sábado, 17 de maio de 2025

Estabilidade: o fetiche do discurso político dominante

Quem reprovou no exame da estabilidade foi a política. Quem vai votar para inventar uma estabilidade qualquer são os portugueses. Na realidade, todas as forças políticas são pela estabilidade mas todas contribuem para a instabilidade ao demitirem-se de pensar politicamente o país.” Carlos Marques de Almeida (daqui)

Vivemos numa era marcada por incertezas: crises económicas recorrentes, alterações climáticas, tensões geopolíticas e rápidas transformações tecnológicas. Neste contexto, é comum ouvir os líderes políticos prometerem estabilidade como um dos pilares centrais das suas propostas. A estabilidade, entendida como uma condição de ordem, segurança e previsibilidade, torna-se um valor particularmente apelativo quando o presente é marcado pela instabilidade. Mas até que ponto essa insistência na estabilidade é realista, eficaz ou mesmo desejável? Nesta reflexão proponho-me analisar as razões pelas quais a estabilidade é valorizada politicamente, os riscos de a tomar como um fim em si mesma, e os desafios que ela enfrenta actualmente em Portugal e na Europa.

Desde a intervenção da troika que sucessivos governos portugueses (e do sul da Europa) – da direita ao centro-esquerda – repetem a ideia de “estabilidade” como condição para o crescimento e a credibilidade externa (ver p.ex. aqui). Ao nível europeu, o discurso é semelhante (ver p.ex. aqui): preservar a zona euro, conter a inflação e, mais recentemente, “dar previsibilidade aos mercados” perante as guerras na Ucrânia e no Médio Oriente. Contudo, a proclamação de estabilidade tem coincidido com uma sucessão de choques políticos: Portugal volta a eleições antecipadas em 2025 depois de mais uma queda de governo (precipitada pelos partidos que se revezam na governação e que defendem a estabilidade governativa!) e o Conselho Europeu passou os últimos dois anos a renegociar – outra vez – as regras orçamentais. A “estabilidade” retórica contrasta assim com a instabilidade real.


Na verdade, ao nível de Portugal, as rendas das casas duplicaram numa década e em Setembro de 2024 milhares saíram à rua em Lisboa e no Porto contra a crise da habitação (ver aqui). Mais de metade dos trabalhadores ganha menos de 1000 €/mês, facto reiterado nas manifestações por aumentos salariais em Novembro de 2024 (ver aqui). Em termos europeus, entre 2015 e 2024 os preços das casas subiram 53% em média na UE (ver aqui); greves e disputas laborais espalharam-se em 2023-24 porque os salários não acompanharam o custo de vida (ver aqui); sondagens pré-eleitorais mostraram preços e desigualdades como principal inquietação dos eleitores europeus (ver aqui). Apesar de a Comissão Europeia proclamar sucessos em “coesão social”, o coeficiente de Gini da UE continua estacionado perto dos 30 pontos e a percepção de injustiça fiscal cresceu, abrindo espaço a forças populistas que se apresentam como “anti-sistema”. A estabilidade invocada pelos partidos tradicionais, longe de acalmar o mal-estar, tem sido vista como defesa de um status quo que bloqueia decisões políticas ousadas.

No que se refere à resposta à calamidade ecológica, a UE reduziu emissões 31% face a 1990, mas projeta-se apenas -49% até 2030 – aquém da meta dos -55% (aqui); o Climate Action Tracker classifica o desempenho como “Insuficiente” (aqui). Em Portugal, a seca “permanente e sistémica” no Algarve levou o governo a racionar água e anunciar um pacote de 366 M€ em obras de emergência (aqui), revelando atraso crónico na adaptação. Isto para não falar dos planos sobre a gestão da água com recurso a novas barragens e transvases entre bacias hidrográficas, que são uma aberração em termos ambientais (ver p.ex. aqui ou aqui). A narrativa oficial celebra o European Green Deal, mas, perante pressões de agricultores, lobbies industriais e partidos eurocépticos, Bruxelas já suavizou regras sobre pesticidas e veículos de combustão. O conflito entre custo de vida e transição climática expõe a incapacidade de articular justiça social com acção ecológica.

A experiência portuguesa e europeia das últimas décadas revela assim que a estabilidade meramente contabilística não basta. Quando a habitação se torna inalcançável, os salários estagnam e a água escasseia, insistir em “não abanar o barco” é, paradoxalmente, afundá-lo. O desafio político é passar de uma estabilidade defensiva para uma meta-estabilidade transformadora, capaz de combinar medidas de redistribuição justa com medidas de verdadeira sustentabilidade ambiental. Isso exigiria coragem institucional: mudar regras que bloqueiam medidas ousadas, quebrar a captura dos grandes interesses e colocar a participação cidadã no centro das decisões.


Também por cá a palavra estabilidade é recitada como um mantra. Partidos rivais juram ser o garante dessa virtude suprema (ver p.ex. aqui); comentadores repetem-na em todos os painéis; presidentes ou candidatos presidenciais invocam-na sempre que se aproxima ou se vive uma nova crise política (ver p.ex. aqui). Mas basta afastar a cortina do discurso para perceber que a “estabilidade” que nos vendem é, na melhor das hipóteses, um verniz frágil. Os dois episódios que marcaram esta Primavera — o apagão nacional de 28 de Abril e a campanha para as legislativas antecipadas de 18 de Maio — revelam o vazio de um conceito que já não protege quem mais precisa, nem prepara o país para o futuro que nos espera.

Na dia 28 de Abril, grande parte do território continental português foi atingido por um apagão energético súbito, afectando hospitais, redes de transportes, comunicações móveis e serviços digitais. Durante várias horas, não houve qualquer explicação oficial clara (ver p.ex. aqui). Só no dia seguinte o governo reconheceu “uma falha grave na coordenação da rede de distribuição elétrica” ligada a um pico de sobrecarga durante uma operação de manutenção. Este incidente, longe de ser um episódio isolado, é sintoma de uma infraestrutura envelhecida, pouco resiliente e mal preparada para a nova realidade energética (ver p.ex. aqui). Portugal, apesar de ter uma das maiores quotas de renováveis da Europa, não investiu a tempo em sistemas robustos de armazenamento, backup e gestão digital descentralizada. A dependência da rede ibérica, aliada à privatização de setores estratégicos, torna o sistema vulnerável a falhas que se propagam rapidamente (ver p.ex. aqui). O discurso oficial insiste em apresentar a transição energética como “estável” e exemplar. Mas o apagão revelou a fragilidade sistémica por detrás da imagem de modernização, e a ausência de um plano claro de resposta a crises, o que gerou desinformação, pânico localizado e acentuou a desconfiança pública. Estabilidade sem investimento público, sem planeamento de risco e sem soberania sobre infraestruturas críticas, é mera aparência. O apagão revelou ainda fragilidades sistémicas mais profundas que quase não vi afloradas – excepção feita a este artigo de opinião de Ruy Filho, do qual transcrevo alguns excertos: “Ao ficarmos sem luz e muitos também sem acesso à comunicação, isolados no escuro físico e informacional, revelou-se nossa dependência profunda aos meios. Porque passamos a ter os recursos como inesgotáveis e garantidos e, a partir dessa outra qualidade de delírio, definimos, sem perceber, a condição da identidade coletiva atual. (…) Encontrarmos outras formas requer elaborarmos “ficções ativas”, ou seja, imaginarmos outro mundo: um que não seja apenas conduzido por tecnologias com ramificações globais pertencentes a impérios econômicos quase abstratos, de tão amplos e inacessíveis. É preciso pensar pela multiplicidade de saberes, de meios, de maneiras de habitar a realidade disponíveis e tão experimentadas por outras culturas. Um “pluriverso” composto pelos saberes de povos e modelos civilizacionais em consonância à natureza e perspectivas não-capitalistas e não-extrativistas. Precisamos mais uns dos outros e menos dos meios que nos dominam; precisamos desconfiar das facilidades tecnocráticas, enquanto criamos futuros múltiplos, responsáveis e comuns. (…) O apagão pode ter assustado alguns, alertado outros, divertido e até não incomodado quem nada tem para sofrer suas consequências. E pode, se assim quisermos aproveitar a experiência, direcionar nossas sensações ao incômodo por tanta dependência e o quanto essa dependência é dada pelo excesso. Não se sabe ainda agora o que ocorreu. Mas não deixa de ser um confronto entre um sistema em colapso e a natureza.”

