sujeitas muitas vezes à pressão dos interesses das indústrias extrativas ou agrícolas – ver p.ex. aqui e aqui.

Pelo que expus acima e pelo historial de insucesso de variadas cimeiras internacionais dos últimos anos, as esperanças depositadas nesta COP16 são limitadas. O secretário-geral da ONU reconhece que, “fazer as pazes com a natureza é a tarefa definidora do século XXI”. Entretanto, foi anunciada esta semana durante a COP16 a criação de uma ‘Coligação Mundial para a Paz com a Natureza’ que congrega para já 21 países – ver aqui. O anúncio foi acompanhado da divulgação da sua declaração inaugural que define um conjunto de princípios para o financiamento para a conservação e o desenvolvimento sustentável, a cooperação internacional e a mobilização de toda a sociedade para a preservação da natureza. Será suficiente? Duvido… É que o desafio que temos de enfrentar é bem mais colossal do que aquela bela frase de António Guterres dá a entender: trata-se de um autêntico extermínio em massa por agentes do poder corporativo e financeiro global que sabem o que estão a fazer, como alertou Justin McBrien num artigo de 2019 (que citei aqui). Ainda iremos a tempo? A tarefa é hercúlea – é toda uma mudança de paradigma (socioeconómico e político, mas também cultural e ético) que será necessária! –, mas não me parece que tenhamos alternativa e seria bom que todos aqueles que sabem o que está em jogo – a sobrevivência de toda a vida, incluindo a nossa – façam aquilo que podem/sabem no lugar onde estão (lancei algumas pistas aqui, aqui e aqui). Seria afinal adoptar as cosmovisões e modos de vida de certas comunidades indígenas, que se traduzem nas expressões ‘buen vivir’ ou ‘buen convivir’ (ver p.ex. aqui) e se podiam resumir num conhecido slogan de colectivos que promovem modos de vida autónomos (ver p.ex. aqui ou aqui): “Não defendemos a natureza, somos a natureza que se defende”.


segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Rejeitar a guerra para defender a paz

A paz constrói-se com a paz, eliminando a guerra da história da humanidade. Ser a favor da paz é fundamental, mas não é suficiente. (…) Acima de tudo, temos de ser contra a guerra”. Carta aberta ‘Pela rejeição total da guerra’ (Agora des Habitants de la Terre)

a paz hoje não tem acolhimento, porque os ventos sopram no sentido da guerra”. Manuel Pinto

A publicação recente de uma missiva que apela ao repúdio cabal da guerra (ver adiante) levou-me a regressar ao tema que me tem atormentado o espírito desde há meses, aliado a uma necessidade de exorcizar os sentimentos de angústia e de frustração que tantas vezes ameaçam paralisar-me. O espectro da(s) guerra(s) continua a empestar o ar – e ainda mais intensamente do que quando escrevi o post sobre as guerras perpétuas em Março deste ano (onde denunciei a hipocrisia e a desfaçatez das elites que as promovem, bem como as suas manobras de propaganda). Soam de novo os tambores da guerra: anuncia-se a Terceira Guerra Mundial, a Guerra Total, o Apocalipse e o Armagedão – ver p.ex. aqui ou aqui!... Como se não tivéssemos já ameaças existenciais suficientes para nos desassossegar e tirar o sono... A funesta e insistente narrativa mediática sobre as guerras eminentes ou em curso (NATO vs. Rússia, Médio Oriente, EUA vs. China) ameaça não só normalizar a sua perpetuação, como procura legitimar despudoradamente a sua alegada inevitabilidade e a crescente militarização (como já tinha denunciado no meu post de Março). Por outro lado, oculta outras que passam quase desapercebidas aos olhares do mundo, como a guerra mortífera no Sudão – ver p.ex. aqui. Mesmo aquilo que eu achava que era um linha vermelha que a humanidade do século XX tinha decidido que nunca voltaria a ultrapassar – um conflito nuclear – voltou a ser invocado por políticos de diferentes quadrantes ideológicos e geografias, assim como por jornalistas dos media dominantes (mas não só) – ver aqui, aqui ou aqui. Um dos componentes da narrativa deplorável de alguns governantes ocidentais para legitimar o seu belicismo e os gastos militares tem sido a repetição do axioma (ou seus derivados), com origem num autor do Império Romano, Si vis pacem, para bellum – “se queres a paz, prepara-te para a guerra” – ver p.ex. aqui ou aqui –, habilmente desconstruído por Manuel Pinto num artigo com o título “Se queres a guerra, despreza a paz” (mas também na carta aberta que analiso mais abaixo), onde o autor associa aquela retórica à tentativa de justificar a canalização de fundos públicos para os orçamentos militares e para as empresas de armamento.