© Expresso

Duas semanas depois, arrancou a campanha para as legislativas antecipadas, convocadas na sequência do caso que envolve o primeiro-ministro e que levou à queda do governo da AD. Esse desfecho foi precipitado por manobras dos dois principais partidos (com o conluio dos restantes partidos da AR), que alegaram ambos não querer empurrar o país para novas eleições antecipadas - ver aqui e aqui. No primeiro artigo, Manuel Carvalho escreve: “A crise política que determinou a queda do Governo não é, por isso, tanto consequência de um escândalo no coração de São Bento como prova de que os líderes partidários, em especial Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro, perderam toda a capacidade de diálogo e de compromisso. Não foram, nem são, capazes de estabelecer regras ou níveis mínimos de empatia para dirimir conflitos políticos graves e importantes como o actual”; e, no segundo, David Santiago escreve: “PSD e PS tentam passar a ideia de que não querem eleições, mas nenhum está disposto a algo fazer para as evitar. Pelo contrário, estão mesmo dispostos a colocar Portugal numa trajectória de miniciclos governativos só uma vez vista no período democrático”. Naturalmente, o caso que envolve o actual PM foi usado como arma de arremesso na campanha, mas as suspeitas de corrupção que envolveram membros do executivo anterior e levaram à queda do governo de António Costa em 2023, poderiam ter sido uma oportunidade para um debate profundo sobre o modelo de desenvolvimento, a crise ecológica e a crescente desigualdade. Mas não foram! Já o apagão do mês anterior foi praticamente apagado do debate. PS e PSD — ora adversários, ora gémeos siameses da responsabilidade orçamental — desfilaram promessas recicladas: aliviar IRS, baixar IVA da energia, acelerar o PRR. E repetiram os incontornáveis apelos à estabilidade governativa (ver aqui e aqui). Nenhum ousou pôr em causa as regras da zona euro que comprimem o investimento público; nenhum explicou como taxará as rendas excessivas da banca ou travará a escalada do preço das casas. Quando a conversa resvala para a crise climática, surgem chavões vazios: “crescimento verde”, “competitividade sustentável”. É a retórica das metas difusas para 2030 a servir de disfarce à falta de acção no presente.

À esquerda, BE e Livre tentaram introduzir temas como rendimento básico, taxação do património e justiça climática; à direita, IL e Chega 'surfaram' o descontentamento com a carga fiscal e o sistema político. Mas o eixo gravítico do debate manteve-se firme: quem melhor garante “estabilidade” — leia-se, previsibilidade para os mercados, paz social, sem mexer demasiado no tabuleiro? É a política transformada em ginástica de contorcionismo para caber nos limites orçamentais da Comissão Europeia e nas expectativas de rating das agências financeiras.

O panorama político revelado por esta campanha confirma uma tendência preocupante: a estabilidade tornou-se um fetiche discursivo que esvazia o debate democrático. Os partidos do ‘centrão’ reclamam a capacidade de “governar sem sobressaltos”, embora tenham precipitado as quedas de dois governos num espaço de dois anos! Mas recusam tocar nos mecanismos que estão na raiz da instabilidade vivida pela maioria da população: baixos salários, precariedade laboral, crise habitacional, serviços públicos degradados e vulnerabilidade ambiental crescente. Aquela ideia de estabilidade — enquanto “boa gestão” e “responsabilidade fiscal” — é usada para justificar o adiamento crónico de reformas estruturantes, e, mais grave ainda, para deslegitimar propostas alternativas mais transformadoras, rotuladas como radicais ou irresponsáveis. A repetição de fórmulas económicas ineficazes revela um sistema político que, embora formalmente democrático, funciona em larga medida como gestor de um modelo económico falido, sem capacidade real de planear o futuro. A única estabilidade que se vislumbra parece pois reduzir-se à permanência no poder das forças políticas que se alternam na gestão do país com as mesmas receitas requentadas; pelo menos a julgar pelas sucessivas sondagens - que envenenam a liberdade de escolha, favorecendo o erradamente o chamado “voto útil”, que de útil nada tem…

O conjunto de frases, de um artigo de opinião de Carlos Marques de Almeida, citado no início do post, resume alguns dos aspectos que aqui analisei. O “exame” refere-se não apenas a uma gestão técnica dos problemas do dia-a-dia, mas a uma prova mais profunda de capacidade de antecipar riscos, redistribuir recursos e construir sentido coletivo — sobretudo em tempos de crise. A política falhou não porque não haja governos, leis ou eleições, mas porque se tornou cada vez mais gestão de curto prazo, submetida a imperativos externos (mercados, Bruxelas, agências de rating) e a ciclos eleitorais cada vez mais curtos e mais defensivos. Condensa também uma crítica subtil, mas necessária, ao próprio processo democrático em contexto de despolitização. Os eleitores são levados a votar não porque acreditem num futuro colectivo, mas para procurar algum simulacro de ordem ou sossego, muitas vezes dentro de um leque de opções que já não representam visões estruturantes alternativas. É um voto que tende mais a reduzir danos do que a projetar mudanças. A estabilidade que se procura nas urnas é, muitas vezes, uma defesa contra o medo, não uma aposta num horizonte comum. O problema não é a ausência de discursos sobre estabilidade, mas a sua vacuidade estratégica. PS, PSD, IL, e até mesmo sectores à esquerda, apresentam-se como garantias de estabilidade — seja ela fiscal, governativa ou institucional —, mas ao recusarem repensar o modelo económico, o papel do Estado, a transição ecológica, o lugar de Portugal na Europa ou os mecanismos de participação democrática, contribuem activamente para o agravamento da instabilidade real. Ao abdicar de pensar politicamente o país, isto é, de o reimaginar em função das suas necessidades, potencialidades e limites, os partidos tornam-se meros gestores do inevitável. E a instabilidade resulta precisamente desse vazio: os problemas acumulam-se, os cidadãos desconfiam, o sistema endurece e, por fim, fractura. E depois vêm queixar-se do aumento da abstenção e dos avanços da extrema-direita populista…

O apagão de Abril mostrou que bastam minutos para revelar décadas de omissões e de gestão economicista. A campanha de Maio evidencia que os partidos do arco governativo continuam a tratar a crise social e a emergência ecológica como notas de rodapé. Persistir nesta rota é navegar com instrumentos desadequados: sem bússola moral, nem mapa de longo prazo. Este estado de coisas revela uma falência da política enquanto horizonte de transformação, que requer ousadia e coragem. E é também um alerta: a estabilidade de fachada é uma das formas mais perigosas de instabilidade futura, porque adia decisões, esvazia o debate e enfraquece o contrato social. A verdadeira estabilidade não é a ausência de perturbações, mas a construção colectiva de uma sociedade resiliente, justa e ecologicamente viável. Sem essa visão transformadora, repetiremos eleições, escândalos e colapsos – até que a democracia perca por completo a sua força mobilizadora. Se os partidos se demitem de pensar, os cidadãos ficam reduzidos a escolher entre versões quase idênticas do mesmo impasse. O desafio que temos pela frente não é restaurar uma estabilidade perdida – é reinventar uma ousadia transformadora, com coragem, imaginação e sentido de justiça. E isso exigiria uma política que voltasse a ser digna desse nome.

Retomar a escrita: acompanhando um mundo moribundo

O fim do mundo tal como o conhecemos é o fim de um mundo que necessita de cuidados paliativos e talvez, através desses cuidados, a humanidade possa aprender a ser ensinada pela violência que infligiu a si própria e ao resto da natureza(“The end of the world as we know it is the end of a world that needs hospicing and perhaps, through this hospicing, humanity can learn to be taught by the violence it has inflicted on itself and the rest of nature.”) Vanessa Machado de Oliveira

Quebrando um silêncio de vários meses, retomo a escrita para tentar desfiar algumas das tramas que vão tecendo o mundo à minha/nossa volta, em que tenciono revisitar inevitavelmente temas que atravessaram os posts que publiquei durante 2024 – guerra(s), crise ambiental, crise política, crise social. O Respigador continua atento e sem mãos a medir, mas não tem conseguido trazer à escrita tudo aquilo que tem respigado. Há umas semanas atrás e perante notícias recentes, escrevi num email a uma pessoa amiga: “O mundo continua o seu caminho tresloucado, com os ventos de guerra anunciada a soprarem com força crescente. Navegar esta tempestade não é fácil e a aparente apatia da sociedade civil torna a situação ainda mais chocante e trágica...”. Constato que atingimos, colectivamente, um grau de disfuncionalidade que é disfarçado todos os dias pelos sinais de aparente ‘normalidade’ e, principalmente, pelas narrativas trazidas pela grande maioria dos media, focados na sua missão de cobrir os acontecimentos que ‘marcam a actualidade’ e que são concatenados numa sequência frenética, sem que lhes seja dada a contextualização ou a profundidade necessárias a um entendimento do nexo que os liga ou das suas causas profundas. O abandono declarado da diplomacia e da convivência pacífica em favor da militarização e da guerra, que têm vindo a ofuscar o agravamento da calamidade ambiental (que não é apenas climática!), que, por sua vez, decorre da prossecução de um modelo económico depredador a nível mundial, modelo esse que promove modos de vida insustentáveis por uma parte substancial da população, deixando um outra parte em modo de sobrevivência e enriquecendo obscenamente uma pequeníssima minoria… São estes alguns dos nexos que se perdem na voragem de um quotidiano que deixa pouco tempo ou energia para os digerir e atravessar.

Ao normalizar este estado de coisas arriscamo-nos a tomá-los como uma consequência inevitável de algo que nos transcende e a aceitar os seus impactos negativos como efeito colateral de um modelo de sociedade imperfeito e ‘complicado’ mas que, apesar de tudo, nos proporciona (algum) bem-estar e conforto (para quem os tem). A outra desculpa com que muitos se defendem vem de um lugar de impotência – as decisões são tomadas num nível ao qual o cidadão comum não tem acesso nem capacidade de influência ou de agência. Acresce que muitos daqueles que alegam ‘descomplicar’ ou trazer algum entendimento carregam consigo vieses ou agendas dissimuladas que podem ser difíceis de descortinar e de desconstruir por exigirem trabalho e tempo de pesquisa – que muita gente não tem.

Como escrevi no início de 2023 (aqui), estamos a viver uma permacrise em que acontecimentos de diversa natureza – geopolíticos, ambientais, sociais, económicos – e de alcance igualmente diverso, mas eminentemente interligados, se sucedem vertiginosamente deixando-nos perplexos, confusos, zangados, amedrontados ou desanimados e com pouca capacidade de reflectir ou de reagir. Lamentavelmente, este estado de espírito é favorável à manutenção do status quo da minoria, que teria muito a perder se a versão de mundo que se esforçam por manter se desfizesse. Trata-se em parte de um modelo socioeconómico ecologicamente destrutivo e socialmente injusto, mas trata-se em igual medida de uma visão de mundo distorcida que valoriza o materialismo, o utilitarismo, o excepcionalismo humano e uma noção redutora de progresso – que podíamos chamar de modernidade (ocidental). Escrevi anteriormente sobre alguns dos pilares da modernidade: aqui, aqui e aqui. Desconfio que se a prioridade das sociedades, ditada pelos paradigmas dominantes, não fosse o crescimento económico, a acumulação de capital (material e imaterial, p.ex. dinheiro) e a dominação do mundo não humano, mas antes o autoconhecimento, a solidariedade e o bem comum, teríamos um prognóstico bem menos negro do que aquele que enfrentamos.


Estes temas atravessam um livro com o qual me cruzei recentemente e que invoco aqui para ajudar a pensar o estado do mundo e como enfrentá-lo, ou antes, como acompanhá-lo e deixar que ele nos acompanhe. Trata-se de Hospicing Modernity (2021) da autora de origem brasileira e docente na University of British Columbia (Canadá), Vanessa Machado de Oliveira (aka Vanessa Andreotti). É possível aceder a excertos do livro aqui.

O livro é um convite à nossa capacidade de confrontar o desconforto de reconhecer a nossa própria cumplicidade, as nossas contradições e medos em relação à modernidade, sem recorrer à atitude defensiva ou à apatia. O título dá desde logo uma pista poderosa: “hospedar a modernidade” (hospicing) é acompanhá-la no seu fim — como se faz com um doente terminal — com cuidado, com compaixão, mas também com lucidez sobre a sua condição. A autora não propõe uma reforma da modernidade, mas uma transição com ela e para além dela. ‘Hospedar a modernidade’ será então reconhecer os seus limites e esgotamentos. Vanessa descreve a modernidade como um sistema que promete controlo, progresso, segurança e soluções para todos os problemas — mas que, ao mesmo tempo, produz desigualdade, violência epistémica, destruição ambiental e esgotamento existencial. Ao adoptar a máxima “Não podemos resolver a crise com as mesmas ferramentas que a criaram”, ela propõe um tipo diferente de aprendizagem, não para “melhorar o sistema”, mas para nos desapegarmos dele — com cuidado e responsabilidade. A autora defende que, antes de aprender coisas novas, é preciso desaprender certos pressupostos: o individualismo, a obsessão com o progresso linear, a separação entre humanos e natureza, a ideia de que há soluções técnicas para problemas relacionais e espirituais. O processo educativo torna-se, então, mais um “acompanhar processos de transição interior e colectiva” do que “ensinar conteúdos”. No livro, ela apresenta quatro metáforas para as formas como as pessoas (ou coletivos) se posicionam diante de um futuro que envolverá um muito provável colapso civilizacional: o Guerreiro – quer vencer o sistema com as suas próprias armas; o Banqueiro – acumula soluções, saberes e práticas alternativas como se fossem capital; o Bombeiro – tenta apagar incêndios o tempo todo, mas sem questionar as causas profundas; o Cuidador de Hospício (Hospice Worker) – aceita que estamos num fim de ciclo e cuida das relações, dos afectos, dos lutos, preparando o terreno para o que poderá emergir. É este último que ela propõe como caminho: uma aprendizagem que saiba lidar com perdas, com incertezas, com a morte de velhas formas de estar no mundo.