No caso das incursões militares em curso na Palestina e no Líbano (e que ameaçam alastrar ainda mais), perpetradas pelo governo sionista de Bibi Netanyahu e com o conluio dos EUA e de diversos países europeus, o consenso no apoio (quase) incondicional à actuação impune de Israel foi conseguido nos EUA por pressões vindas de sectores religiosos conservadores (evangélicos ou cristãos sionistas), como a CUFI (‘Christians United for Israel’) – ver p.ex. aqui –, ou de grupos de lóbi israelitas, como o AIPAC (‘American Israel Public Affairs Committee’) – ver p.ex. aqui – ou a ‘Voices of Israel’ – ver p.ex. aqui. O primeiro caso é especialmente revelador e foi denunciado no documentário “Praying for Armageddon” da realizadora norueguesa Tonje Hessen Schei, em colaboração com o norte-americano Michael Rowley – é possível assistir às duas partes do documentário que foi exibido pela Al Jazeera: aqui e aqui. As revelações mais significativas são, por um lado, a marcada influência da corrente evangélica mais fundamentalista na política externa norte-americana, em particular, por parte dos Republicanos (incluindo o ex-presidente Donald Trump), e, por outro, a sua argumentação no apoio incondicional a Israel baseada numa leitura literal da Bíblia que alega que nos aproximamos do Armagedão e da 2ª vinda de Jesus, eventos nos quais Israel e a presença dos judeus na cidade de Jerusalém teriam um papel central. O fundamentalismo religioso que o Ocidente atribui aos países muçulmanos, e em particular ao Irão, e que usa como pretexto para apoiar o belicismo mortífero de Israel e do seu governo radical, está afinal profundamente enraizado na sociedade americana e reflecte-se de forma evidente e chocante na política externa dos EUA para o Médio Oriente, independentemente da filiação política da administração vigente. A irracionalidade do fundamentalismo religioso está portanto também a desvirtuar por dentro os “valores ocidentais” do direito à paz, à auto-determinação e à liberdade.


Esta tese é igualmente invocada pelo jornalista argentino Alberto López Girondo no seu artigo “Apocalipsis (Bíblico) Now”. O autor começa por citar o livro “The Age of Extremes” (1994) do historiador (marxista) britânico Eric Hobsbawm, onde este analisa os conflitos militares entre 1914 e 1991 como espelhos das pretensões incontroladas de poder e dominação das nações beligerantes, estimuladas pelos modelos económicos antagónicos, mas igualmente expansionistas, do capitalismo e do socialismo de Estado: “Por que razão, então, as principais potências de ambos as facções consideraram a Primeira Guerra Mundial como um conflito no qual só se podia contemplar a vitória ou a derrota total? A razão é que, ao contrário de outras guerras anteriores, impulsionadas por motivos limitados e concretos, a Primeira Guerra Mundial, perseguia objectivos ilimitados. Na era imperialista, produziu-se a fusão da política e da economia. A rivalidade política internacional estabeleceu-se em função do crescimento e da competitividade da economia, mas o elemento característico era precisamente o de não ter limites”. Para López Girondo (com base nas teses de Hobsbawn), é a situação actual de tensão crescente de domínio imperialista (e económico) entre o bloco EUA/Europa (NATO) e o bloco Rússia/China que está na origem dos conflitos militares em curso, onde a submissão e a violência se sobrepõem a qualquer possibilidade de conciliação. O autor questiona-se então: “Quão loucos são os líderes do primeiro quartel do século XXI? Até que ponto estariam dispostos ao ‘tudo ou nada’ para manter a supremacia? Quão racionalmente poderiam agir quando na sociedade da nação mais poderosa – embora em declínio – existem grupos cada vez mais numerosos e influentes que não temem o Armagedão, mas muito pelo contrário: procuram-no com uma fé religiosa, desesperada por começar um novo mundo melhor, para acabar com o Mal na Terra?” López Girondo invoca, sucessivamente, o plano clandestino chamado “The Armageddon Plan” desenhado por Dick Cheney e Donald Rumsfeld durante a administração Reagan para garantir a continuidade da governação na eventualidade de uma ataque militar de grande dimensão (p.ex. um ataque nuclear), o ressurgimento da ameaça nuclear após o início da guerra na Ucrânia em 2022 (e o discurso de Joe Biden onde este afirmou que o mundo está no nível mais próximo do Armagedão desde a Crise dos mísseis de Cuba) e ainda a tese fundamentalista evangélica do Armagedão e da ‘guerra justa’ para justificar o apoio dos EUA ao estado de Israel na sua fúria vingativa e genocida contra os palestinos em Gaza (a que me referi acima). López Girondo cita o crítico de cinema Matthew Carey que comenta o documentário “Praying for Armageddon” (aqui): “Imaginem não só acreditar que o mundo está a chegar ao fim, mas também querer que isso aconteça. Ardentemente. Então, dêem um passo mais e imaginem pessoas com esta mentalidade a projetar a política e as relações externas americanas para alcançar exatamente aquilo que procuram: o apocalipse”. O jornalista argentino relembra então as acusações de fundamentalismo religioso usadas no Ocidente para condenar as acções militares terroristas, em especial de grupos ou países muçulmanos, e confronta-as com o fundamentalismo dos evangélicos americanos que invocam leituras literais da Bíblia para justificar ‘guerras santas’ apocalípticas, mas também com a lei aprovada pelo Knesset em 2018 que designa Israel como “o Estado-nação do povo judeu, no qual exercem o seu direito natural, religioso e histórico à autodeterminação”, acrescentando que este direito à autodeterminação é “exclusivo do povo judeu”. Finalmente, López Girondo refere-se aos sucessivos avanços e recuos nas negociações dos tratados de não proliferação nuclear ou de redução de armas estratégicas, assim como ao belicismo expresso por dirigentes ocidentais que invocam o axioma romano (que citei acima) para justificar a guerra por procuração contra a Rússia, culminando com a impensável ameaça dos preparativos para um conflito nuclear entre os eixos EUA-Europa e Rússia-China num futuro próximo.