Uma outra proposta importante do livro é a decolonização (palavra que se pretende distinguir de descolonização, que descreve o processo histórico de autodeterminação de povos subjugados por regimes coloniais) da aprendizagem. Para Vanessa, a educação ocidental moderna carrega consigo um projeto colonial: define o que é conhecimento legítimo, quem tem autoridade para ensinar, quais futuros são possíveis ou desejáveis. Decolonizar a aprendizagem é abrir espaço para outras cosmologias, outros modos de relação com o mundo, com o tempo, com o saber. Mas isso não se faz com uma simples “inclusão” de saberes indígenas ou afro-diaspóricos no currículo — requer uma transformação profunda nas formas de estar, sentir, decidir e agir. Vanessa convida a deixar morrer com dignidade certas ideias e estruturas, para que algo novo possa eventualmente nascer. Ela desafia-nos a pensar as aprendizagens não apenas como instrumentos de transformação social, mas como práticas de cuidado em tempos de fim — de fim de uma era, de um paradigma, talvez de uma forma de mundo.

Ficam estas pistas para aguçar o apetite para aquele livro, mas também para a sua sequela (Outgrowing Modernity) que será publicada este Verão. Deixo ainda ligações para alguns vídeos onde a autora discorre, em diálogo, sobre os temas do seu livro: conversa com Nate Hagens (aqui) e conversa colectiva (The Great Simplification): https://youtu.be/MDtn0eEas7c (1h48); conversa com Nora Bateson (Faculty of Education at the University of Victoria): https://youtu.be/8VIkI9v4kVg (1h30); conversa com N.S. Lupson (Entangled World): https://youtu.be/TXbV1Rj924Q (1h05).









sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Co-criar mundos habitáveis

Encontro Semente, Aldeia do Vale, Maio 2024
(Projecto Casa-Árvore)
Participei recentemente na 4ª conferência internacional de Economia Social e Solidária e Comuns que decorreu no ISCTE/IUL de 13 a 15 Novembro – ver aqui. Durante os três dias da conferência dedicada ao tema “Para além do ‘consenso da descarbonização’: a ética e as práticas de simpoiese”, foram muito diversas as abordagens oferecidas pelos participantes, oriundos principalmente das áreas das ciências sociais e humanidades – ver aqui ou aqui. Já tinha trazido a este blogue o conceito de simpoiese (aqui) e, numa apresentação que fiz durante a conferência, juntei-lhe a abordagem decrescentista para fazer um diagnóstico sistémico da permacrise global (ver aqui) e para apontar possíveis caminhos de transformação social que permitam fazer face aos desafios existenciais que enfrentamos.


Fiz também parte de uma apresentação colectiva do projecto Casa-Árvore (Arte Comunitária e Ecologia), no qual colaboro desde 2020. Essa sessão, a qual intitulámos “Co-criar mundos habitáveis: entretecer práticas artísticas comunitárias e regeneração ecológica”, teve contributos, em registos ora expositivos, ora performativos, de mim próprio, da Graça Corrêa (‘Eco-Empatia: para uma relação co-criativa simpoiética e incorporada com ambientes não humanos’), da Sílvia Floresta (‘Harmonizar as interações humano-natureza: uma abordagem holística ao desenvolvimento comunitário regenerativo’) e do André Fausto, coordenador do projecto (‘Canção de uma árvore’). Para além de convocar o pensamento-sensibilidade ecológico e empático, a sessão convidou também a um estar em relação com os outros, humanos e não-humanos, em particular com as plantas das quais co-dependemos. Para isso, recriámos uma atmosfera informal e acolhedora numa das salas de aula, trazendo para aquele espaço elementos não-humanos, contribuindo assim para que a proposta não fosse meramente conceptual.


O meu contributo – ‘Nutrindo uma ética e estética ecológicas’ – teve como principal inspiração o ensaio-manifesto “How to grow livable worlds: Ten (not-so-easy) steps for life in the Planthroposcene” (2018) da antropóloga cultural canadiana Natasha Myers, que invoquei anteriormente neste blogue (aqui e aqui), e recuperou também ideias de outros autores que tinha introduzido neste meu outro post. Resumidamente, a minha intenção foi mostrar como a visão de mundo dominante originada pelo Iluminismo europeu e baseada nos conceitos equivocados do excepcionalismo humano e do reducionismo mecanicista, está enraizada na nossa desconexão do mundo-mais-do-que-humano. Uma das consequências nefastas desta visão de mundo, intensificada pelo modelo socioeconómico global, ambiental- e socialmente insustentável, é a conversão de vastas áreas do planeta em zonas inabitáveis, quer para seres humanos, quer para muitas outras espécies de animais e de plantas (ver p.ex. aqui ou aqui). A possibilidade de quebrar o ‘feitiço’ (expressão usada por Myers) lançado por aquela visão de mundo requer, não só ir além das racionalizações fragmentadas que construímos através das nossas epistemologias especializadas (biologia, antropologia, sociologia, etc.), mas também promover uma sensibilidade mais profunda e uma reconexão e reencantamento com o mundo não humano. Propus-me convocar ideias e escritos de pensadores sistémicos, tais como Gregory Bateson, David Abram, Sacha Kagan, Natasha Myers ou Donna Haraway, como forma de descolonizar os nossos imaginários antropocêntricos e de resgatar uma ética e estética ecológicas, que, por sua vez, poderão ajudar a promover ecossistemas de práticas ou ações micropolíticas destinadas à co-criação de mundos habitáveis, desiderato que é assumido pelo projecto Casa-Árvore.


Seguem-se os excertos de textos selecionados dos diversos autores, que li durante a minha intervenção: “Este é um convite para experimentar diversas formas de devir-com e de co-criar o nosso mundo – nutrindo reciprocidades e cumplicidades simpoiéticas.”


(Prólogo) Natasha Myers: “Temos de nos lembrar que estamos a viver sob um feitiço, e esse feitiço está a destruir os nossos mundos. É tempo de lançar outro feitiço, de convocar outros mundos, de conjurar outros mundos neste mundo. É claro que a situação em que nos encontramos agora nos deixa nos limites da linguagem e agarrados às franjas da imaginação. Precisamos de arte, experimentações e perturbações radicais para aprender outras maneiras de ver, sentir e conhecer.”

I. Natasha Myers: “Nós não somos Um”


Gavin Lamb
(daqui): “As histórias culturais dominantes que nos são contadas estão a provocar crises ecológicas, desde as alterações climáticas à extinção de espécies e ao racismo ambiental: a história do crescimento económico sem fim, a história da natureza e das pessoas como recursos a explorar em benefício de poucos, a história dos seres humanos-enquanto-consumidores. Estas histórias – e as histórias superficiais que consideram estas histórias mais profundas como garantidas – precisam de ser eliminadas. Talvez a mais destrutiva seja a história do excepcionalismo humano.”


Val Plumwood
(daqui): “Provavelmente, a característica distintiva da cultura ocidental, e talvez também a principal marca do seu fracasso ecológico, é a ideia de que a humanidade é radicalmente diferente e separada do resto da natureza e dos outros animais. Esta ideia, por vezes chamada de Excepcionalismo Humano, permitiu-nos explorar a natureza e as pessoas de forma mais implacável (alguns diriam de forma mais eficiente) do que outras culturas, e as nossas formas de vida destrutivas e poderosas dominam o planeta. O Excepcionalismo procura um poder ilimitado sobre a natureza, mas, muitas vezes, ter poder não é bom para nós, especialmente se não sabemos realmente o que se passa ou o que mantém tudo unido.”