Felizmente, ainda vão surgindo vozes sensatas que se revoltam contra estas posturas belicistas, doentias e distópicas, e que me dão algum alento. Aconteceu recentemente quando me cruzei com uma carta aberta intitulada “Pour le refus intégral de la guerre” (“Pela rejeição total da guerra”, versão PT aqui), publicada pela associação internacional “Agora des Habitants de la Terre” (colectivo que se pugna pela justiça social, pela defesa dos direitos humanos, pela democracia participativa, por um outro desenvolvimento sustentável e pela cidadania global) e subscrita por um conjunto de cidadãos europeus. Recomendo, pelo menos, a leitura do texto introdutório, de onde destaco o seguinte excerto: “Toda a gente diz que é a favor da paz, mas nem toda a gente é contra a guerra. Acima de tudo, temos de ser contra a guerra. Porque é que temos de ser contra a guerra? Porque temos de abandonar a ideia de que, se queremos a paz, temos de nos preparar para a guerra, que sempre foi inventada e imposta pelos detentores do poder para justificar e manter o seu poder e o seu domínio. A guerra é destruição, morte e ódio. Não existe uma «guerra justa» em nome de Deus, da nação, da civilização ou da segurança. Por detrás da invocação destes nomes, está sobretudo a lógica assassina da dominação e os interesses económicos de poder e riqueza dos mais fortes.” Achei particularmente relevante a visão sistémica que lhe está subjacente, patente em parte da argumentação que traça paralelos entre as posturas bélicas do Ocidente e a defesa do modelo socioeconómico dominante, como por exemplo neste trecho: “Como é que se pode eliminar a guerra? Através da audácia e da fraternidade. (...) É uma ilusão pensar que é possível construir a paz sem abolir as patentes de apropriação privada para fins lucrativos, sem proibir as licenças de comércio de armas, sem [abolir] os paraísos fiscais, sem eliminar a independência dos mercados financeiros, sem regular as grandes oligarquias planetárias em guerra permanente pelo domínio. Os cidadãos devem libertar-se desta ilusão.” A carta prossegue com a enunciação de quatro reflexões sobre o futuro, que aprofundam a argumentação a favor da mobilização contra a guerra. A primeira defende que a principal narrativa que importa combater é a da instrumentalização da guerra ao serviço da paz, em particular a da “guerra defensiva”: dos ‘valores ocidentais’, do ‘mundo livre’, da ‘economia de mercado livre’. É com esta narrativa que se tentam legitimar a corrida aos armamentos, o comércio internacional de armas e a inflação dos orçamentos militares, mas também as atrocidades sobre populações inteiras. Para inverter esta realidade, a carta propõe ilegalizar os tratados internacionais de alianças militares e reformar as Nações Unidas, em particular o Conselho de Segurança para torná-lo eficaz – algo que foi reafirmado agora com a aprovação do Pacto para o Futuro, na semana passada na sede da ONU (ver p.ex. aqui ou aqui).


A segunda reflexão é, a meu ver, especialmente relevante pois sustenta que a mobilização contra a guerra deve ser claramente conduzida com o objetivo de fazer compreender a absoluta inutilidade da guerra e, no contexto actual, a irreparabilidade das destruições provocadas pela guerra, nomeadamente no domínio da vida. Defende que a luta “contra a guerra” deve ter dois objectivos prioritários interdependentes, que são hoje desvalorizados ou desprezados: a efectivação do direito universal à vida para todos e da vida como tal; a salvaguarda e a promoção dos bens comuns mundiais, materiais e imateriais, essenciais à vida. Nesta reflexão relembram-se os diversos tratados internacionais firmados desde a 2ª Guerra Mundial no âmbito das Nações Unidas (como o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas à Autodeterminação e ao Autogoverno ou da Declaração sobre a Biodiversidade) que, apesar de não terem conseguido impedir as piores violações, permitiram, até aos anos 80, o funcionamento e o desenvolvimento do sistema mundial, apesar das suas limitações, insuficiências e contradições, da Guerra Fria e de numerosas guerras locais (ligadas ao processo de demolição dos impérios coloniais europeus), mas sem uma terceira guerra mundial. De facto, o mundo assistiu a uma redução do ritmo de crescimento das desigualdades entre países ricos e pobres, o que contribuiu para reduzir o impacto das forças geradoras de conflitos estruturais e, consequentemente, de guerras destrutivas. No entanto, a partir daí, com o desmoronar da União Soviética e os processos de multinacionalização e globalização da economia e das finanças, de acordo com os princípios, objectivos e mecanismos violentos da economia de mercado e do neoliberalismo, o sistema mundial viu explodir as suas contradições, insuficiências e fragilidades, com o recrudescimento de novos conflitos armados entre, ou promovidos por, superpotências imperialistas.


A terceira reflexão sustenta que, uma vez que a mobilização contra a guerra envolve lutas pela reconstrução planetária dos dois pilares já enunciados (direito à vida e bens comuns mundiais), esta deve centrar-se em dois objectivos: a abolição das patentes para fins privados e lucrativos; e a ilegalização da finança predatória. Defende que, em condições marcadas por uma profunda crise do sistema de suporte de vida da Terra, será necessário agir globalmente para “desarmar a tecnologia da conquista da vida” (ou seja, as patentes) e, ao mesmo tempo, “ilegalizar as finanças predatórias” (que se traduzem na transformação de todas as formas de vida em activos financeiros).