Sacha Kagan
(daqui): “A crise global de insustentabilidade não é apenas uma crise do hardware da civilização, é também uma crise do software das mentes. A procura de um desenvolvimento mais sustentável no mundo ‘desenvolvido’ tem-se centrado, até agora, demasiado em actualizações de hardware, tais como novas tecnologias, incentivos económicos, políticas e regulamentos, e muito pouco em revisões de software, isto é, em transformações culturais que afectem as nossas formas de conhecer, aprender, valorizar e agir em conjunto. O software cultural é, no entanto, parte da infraestrutura fundamental de uma sociedade, pelo menos tanto como o seu hardware material. Precisamos de uma mudança ambiental-mental [(environ)mental] global, que seja um processo de transformação que afecte as múltiplas relações entre as nossas mentes e os seus ambientes.”

Natasha Myers: “Quem é exatamente aclamado por esse Anthropos, aquela figura posicionada no comando do Antropoceno? A retórica antropocénica designa ‘o Homem’ como o agente da sua própria morte e, simultaneamente, coloca-o na posição de único salvador viável do planeta. (…) Essas narrativas voltam a centrar-se no ser humano em vez de o descentrar como agente do domínio natural sobre o futuro deste planeta.”

II. Natasha Myers: “(…) embora esteja claramente na hora de desmontar a lógica do Antropoceno, não há necessidade de esperar pelo fim deste mundo para começar a conjurar aqueles que podem ser habitáveis.”


Ailton Krenak
(daqui): “Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% de água e um monte de outros materiais que nos compõem. E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo, num convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam, agindo no mundo à nossa disposição, pegando o que a gente quiser. Esse contato com outra possibilidade implica escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como ‘natureza’, mas que por alguma razão ainda se confunde com ela. Tem alguma coisa dessas camadas que é quase-humana: uma camada identificada por nós que está sumindo, que está sendo exterminada da interface de humanos muito-humanos. Os quase-humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, da técnica, do controle do planeta.”


David Abram
(daqui): “(…) a natureza não humana pode ser percebida e experienciada com muito mais intensidade e nuances do que geralmente se reconhece no Ocidente. O que gerou aquela sensibilidade ampliada para a realidade supra-humana, a profunda atenção direcionada às outras espécies e à Terra, que é evidenciada em muitas culturas indígenas? (…) Ou, invertendo a pergunta, o que gerou a sua ausência no Ocidente moderno? Afinal, a cultura ocidental também tem as suas origens indígenas. Se a sintonia relativa com a natureza circundante encontrada em culturas indígenas está ligada a um modo mais primordial e participativo de percepção, então como é que essa reciprocidade sensorial acabou por ficar tão ausente na civilização ocidental? Ou seja, como nos tornámos tão surdos e tão cegos para a existência vital de outras espécies e para as paisagens animadas que elas habitam que agora tão casualmente levamos à destruição?”


Donna Haraway
(daqui): “Talvez, mas apenas talvez, e apenas com um intenso empenho e trabalho colaborativo e brincadeira com outros terranos, será possível o florescimento em ricos agrupamentos multiespécies que incluam pessoas. Chamo a tudo isto Chthuluceno – passado, presente e futuro. (…) Importa que assuntos usamos para pensar outros assuntos; importa que histórias contamos para contar outras histórias; importa que nós dão nós, que pensamentos pensam pensamentos, que descrições descrevem descrições, que laços atam laços. Importa que histórias criam mundos, que mundos criam histórias.”

Sacha Kagan (daqui): “O processo de busca da sustentabilidade obriga-nos a aumentar a nossa sensibilidade para as interdependências nos desenvolvimentos (in)sustentáveis contemporâneos e para as ricas e vitais complexidades da NaturezaCultura. Isto é tanto um imperativo estético como ético. Gregory Bateson definiu a estética como «a sensibilidade ao padrão que liga». Com isto, ele quis dizer uma capacidade de reconhecimento, partilhada não só pelos humanos, mas também por outros seres vivos: Para ele, a estética é aquilo que «responde ao padrão que liga».”


“Uma arte que esteja envolvida no tipo de estética descrita por Bateson pode reengajar-nos numa comunicação mais ampla do que o consciente, reconectando-nos ao nosso conhecimento incorporado e às muitas fontes intuitivas e subconscientes de conhecimento que residem dentro de nós. A estética reflete uma capacidade mental que excede a consciência.”

“A fim de evitar o risco de se tornar uma nova ferramenta de elitismo social, a estética da sustentabilidade não deve ser concebida como uma medida fixa para alguma forma de progresso estético simplificado e excelência estética. Em vez disso, deve permanecer fortemente enraizada e contextualizada nas comunidades de toda a sociedade, com uma ampla diversidade de formas possíveis de realizar uma experiência estética da complexidade.”

III. Natasha Myers: “(…) precisamos de aprender não apenas a colaborar, mas também a conspirar com as plantas, a respirar com elas. Lembrem-se, elas inspiraram-nos a existirmos.”


Emanuele Coccia
(daqui): “Se a vida vegetal é também uma vida cultural, esta pressupõe a atividade de uma mente que se exercita antes de tudo e, quase exclusivamente, na forma do próprio corpo. (…) A alma vegetativa não é a vida sem imagens, sem fantasia, mas a vida na qual a fantasia não é limitada ou reduzida a porções de si ou do mundo, mas refere-se à totalidade de si e à totalidade do mundo. É a fantasia transcendental, o lugar onde a imaginação forma imediatamente o corpo e a matéria é um sonho sem consciência, um sonho sem olhos que não precisa de órgãos nem de sujeitos para ser cumprido. Cada planta parece inventar e abrir um plano de existência no qual não se dá, de facto, oposição entre crescimento e fantasia. (…) existe um cérebro de matéria, uma mente imanente à matéria em cada vivente. A vida não é nada mais que o facto da matéria em si poder tornar-se cérebro, mente. A semente (ou um ovo) não é nada mais que a representação mais banal desta cerebralidade elementar, matérica.”


Joana Cabral Oliveira et al
. (daqui): “As plantas, mil maneiras de escutá-las desde sempre, mas agora sob constrangimentos de vida e morte inéditos em escala e em velocidade. Serão elas um guia para desconfundir o relógio com o tempo, o progresso com o crescimento? (…) Ao modo das plantas, há pressa em vegetar. O que temos nós a aprender com elas? Se nelas enovelados, quem mesmo, doravante, seremos nós? Plantas são trilha e morada de outros seres. Humanos colhem e pássaros bagunçam os frutos. Abelhas fazem festa nas flores. Galhos se comunicam com o vento, raízes com as hifas, sementes pegam carona nos fluxos e asas. Vegetar é crescer em contiguidade com o mundo, coabitar lugares, aderir e fazer espaços, engajar-nos com aquilo que nos circunda – ou, antes, nos atravessa. Criar raiz e lançar sementes. Desterritorializar-se. Propagar, cortar, distribuir, desmembrar-se em qualquer ponto e depois se reconectar. Polinizar, cruzar, misturar, gerar o imprevisível. Brotar na terra, crescer, florescer, frutificar e apodrecer, voltar para a terra. Transformação é o nome do jogo. Vegetar é uma estratégia.”

Natasha Myers: “(…) a Plantropocena [Planthroposcene] é um convite para nos enraizarmos numa maneira de viver a vida que quebraria o quadro lógico do Antropoceno. A Plantropocena reconhece o futuro conjunto e incerto de plantas e povos, e exige que mudemos os termos desse relacionamento para que nos possamos tornar aliados daqueles seres verdes.”