A quarta reflexão é dedicada em particular ao genocídio dos palestinianos em Gaza por Israel e defende a condenação cabal e a cessação de qualquer acto de genocídio, encarado como negação total da vida e da justiça. O texto sustenta que pôr cobro ao genocídio não é apenas uma questão de fazer cumprir o direito internacional; “é, acima de tudo, uma questão de responsabilidade humana e ética planetária que incumbe a todos os sujeitos da Humanidade, incluindo as comunidades sociais, culturais e morais do mundo.

Em forma de conclusão, a carta enfatiza que não serão as corporações industriais, tecnológicas e financeiras internacionais ou instituições como o Banco Mundial, o FMI, a União Europeia ou a NATO, que poderão evitar ou impedir uma “Terceira Guerra Mundial”. Isso só será possível numa acção conjunta dos cidadãos indignados de todo o mundo – ver apelo do cientista político italiano Ricardo Petrella a propósito desta carta aberta. São ainda apresentados alguns exemplos de soluções concretas, em complemento ou para reforçar as propostas já formuladas, a aplicar nos domínios da vida, da sua salvaguarda, promoção/proteção, dos direitos e bens comuns, e na promoção das condições necessárias e indispensáveis à construção da paz. É possível subscrever a carta aberta através deste link.


Quanto a mobilizações e manifestações internacionais, destaco a “Terceira Marcha Mundial pela Paz e a Não-Violência”, que partirá de São José da Costa Rica já no dia 2 de Outubro de 2024 para lá regressar no dia 5 de janeiro de 2025, após dar a volta ao mundo. O roteiro passará pela Europa no mês de Novembro. O manifesto pode ser lido aqui. Por outro lado, este fim-de-semana (28-29 Set) houve dois eventos anti-guerra nos EUA, um em Washington DC (“Rage against the war machine”) e outro em Kingston NY (“Peace & Freedom Rally”). Recomendo esta entrevista ao jornalista do The Grayzone e activista anti-guerra Max Blumenthal onde ele realça a importância de dar voz aos protestos contra a guerra num contexto de grande tensão internacional e de ameaça de um conflito nuclear, assim como de descredibilização das contestações e repressão contra a liberdade de expressão.


Não posso ainda deixar de referir-me às diligências internacionais mediadas pelas Nações Unidas no sentido de denunciar e procurar travar os conflitos em curso, em particular nos recentes eventos da Cimeira do Futuro* e da 79ª Assembleia Geral (UNGA79)**, que tiveram lugar na sede da ONU – ver aqui. Lamentavelmente, várias resoluções do Conselho de Segurança (bem como as condenações do Tribunal Penal Internacional) não tiveram impacto na contenção dos conflitos na Ucrânia, no Médio Oriente ou no Sudão, em parte pela recusa das partes beligerantes (ou dos países que as apoiam militarmente) de acordar num cessar-fogo ou numa solução negociada. A maioria dos discursos dos governantes presentes na UNGA79** incluiu pois, quase invariavelmente, referências aos conflitos em curso, em alguns casos com condenações veementes da incapacidade ou ausência de vontade dos beligerantes de cessar as hostilidades e as matanças – ver p.ex. aqui ou aqui. Já o analista de política internacional William Patton defendeu, num recente artigo de opinião, que o Pacto para o Futuro que resultou da Cimeira do Futuro deve ser analisado criticamente, mas que as reacções de cinismo ou de apatia perante a sua antecipada inconsequência são contraproducentes. Em vez disso, Patton defende que: “devemos responsabilizar os nossos líderes pelas suas promessas, especialmente no que diz respeito à reforma há muito esperada do Conselho de Segurança da ONU, que poderá pôr fim a muitas das nossas guerras e fazer avançar a humanidade.