“A vegetalização é possível porque o vosso corpo não termina na pele. Os vossos contornos não são limitados pela aparência física. O vosso imaginário morfológico é fluido e mutável. De facto, os vossos tecidos podem absorver todos os tipos de fantasias. A vossa imaginação gera mais do que meras imagens mentais; o vosso alcance estende-se por todo o sensório.”

“Cultivem modos de atenção que permitam perceber o que importa para as plantas e os seus co-conspiradores. Tornando-se sensores, sintonizem-se com essa ecologia de práticas e praticantes. Sigam o empurrar e puxar, as atrações e repulsões, os acontecimentos tomando forma dentro e ao redor das plantas. Experimentem as maneiras pelas quais as plantas praticam as suas artes no limiar da vida e da morte. Com o tempo, começarão a desafinar o vosso sensório ecológico colonial e novos mundos se abrirão à vossa vista.”


“Na Plantropocena, o imperativo capitalista de fazer crescer as economias será subvertido e suplantado pelo imperativo de dar às plantas o tempo e o espaço de que precisam para crescer, articular livremente as relações com os seus aliados e expressar os seus desejos mais completos. Os seres humanos terão que ceder os seus poderes biopolíticos sobre terras e corpos. Deixaremos de estar no comando.”

“Abram espaço para outras maneiras de conhecer e narrar o mundo dos vivos. Lembrem-se: existem pessoas em todo o mundo que possuem os protocolos, o saber e a responsabilidade de consultar as plantas. Os mundos habitáveis precisam de pessoas que saibam falar com as plantas.”

(Epílogo) Natasha Myers: “Precisamos de aprender a trabalhar com e para as plantas, para que possamos ser nutridos, vestidos, protegidos, agradados e curados - sem destruir a terra. As plantas são as criadoras de mundo a que precisamos prestar atenção se esperamos cultivar mundos habitáveis. E os nossos mundos só serão habitáveis quando as pessoas aprenderem a conspirar com as plantas.”

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

COP16 – Vamos a tempo de fazer paz com a Natureza?

We have nearly won, it seems, the war against nature, only to find ourselves on the losing side.(Ao que parece, já quase vencemos a guerra contra a natureza, apenas para constatar que nos encontramos do lado dos vencidos) Charles Eisenstein

Nature is not dying so much as being killed, by people who know perfectly well what they’re doing.(A natureza não está meramente a morrer mas a ser morta, por pessoas que sabem perfeitamente o que estão a fazer) Jeff Sparrow

Há dois anos atrás escrevi neste mesmo blogue sobre a COP15, cimeira bienal da Convenção para a Diversidade Biológica (CBD), sob os auspícios da ONU, que decorria então em Montreal, no Canadá. Realcei na altura que estas COPs são distintas das COP dedicadas ao clima (daí a numeração diferente) e são também menos mediáticas. Não é pois de estranhar que poucos se apercebam que está neste momento a decorrer até dia 1 de Novembro (começou a 21 de Outubro) em Cali, na Colômbia, a COP16, cujo lema é “Paz com a Natureza” (“Paz com la Naturaleza”) – ver p.ex. aqui ou aqui. Tem havido algumas notícias nos sites noticiosos portugueses (destaco a boa cobertura do Público) e internacionais, mas serão certamente menos perceptíveis do que as que ouviremos e leremos em breve quando começar a COP29 (do clima) no dia 11 de Novembro, em Baku (Azerbaijão), dada a maior cobertura mediática dada habitualmente à crise climática.

Acontece que o panorama sobre a biodiversidade a nível global é tão negro como o do clima e as 23 metas estabelecidas no acordo aprovado em 2022 na COP15 – o Quadro Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal (GBF), considerado “o Acordo de Paris da biodiversidade” – estão longe de ser alcançadas – ver p.ex. aqui e aqui. A meta mais emblemática era a de proteger 30% dos habitats terrestres e marinhos até 2030. Para se compreender a distância a que estamos de cumprir essa meta, poderia citar o relatório “On track or off course?”, encomendado pelo Bloomberg Ocean Fund e publicado nas vésperas da COP16, e que mostra que, no caso dos oceanos e da biodiversidade marinha, só foram efectivamente protegidas 2,8% das áreas críticas – ver aqui. Infelizmente, há mais dados pouco animadores. Citando outros exemplos de relatórios recentes, destaco as conclusões do “Living Planet Report 2024” da WWF que apontam para um declínio de 73% na dimensão média das populações de animais selvagens globais entre 1970 e 2020 e que, nos mesmos 50 anos, só na América Latina e Caraíbas, a queda registada foi de 95% - ver p.ex. aqui. Segundo o mesmo relatório, este declínio ficou a dever-se, nesta ordem, à perda ou degradação do habitat (sobretudo devido a desflorestação para uso agrícola), exploração exagerada de recursos, introdução de espécies invasoras, consequências das alterações climáticas e poluição. Um outro relatório refere-se à biodiversidade vegetal – a primeira Avaliação Global de Árvores (“Global Tree Assessment”) – e foi divulgado pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) já durante a COP16. Segundo os dados obtidos, uma em cada três espécies de árvores do mundo está em risco de extinção – ver aqui. O problema é que o número de espécies de árvores ameaçadas (cerca de 38% do total das mais de 47000 espécies avaliadas), em 192 países, é mais do que o dobro de todas as aves, mamíferos, répteis e anfíbios combinados, segundo alerta a IUCN. Mais uma vez, as principais causas são a destruição de habitats (em particular, a desflorestação) e a introdução de espécies exóticas.

As causas do declínio de biodiversidade são aliás já conhecidas há muitos anos e tinham sido claramente reveladas no relatório de 2019 “Global Assessment Report on Biodiversity and Ecosystem Services” do painel da ONU para a biodiversidade (IPBES, equivalente ao IPCC), sobre o qual escrevi aqui. Na altura, o coordenador do IPBES (Richard Watson) defendeu que a perda de biodiversidade e de ecossistemas induzida pelas actividades humanas é tão devastadora como as alterações climáticas e que os dois desafios não podem ser resolvidos isoladamente. De facto, o relatório do IPBES mostrava que a mudança climática não é a principal causa para a perda de biodiversidade e destruição dos ecossistemas, cujos principais determinantes são a usurpação de vastas áreas terrestres e marinhas para uso humano (desflorestação para agricultura e pecuária, expansão da ocupação humana, sobrepesca, etc.) e a exploração directa de animais e plantas, para além da introdução de espécies invasoras. Um corolário igualmente importante desta constatação, mas que é mais raramente explicitado, é que as crises climática e de perda de biodiversidade são na verdade sintomas de uma crise ecológica mais abrangente, que está, por sua vez, interligada com as outras crises globais (social, económica, ética) e é uma consequência de um modelo civilizacional hegemónico insustentável que colocou os interesses de muito poucos à frente do bem-estar de todos – humanos e não-humanos, presentes e futuros. Portanto, não resolveremos a crise ambiental, onde se inclui o declínio da biodiversidade, se não mudarmos o modelo societal dominante e a visão de mundo subjacente – ver meus posts anteriores (aqui e aqui) e ainda p.ex. artigo de Fevereiro da iniciativa “Scientists’ Warning” que advoga abordagens de longo prazo e de âmbito planetário na gestão da biodiversidade. Acontece que aquelas mudanças de fundo continuam fora do conjunto de compromissos e de ambições das diversas cimeiras e iniciativas mundiais – como mostrei em posts anteriores em relação às COP do clima (aqui) ou em relação à Agenda 2030 dos ODS (aqui). Mas voltemos à COP 16.