Embora tenha criticado anteriormente neste blogue os discursos do Secretário-geral da ONU, António Guterres, pelo seu tom dramático que contrasta com a sua flagrante inconsequência, não posso deixar de louvar a sua perseverança em não se deixar vencer pelos sucessivos desaires com que se têm deparado as causas que tem defendido, bem como pela forma corajosa com que tem defendido os princípios e as pessoas da instituição que lidera. No discurso de abertura da UNGA79 (24 Set), Guterres criticou o nível de impunidade “politicamente indefensável e moralmente intolerável” praticado por “um número crescente de Governos” em todo o mundo, desde o Médio Oriente até ao “coração da Europa” ou no Corno de África, tendo traçado um cenário sombrio do mundo actual, que está “num estado insustentável”, onde “guerras acontecem sem nenhum vislumbre de como terminarão” e a “postura nuclear e novas armas lançam uma sombra escura” sobre o planeta. Guterres criticou com veemência a impunidade dos dirigentes que violam os direitos humanos e as normas do direito internacional: “Eles podem atropelar o direito internacional. Podem violar a Carta das Nações Unidas. Podem fechar os olhos a convenções internacionais de direitos humanos ou decisões de tribunais internacionais. Podem fazer pouco caso do direito internacional humanitário. Podem invadir outro país, devastar sociedades inteiras ou desconsiderar completamente o bem-estar do seu próprio povo. E nada vai acontecer”. Sobre Gaza, afirmou, “é um pesadelo ininterrupto que ameaça levar toda a região com ele”; e sobre os ataques recentes de Israel: “Deveríamos todos ficar alarmados com a escalada. O Líbano está à beira do abismo. O povo do Líbano – o povo de Israel – e o povo do mundo – não se podem dar ao luxo de que o Líbano se torne outra Gaza”. Já na sessão comemorativa do Dia Internacional para a Eliminação Total das Armas Nucleares, Guterres afirmou que “Desde o auge da Guerra Fria que o espectro das armas nucleares não lançava uma sombra tão negra. A belicosidade nuclear atingiu um nível febril. Ouvimos até ameaças de usar uma arma nuclear” e que os Estados “devem parar de jogar com o futuro da humanidade”. Embora tenha admitido que “as normas estabelecidas sobre a disseminação de armas nucleares estão a ser desgastadas”, Guterres salientou que a Cimeira do Futuro e o resultante Pacto para o Futuro produziram um novo compromisso global para revitalizar o regime de desarmamento global. Para o bem das gerações futuras, reforçou: “O momento para a eliminação total das armas nucleares é agora”.


Seja como for, parece-me que temos de deixar de apelidar parte da elite do poder internacional de ‘líderes mundiais’ e passar a chamar-lhes o que realmente são, ou seja, um bando de belicistas e sociopatas totalmente desprovidos de empatia em relação à restante humanidade, presente e futura – motivados por desejos de poder ou por ganhos financeiros de curto prazo! Esta minoria demencial, que deveria ser desmascarada (de forma não enviesada!) por uma imprensa realmente livre e com sentido ético (por ora, diversos media digitais independentes, alguns dos quais listei no meu post de Março, ainda vão fazendo esse trabalho), parece achar que sobreviverá a uma guerra generalizada ou a um holocausto nuclear. Isto não é mera ficção científica ou teoria de conspiração: alguns CEOs, bilionários e ‘celebridades’ têm comprado propriedades em lugares remotos ou ilhas isoladas, enquanto outros pretendem refugiar-se nos bunkers que têm mandado construir para esse efeito – ver p.ex. aqui ou aqui! A perspectiva de ser apenas esta gente a sobreviver a um holocausto nuclear ou outro evento apocalíptico é verdadeiramente deprimente. Melhor seria que algum bilionário igualmente desvairado os convencesse a todos a embarcarem na primeira nave espacial para Marte e que ficassem lá para sempre!


Como afirmou Tom Engelhardt num artigo que citei no meu post de Março: “a humanidade está agora em guerra contra si própria… (…) [conseguimos] criar uma forma devastadoramente rápida [guerra nuclear] e outra espetacularmente lenta [alterações climáticas] de nos auto-destruirmos (e a tantas outras coisas).(…) graças em parte à nossa incapacidade de travar as guerras entre nós, parece estarmos a querer assegurar que as alterações climáticas não serão o foco total da nossa atenção como deveriam ser.” No entanto, ao usar “a humanidade” como sujeito abstracto e universal o autor está a incorrer numa grave imprecisão que oculta o facto fulcral de que os principais responsáveis por essa dupla guerra são na verdade uma pequena minoria sociopata e extremista dessa mesma humanidade.


Como se interroga Viriato Soromenho Marques num artigo de opinião recente: “A maioria esmagadora dos cidadãos no Ocidente recusam o suicídio. Como é possível que os nossos Governos e Parlamentos deixem a questão da vida ou morte dos povos do Ocidente entregue a incendiários aprendizes de Dr. Strangelove, como Stoltenberg? As portas do inferno já estão abertas. Vamos em frente?” A este convite só podemos responder com um liminar NÃO! E para além de uma postura de resistência e de rejeição firme da guerra e da militarização, devemos pugnar por uma sociedade e uma visão de mundo que não criem as condições para o recurso aos conflitos armados para resolver disputas por territórios e pelos bens comuns, tal como defende o texto da carta aberta que citei acima. Reproduzo o excerto final: “A luta anti-guerra é a luta dos justos, é a luta ética pela vida. É a reafirmação do primado do espiritual e da luta para regenerar a Terra, para tornar os desertos mais verdes, para devolver o oxigénio aos oceanos, para praticar a fraternidade, para viver a amizade; numa palavra, para devolver a alegria e o amor à vida.

Notas:
É possível assistir aos vídeos das sessões na sede da ONU através das seguintes playlists:
* Cimeira do Futuro (Summit of the Future): aqui 
** 79ª Assembleia Geral da ONU (UNGA79): aqui
Da primeira, seleccionei a intervenção de Niria Alicia Garcia (Youth Native American Representative): aqui.
Da segunda, seleccionei duas intervenções: a da primeira-ministra de Barbados, Mia Amor Mottley (aqui) e a do presidente da Colômbia, Gustavo Petro (aqui).


sábado, 27 de julho de 2024

Respigos de Primavera #3: Equívocos e lacunas no debate sobre imigração

Quem for contra a imigração é contra o desenvolvimento do país. Álvaro Mendonça e Moura (presidente da CAP)

Sem imigrantes a economia entrava em colapso. Francisco Assis (deputado do PS e ex-presidente do Conselho Económico e Social)

Em Portugal não há imigrantes a mais, há um problema de regularização de imigrantes e de acolhimento de imigrantes. Mariana Mortágua (dirigente do BE)


Tenho-me cruzado com vários escritos e tomadas de posição recentes sobre o tema da imigração em Portugal e lido muitas afirmações peremptórias que me deixaram incomodado ou perplexo. Sei que o assunto é complexo e que este tipo de afirmações já vem de há uns anos a esta parte – ver p.ex. aqui. Mas parece-me que existem vários mal-entendidos, contradições e mesmo alguma hipocrisia, com vieses ideológicos à mistura, nas abordagens ao tema. Uma daquelas afirmações, repetida por pessoas de diferentes sectores e cores políticas, é a de que ‘Portugal precisa de imigrantes’ ou, na sua versão ainda mais discutível, de que ‘a economia nacional colapsaria sem imigrantes’. A nuance entre os afiliados com a esquerda ou com a direita é que os primeiros defendem de forma mais veemente a legalização dos imigrantes, assim como salários justos e condições de trabalho e de vida dignos. No entanto, nem sempre apontam o dedo ao contexto económico e político que, não só não previne, como até promove, o oportunismo dos empregadores que se aproveitam da precariedade e fragilidade dos trabalhadores estrangeiros, pagando-lhes salários de miséria e não lhes oferecendo condições de trabalho dignas. Mas mais do que isso, não tenho encontrado reflexões mais aprofundadas sobre as consequências socioeconómicas e culturais da imigração precária a médio-longo prazo, ou sobre as suas causas profundas, nem análises que ponham em causa explicitamente o modelo de negócio dos empregadores, frequentemente mercantilista e neoliberal. Também não tenho encontrado nos debates sobre imigração quem questione a (in)sustentabilidade ambiental e socioeconómica dos sectores de actividade que empregam maioritariamente imigrantes, como a agricultura, a construção ou o turismo, e que necessitariam de profundas transformações. Em contraponto, tenho ouvido as crescentes investidas de sectores da chamada ‘extrema-direita’ que usam os imigrantes como bode expiatório para todos os males sociais ou económicos de que a sociedade portuguesa padece, recusando explicações menos simplistas como o oportunismo económico e a incompetência ou desfaçatez política, nomeadamente dos governantes do centrão que se revezam no poder há décadas e que são cúmplices ou fantoches do poder económico que beneficia da mão-de-obra precária.


Como exemplo do primeiro tipo de afirmações, recorro a artigos ou entrevistas recentes no jornal Público. Um deles (aqui) cita declarações do presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), Álvaro Mendonça e Moura, que afirmou taxativamente que “É muito importante percebermos todos que quem for contra a imigração é contra o desenvolvimento do país. Isto precisa de ser interiorizado”, tendo destacado a importância dos trabalhadores estrangeiros para sectores como a agricultura, turismo ou construção, que dependem desta mão-de-obra “para a sua sobrevivência”. O presidente da CAP defendeu ainda que se evitem populismos, nomeadamente a ideia de que Portugal poderia prescindir destes trabalhadores, o que disse ser “um disparate com gravíssimas implicações económicas”. Sobre as condições de trabalho e de vida dos imigrantes a laborar no sector agrícola, Mendonça e Moura defendeu que sejam contratados “em boa e devida forma”, com contratos de trabalho, e que os trabalhadores estrangeiros sejam “devidamente integrados, com condições de vida dignas e com respeito pelos seus direitos”. Já sobre o oportunismo e a falta de ética dos empregadores (e sub-contratadores) que exploram a mão-de-obra barata para maximizar os lucros, nada disse! O mesmo artigo refere ainda que Mendonça e Moura criticou aquilo que afirma (demagogicamente) “ser um «extremismo ambiental» que não aceita a agricultura e que gostaria que toda a paisagem fosse «um sítio de lazer para o citadino ir uma vez por ano», vincando que não se pode fazer uma dissociação entre sustentabilidade ambiental, social e económica.” Claro que em relação ao modelo de agricultura praticado por muitos empregadores, em particular no Alentejo, esse sim verdadeiramente extremista, quer ambiental- quer socialmente, o presidente da CAP nada diz – escrevi sobre este tema aqui.