Num artigo sobre esta cimeira já citado acima, com o subtítulo “Países chegam com muita conversa e pouca acção”, a jornalista Aline Flor escreve: “Entre as prioridades da Colômbia, estão «implementação, integração e investimento», incluindo a adopção dos mecanismos e procedimentos para a monitorização e revisão dos planos nacionais de biodiversidade que, em teoria, teriam de ser apresentados até esta COP16.” No entanto, constata-se que as expectativas geradas pela COP15 não estão a ser correspondidas por ações concretas: “Dois anos depois da aprovação do GBF, contudo, o empenho dos países na aplicação das 23 metas de Kunming-Montreal parece insuficiente. À hora de fecho desta edição [20 de Outubro], 102 países tinham submetido metas avulsas, mas apenas 31 submeteram estratégias e planos de biodiversidade nacionais (NBSAP) actualizados [Portugal não é um deles – ver aqui], como tinha ficado combinado na COP15, o que corresponde a 16% dos 195 países da CBD.” Note-se que p.ex. os EUA nem sequer são subscritores da CBD! Mais à frente Aline Flor escreve: “Uma análise do site Carbon Brief nota que, infelizmente, «ainda não houve nenhuma meta atingida em matéria de biodiversidade até hoje». Isto acontece num contexto que muitos cientistas têm caracterizado como a «sexta extinção em massa».” (Recordo que há quem prefira designar o catastrófico declínio da biodiversidade como “1º extermínio em massa” para enfatizar o grau de premeditação dos seus agentes – ver p.ex. este meu outro post). O artigo resume assim as expectativas em vésperas da COP16: “Nina Mikander, directora de políticas da Birdlife International, adapta os versos de Elvis Presley para fazer um ponto da situação: «We need a little less conversation, a lot more action» (um pouco menos de conversa, muito mais acção).” Talvez um problema seja mesmo a ideia de separar 'conversa' e 'acção'...

António Guterres, no discurso de abertura da COP16, afirmou que a humanidade está em guerra com a natureza, enfatizando que esta é “uma guerra onde não há vencedores”. Já Gustavo Petro, presidente do país anfitrião, afirmou: “Estamos a entrar na era da extinção humana. Penso que não estou a exagerar”. Guterres alertou também os participantes da cimeira de que, se pretendem que se cumpra o lema da COP16, a sua tarefa é “converter palavras em acção”, apresentando planos nacionais de conservação e proteção alinhados com os objectivos ambiciosos do GBF. Para além de relembrar a interligação entre as crises da biodiversidade e do clima, Guterres fez uma afirmação bem mais inesperada, fazendo a ponte com o modelo económico dominante: “os motores desta destruição estão enraizados em modelos económicos obsoletos, que alimentam padrões insustentáveis de produção e consumo”. Estas palavras foram ecoadas e amplificadas pelas de Gustavo Petro, que fez um discurso contra a ganância, o motor do lucro, que destrói a vida”, afirmando: “Não se resolve a crise climática através da rentabilidade nem através das taxas de juro. Estamos a enganar-nos e o tempo está a esgotar-se” – ver aqui. Uma das propostas que avançou foi a de converter a dívida de muitos países para conseguir financiamento para as acções necessárias em prol da natureza e do clima. Isto porque, segundo dados do Banco Mundial, 60% das nações de mais baixos rendimentos, muitas das quais são também as mais vulneráveis aos danos ambientais, estão em dificuldades com a sua dívida, o que limita as suas capacidades de proteger a biodiversidade ou responder a ameaças climáticas. Petro aludiu ainda à polémica questão de financiar as perdas e danos dos países mais vulneráveis às consequências das alterações climáticas, que são normalmente também os mais pobres do mundo, um ponto quente das negociações do clima. Petro não tem dúvidas que esse esforço terá de vir dos países mais ricos que são aqueles que geram afinal os verdadeiros riscos para os países mais pobres. O presidente colombiano rematou assim: “O que precisamos é de democracia global. Espero que esta COP16 seja um ponto de inflexão. Quisemos que não fosse uma reunião numa alta montanha cheia de neve, isolada da humanidade, mas antes que se pudesse sentir o calor, o espírito de alegria da região”.

O financiamento dos esforços globais de conservação e proteção da biodiversidade e dos ecossistemas definidos no GBF, é um dos temas principais da COP16. E é um dos que mais polémica gera, como acontece nas negociações das COP do clima. O compromisso assumido por todos os países na COP15 seria o de mobilizar 200 mil milhões de dólares até 2030 (cerca de 185 mil milhões de euros), incluindo 20 mil milhões por ano até 2025 (cerca de 18 mil milhões de euros), para acções de preservação da natureza e dos seres vivos. O valor angariado até agora para o Fundo do Global da Biodiversidade, já com contribuições anunciadas por oito países do Norte global durante a actual COP16, é de 407 milhões de dólares (perto de 377 milhões de euros), ou seja apenas 2% do que foi prometido - ver aqui. Neste artigo, Clara Barata contextualiza este valor assim: “Como termo de comparação, este valor é menos de metade dos lucros da petrolífera portuguesa Galp só nos primeiros nove meses de 2024, 890 milhões de euros.” O outro mecanismo indirecto, que está também em cima da mesa das negociações durante a COP16, é o desvio de dinheiro que tem sido usado para financiar actividades nocivas para a natureza, como os subsídios para as indústrias de combustíveis fósseis ou para a agricultura industrial intensiva, e que poderia gerar cerca de 500 mil milhões de dólares (460 mil milhões de euros) por ano até 2030 – ver aqui. Segundo este artigo: “de acordo com um estudo da organização WWF publicado em Maio, até 60% do financiamento da Política Agrícola Comum (PAC) da UE, num total de 32,1 mil milhões de euros anuais, poderá estar a ser gasto em actividades agrícolas industriais «insustentáveis», que «devastam os habitats naturais». A WWF contabiliza ainda outros subsídios directos que potencialmente contribuem para a perda de natureza em sectores como as pescas (entre 59 e 138 milhões de euros), infra-estruturas de transportes (1,7 a 14,1 mil milhões de euros) e infra-estruturas hídricas (1,3 a 2 mil milhões de euros).” Em relação a Portugal, a versão portuguesa abreviada do relatório da WWF, que ao nível nacional está articulada com a Associação Natureza Portugal (ANP), destaca os desafios do país para lidar com a crise do clima e da biodiversidade e reivindica “um plano concreto para eliminar todos os subsídios a combustíveis fósseis até 2030”. O mesmo relatório sublinha que a Lei do Restauro da Natureza, diploma europeu agora em vigor, deveria ser “apoiada por um plano nacional que identifique áreas e espécies prioritárias para recuperação, com financiamento adequado, público e privado”. Manifesta ainda preocupação com a manutenção de barragens fluviais obsoletas e discordância com o investimento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) na barragem de Pisão, que, para a ANP, “irá destruir biodiversidade e impulsionar um modelo agrícola desadequado e insustentável” – ver também aqui.