Curiosamente, no mesmo dia, o redator principal do Público, Manuel Carvalho, escreveu um artigo de opinião onde denuncia a hipocrisia e indiferença no debate sobre a imigração, afirmando: “A imigração tornou-se assim objecto de reacções a quente, emocionais, por vezes sectárias. Não devia ser preciso um incêndio, um dislate de um político ou uma agressão bárbara para que nos obrigássemos a reflectir sobre as condições em que vive uma parte importante dos que nos procuram para viver e trabalhar. (…) Se essas pessoas são vítimas de racismo, a prova está na indiferença com que a sociedade portuguesa assiste à sua exclusão. Pode ser por causa de um sentimento de impotência, pelo egoísmo de dispor de serviços baratos ou por simples alheamento, mas a imigração recente deu lugar à banalização do abuso e à instituição da ilegalidade.” Estranhamente, não se refere às declarações do presidente da CAP, publicadas nesse mesmo dia… Carvalho defende ainda que: “Se a indiferença é pecado dos cidadãos, a responsabilidade do que está a acontecer é principalmente do Estado. A ideia onírica de abrir as portas a imigrantes sem acautelar as condições para os legalizar, acolher, encaminhar e proteger foi um crime contra o país e contra as pessoas.” Concordo com a denúncia da indiferença dos cidadãos e da negligência de entidades públicas e decisores políticos, mas faltou claramente apontar o dedo à falta de escrúpulos e ao oportunismo dos empregadores. O autor conclui assim: “Ficámos reféns do extremismo racista da direita ou do relativismo hipócrita da esquerda. O primeiro, um instrumento ideológico, o segundo, uma falácia porque, como escreveu Francisco Mendes da Silva [advogado e comentador], «a imigração é mesmo a única matéria em que a esquerda portuguesa é a favor da desregulação ultraliberal dos mercados».” Concordo em parte com esta última afirmação, como desenvolverei mais à frente, mas, mais uma vez, isentam-se os empregadores oportunistas e sem escrúpulos de culpas no cartório. Também não senti um questionamento do sistema económico que supostamente depende da mão-de-obra imigrante para a sua sobrevivência. Lamentavelmente, a afinidade de Manuel Carvalho pelo modelo agrícola industrial desenvolvido por grandes sociedades, multinacionais ou fundos de investimento internacionais, ‘baseado em tecnologia e ciência’ e que alega ser sustentável, mas que se alimenta da mão-de-obra barata e da devastação ambiental, tinha ficado patente em anteriores artigos seus, onde defende (sem espírito crítico) aquelas práticas agrícolas, apelidando-as de ‘revolução silenciosa’ (aqui) e de serem o ‘lado sexy’ da agricultura nacional (aqui)!


Numa entrevista recente, Francisco Assis, actual deputado (e ex-eurodeputado) do PS, e ex-presidente do Conselho Económico e Social, assume uma postura semelhante à de Mendonça e Moura: “A Europa precisa de imigrantes e Portugal precisa de imigrantes. Fui presidente do Conselho Económico e Social durante os últimos três anos e meio. E vi, variadíssimas vezes, os representantes nas reuniões da concertação social, os presidentes das confederações empresariais, da indústria, do turismo, do comércio e serviços da agricultura, apelar ao governo para que o governo fosse tomando providências no sentido de garantir a vinda mais fácil de imigrantes para Portugal, sob pena de alguns sectores da nossa actividade económica, pura e simplesmente entrarem em colapso.” Para além da sustentabilidade dos sectores de actividade nomeados, Assis menciona ainda a necessidade de compensar o que apelida de ‘recuo demográfico’, como justificação para a imprescindibilidade da imigração. Mais adiante afirma: “a ideia de que nós vamos agora aqui escolher os imigrantes é completamente absurda. A ideia de que nós precisamos de imigrantes altamente qualificados… é bom que venham pessoas altamente qualificadas, mas a verdade é que não é essa a preocupação fundamental dos nossos agentes económicos. Eles precisam de pessoas para trabalhar na indústria, pessoas para trabalhar nos restaurantes, nos cafés, nos hotéis, para trabalhar nas explorações agrícolas.” Assis não põe assim em causa a conduta oportunista dos ‘agentes económicos’ daqueles sectores de actividade, referindo-se antes à necessidade de legalizar e de proporcionar condições dignas para os trabalhadores estrangeiros, além de criticar os argumentos falaciosos da extrema-direita sobre os imigrantes.


Num artigo de opinião, a economista Susana Peralta, invocou igualmente os argumentos do colapso de sectores-chave da economia e da reversão do declínio populacional para justificar a necessidade de acolher trabalhadores imigrantes, citando dados de um relatório do Observatório das Migrações do final de 2023. Mas a sua análise foca-se principalmente na denúncia das várias debilidades do apoio social aos imigrantes que não lhes garante as condições dignas para viverem e trabalharem, destacando a precariedade das associações de apoio aos imigrantes e a burocracia das entidades públicas, assim como as redes de tráfico de mão-de-obra e a falta de habitações dignas e acessíveis. Peralta afirma: “A falta de meios das organizações causa-me bastante perplexidade porque a dignidade dos imigrantes devia ser uma prioridade absoluta das nossas políticas públicas… (…) os imigrantes estão expostos a maior precariedade, relações laborais mais instáveis, salários mais baixos e maior sinistralidade em setores como a construção civil, hotelaria e restauração, serviço doméstico: outra ótima razão para deixar as organizações de apoio continuarem o seu trabalho.” A validade destes argumentos é confirmada por notícias mais recentes - ver p.ex. aqui. A autora denuncia ainda as bandeiras típicas do discurso xenófobo e anti-imigração, exemplificadas pela moção “Portugal precisa de mais portugueses” apresentada na convenção nacional do Chega. No entanto, Peralta não faz menção ao carácter mercantilista e oportunista dos empregadores dos sectores que empregam mão-de-obra pouco qualificada, nem questiona a nossa aposta e consequente dependência daqueles sectores de actividade económica ou a ineficácia (ou inexistência) da sua regulação ou fiscalização. Talvez não seja de espantar a ausência de um questionamento mais explícito do modelo económico neoliberal por parte da autora, docente numa instituição de ensino (a NOVA School of Business and Economics) que é subserviente daquele mesmo modelo económico – ver p.ex. aqui.