O problema da ênfase nas questões do financiamento, mas também o das chamadas “Soluções Baseadas na Natureza” (SBN) ou das “Empresas de Activos Naturais” (EAN) – a que aludi aqui –, é a ideia (aparentemente bem intencionada) de que a resolução da crise ambiental e a mitigação dos seus impactos nocivos se resolvem mobilizando os fundos necessários ou a benevolência do sector empresarial corporativo – mas leiam-se os artigos críticos deste tipo de abordagens (que citei no meu post sobre a COP15): aqui, aqui e aqui. Aquela parece ser a convicção de uma académica e um especialista portugueses (Helena Freitas e Afonso Dinis) das áreas da ecologia e sustentabilidade, apologistas do ‘desenvolvimento sustentável’, da agenda dos ODS e da ‘economia verde’, que escreveram um artigo de opinião para o Público por estes dias, onde dão ênfase às oportunidades económicas das acções de proteção da natureza. O espírito (e a linguagem) empresarial está bem patente, p.ex. nestes excertos do artigo: “As empresas desempenham um papel decisivo na maximização dos benefícios das SBN. Ao adotarem práticas que respeitam e promovem a natureza, podem não apenas mitigar o impacto ambiental das suas operações, mas também explorar novas oportunidades de negócio. (…) As SBN posicionam as empresas como catalisadoras de uma economia mais verde e resiliente, criando valor partilhado que beneficia tanto os seus clientes quanto as comunidades e os ecossistemas locais. Este modelo fortalece as relações com os stakeholders e aumenta a aceitação social dos projetos, criando vantagens competitivas num cenário global em transformação”. Não quero dizer com isto que não haja iniciativas empresariais que contribuam genuinamente para o restauro e a regeneração de ecossistemas, mas a lógica mercantil e do lucro, assim como a visão antropocêntrica do mundo, que lhes subjazem não são postas em causa – ver p.ex. esta campanha da iniciativa Navdanya International, que denuncia a financeirização e mercantilização dos bens naturais. E isso é um claro entrave à mudança radical que seria necessária para invertermos o rumo do ecocídio em curso – ver os meus posts anteriores, aqui e aqui. A outra questão de fundo importante é que a insistência em quantificar os bens naturais e os chamados ‘serviços de ecossistemas’ atribuindo-lhes valores monetários (ver p.ex. a secção sobre ‘Impactos económicos’ deste artigo já citado acima), não só lhes ocultam o valor intrínseco, como exacerbam a perspectiva economicista e o excepcionalismo humano que estão na base dessa mesma abordagem – ver este meu post de 2015.


O tom do artigo de Freitas e Dinis contrasta com o da entrevista à bióloga Maria Amélia Martins-Loução (aqui) ou com o do artigo de opinião de Ângela Morgado, directora da ANP-WWF (aqui), que saíram também em Outubro. Na primeira, Martins-Loução lamenta a menor atenção dada à biodiversidade, quando comparada com o clima, e destaca a importância fulcral que aquela tem para inúmeras actividades humanas (embora opte por se referir aos ‘serviços’ que a biodiversidade presta aos humanos…). Destaca a pouca atenção e relevância dada à biodiversidade, quer pelos media, quer pelos decisores políticos, que justifica em parte a inação que se tem verificado. Denuncia ainda o poder do lobby agrícola na UE, que alega ser ainda mais poderoso do que o dos combustíveis fósseis, e os retrocessos na implementação do Pacto Ecológico Europeu. As contradições e retrocessos da UE em matéria de proteção ambiental foram também denunciadas neste artigo já citado acima. Por seu lado, Ângela Morgado alerta para o ponto de não retorno em que o sistema terrestre entrou devido aos “impactos negativos acumulados causados por décadas de más práticas” e que a “a mudança perpetuar-se-á de forma descontrolada, abrupta e potencialmente irreversível”. Morgado refere ainda: “Os decisores políticos estão mais do que conscientes desta realidade: estamos a atingir todos os limites de risco. E sabem também que, na sua grande maioria, as ameaças ao clima e à biodiversidade têm origem em más práticas governamentais e empresariais orquestradas ao longo de todos estes anos, alimentados por interesses de curto prazo que trazem uma ilusão de felicidade e bem-estar apenas para alguns, comprometendo o nosso futuro comum.” Embora não atribua ao sistema económico a causa profunda para este estado de coisas, Morgado defende “que haja coragem para criar e implementar um verdadeiro Plano de Recuperação e Resiliência só para a Natureza, mas desta vez sem os interesses mascarados de desenvolvimento sustentável e transição climática presentes no plano atual” e recorda que “a União Europeia canaliza, todos os anos, mais de 30 mil milhões de euros em subsídios para atividades que prejudicam a biodiversidade”.


Um ponto importante que ficou consagrado no GBF foi o reconhecimento do papel fundamental dos povos indígenas e comunidades locais como actores centrais na sua execução, criando mecanismos de participação nos processos oficiais de tomada de decisão. O próprio secretário-geral das Nações Unidas saudou os planos de criação de um organismo permanente na CBD para ter em conta o conhecimento e os interesses dos povos indígenas e comunidades locais, afirmando que “Temos de proteger quem protege a natureza”. O reconhecimento do papel destes povos e comunidades na conservação da biodiversidade e ecossistemas está consagrado na CBD e tinha sido reconhecido no relatório do IPBES publicado em 2019 (que analisei aqui). Um dos mecanismos legais que o tem reafirmado é o reconhecimento da natureza ou de elementos naturais como sujeitos de direitos (os também chamados ‘Direitos da Natureza’), sendo a sua proteção garantida por guardiões das comunidades que neles habitam e deles dependem, com alguns exemplos de sucesso (ver p.ex. aqui) – escrevi sobre este tópico aqui, onde também expus as limitações dessa abordagem. Este assunto está igualmente em discussão na COP16 pelas vozes de representantes de povos indígenas, que defendem o direito ao usufruto e gestão das suas terras, sujeitas muitas vezes à pressão dos interesses das indústrias extrativas ou agrícolas – ver p.ex. aqui e aqui.

Pelo que expus acima e pelo historial de insucesso de variadas cimeiras internacionais dos últimos anos, as esperanças depositadas nesta COP16 são limitadas. O secretário-geral da ONU reconhece que, “fazer as pazes com a natureza é a tarefa definidora do século XXI”. Entretanto, foi anunciada esta semana durante a COP16 a criação de uma ‘Coligação Mundial para a Paz com a Natureza’ que congrega para já 21 países – ver aqui. O anúncio foi acompanhado da divulgação da sua declaração inaugural que define um conjunto de princípios para o financiamento para a conservação e o desenvolvimento sustentável, a cooperação internacional e a mobilização de toda a sociedade para a preservação da natureza. Será suficiente? Duvido… É que o desafio que temos de enfrentar é bem mais colossal do que aquela bela frase de António Guterres dá a entender: trata-se de um autêntico extermínio em massa por agentes do poder corporativo e financeiro global que sabem o que estão a fazer, como alertou Justin McBrien num artigo de 2019 (que citei aqui). Ainda iremos a tempo? A tarefa é hercúlea – é toda uma mudança de paradigma (socioeconómico e político, mas também cultural e ético) que será necessária! –, mas não me parece que tenhamos alternativa e seria bom que todos aqueles que sabem o que está em jogo – a sobrevivência de toda a vida, incluindo a nossa – façam aquilo que podem/sabem no lugar onde estão (lancei algumas pistas aqui, aqui e aqui). Seria afinal adoptar as cosmovisões e modos de vida de certas comunidades indígenas, que se traduzem nas expressões ‘buen vivir’ ou ‘buen convivir’ (ver p.ex. aqui) e se podiam resumir num conhecido slogan de colectivos que promovem modos de vida autónomos (ver p.ex. aqui ou aqui): “Não defendemos a natureza, somos a natureza que se defende”.