Num registo não muito diferente, mas muito focadas na questão da necessidade de legalização dos imigrantes presentes no território nacional ou a nível europeu, foram as declarações e opiniões expressas por dirigentes do BE (Mariana Mortágua, Graça M. Pinto, Fabian Figueiredo) em artigos no site esquerda.net ou no Público, dirigindo críticas a documentos como o Pacto Europeu das Migrações (aqui) ou o Plano de Ação para as Migrações (PAM) proposto pelo actual governo (aqui e aqui), ou à actuação da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA, ex-SEF)(aqui). As falhas sucessivas da AIMA são evidentes e têm vindo a ser devidamente denunciadas – ver p.ex. aqui ou aqui. No entanto, reduzir o problema à questão da legalização dos imigrantes e à inoperância das entidades públicas, parece-me claramente insuficiente para o caracterizar adequadamente. No artigo em que alerta para os perigos da imigração ilegal, Mariana Mortágua afirma: “«Imigração ilegal» é o que acontece quando o Estado recusa acolher as pessoas que a economia convocou.” Por seu lado, em declarações sobre o PAM, Fabian Figueiredo afirma: “[a AIMA] não responde às necessidades dos imigrantes em Portugal, que são tão importantes, nomeadamente, para a economia do país, tal como já reconheceu o presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal, e para a sustentabilidade da Segurança Social.” Quer a primeira, quer o segundo, reforçam a ideia da indispensabilidade dos imigrantes para ‘a economia’ sem no entanto referir explicitamente ou questionar o tipo de economia em que os imigrantes se integrariam após a legalização. Pior esteve Fabian Figueiredo ao invocar a argumentação do presidente da CAP (cujas declarações comentei acima) ou a sustentabilidade da Segurança Social.


É evidente que o modelo económico e os poderes políticos dominantes promovem ou permitem as situações de grande injustiça e precariedade que têm sido denunciadas, mas infelizmente (e convenientemente) rapidamente esquecidas, como as que resultam da actuação de máfias do tráfico de mão-de-obra de imigrantes, muitas vezes com o conluio dos empregadores ou dos sub-contratadores – ver exemplos referentes ao sector agrícola relatados aqui, aqui, aqui ou aqui. No entanto, acho que é fundamental rebater frontalmente a afirmação de que 'a economia' precisa de imigrantes, pois é a natureza dessa mesma economia que terá de de ser questionada. Aquilo de que precisamos seria uma economia que servisse as pessoas -
 imigrantes ou não - nos seus territórios e que as fixasse nesses mesmos territórios, promovendo a justiça social e a sustentabilidade ambiental.


Embora esteja mais ou menos de acordo com algumas das diferentes opiniões que detalhei acima, sinto falta de uma maior abertura e abrangência nos debates sobre o tema obviamente complexo da imigração, que incluam questões de fundo como: as consequências para todos os trabalhadores assalariados, imigrantes ou não, da prática oportunista dos agentes económicos que provocam a redução de salários e das regalias sociais, desencadeando descontentamento social generalizado; a natureza mercantilista e predatória do modelo socioeconómico dominante que promove práticas económicas que tiram proveito e fomentam a precariedade laboral, sem que os governos locais tenham capacidade ou vontade política para as regular; as causas profundas dos movimentos migratórios, que incluem nomeadamente o modelo socioeconómico dominante globalmente e a dinâmica geopolítica resultante, que conduzem a profundas desigualdades e injustiças sociais ou ao desencadear de conflitos nos países de origem (que são muitas vezes, por sua vez, consequência das políticas financeiras e económicas dos países ocidentais de destino dos imigrantes); os impactos sociais e culturais da presença de pessoas com valores e práticas culturais muito diversas das dos países de acolhimento e como conciliá-las com o respeito pela diversidade, pela coexistência e pela identidade cultural de cada região. Sei que é um aspecto controverso, mas em relação a este último ponto, considero especialmente relevante que se abram discussões sobre os impactos da presença de muitos imigrantes cuja presença no nosso país é temporária, porque serve apenas como trampolim para países europeus com melhor nível de vida ou porque se destina meramente a fazer o dinheiro suficiente para regressar ao país de origem, não havendo assim uma ligação duradoura ao território ou à cultura, tendo como consequência uma progressiva descaracterização ou até degradação desses mesmos territórios, como acontece p.ex. em certas regiões urbanas do Algarve ou em zonas suburbanas dos arredores de Lisboa. É evidente que cuidar do território e das comunidades locais deve ser uma tarefa colectiva de todos os que o habitam, imigrantes ou não, assim como das instituições aí sedeadas, mas se não existir uma ligação forte ou afinidade cultural com esse território existem fortes probabilidades de que ele se descaracterize ou se degrade. Poderia invocar vários exemplos de países europeus com uma história de imigração mais antiga (como a França, a Holanda ou a Suécia) e que se debatem com várias destas questões e com níveis de descontentamento social que têm favorecido a ascenção de partidos políticos populistas e xenófobos. Para concluir, transcrevo o excerto final do artigo de Manuel Carvalho que citei acima: "[há que] 
discutir sem medo a imigração tal como ela está a acontecer e as suas consequências. Ter medo do debate aberto é dar trunfos à extrema-direita."