Vivemos numa era marcada por incertezas: crises económicas recorrentes,
alterações climáticas, tensões geopolíticas e rápidas transformações
tecnológicas. Neste contexto, é comum ouvir os líderes políticos prometerem estabilidade
como um dos pilares centrais das suas propostas. A estabilidade, entendida como
uma condição de ordem, segurança e previsibilidade, torna-se um valor
particularmente apelativo quando o presente é marcado pela instabilidade. Mas
até que ponto essa insistência na estabilidade é realista, eficaz ou mesmo desejável?
Nesta reflexão proponho-me analisar as razões pelas quais a estabilidade é
valorizada politicamente, os riscos de a tomar como um fim em si mesma, e os
desafios que ela enfrenta actualmente em Portugal e na Europa.
Desde a intervenção da troika que sucessivos governos portugueses
(e do sul da Europa) – da direita ao centro-esquerda – repetem a ideia de
“estabilidade” como condição para o crescimento e a credibilidade externa (ver
p.ex. aqui).
Ao nível europeu, o discurso é semelhante (ver p.ex. aqui):
preservar a zona euro, conter a inflação e, mais recentemente, “dar
previsibilidade aos mercados” perante as guerras na Ucrânia e no Médio Oriente.
Contudo, a proclamação de estabilidade tem coincidido com uma sucessão de choques
políticos: Portugal volta a eleições antecipadas em 2025 depois de mais uma
queda de governo (precipitada pelos partidos que se revezam na governação e que
defendem a estabilidade governativa!) e o Conselho Europeu passou os últimos
dois anos a renegociar – outra vez – as regras orçamentais. A “estabilidade”
retórica contrasta assim com a instabilidade
real.
Na verdade, ao nível de Portugal, as rendas das casas duplicaram numa década e em Setembro de 2024 milhares saíram à rua em Lisboa e no Porto contra a crise da habitação (ver aqui). Mais de metade dos trabalhadores ganha menos de 1000 €/mês, facto reiterado nas manifestações por aumentos salariais em Novembro de 2024 (ver aqui). Em termos europeus, entre 2015 e 2024 os preços das casas subiram 53% em média na UE (ver aqui); greves e disputas laborais espalharam-se em 2023-24 porque os salários não acompanharam o custo de vida (ver aqui); sondagens pré-eleitorais mostraram preços e desigualdades como principal inquietação dos eleitores europeus (ver aqui). Apesar de a Comissão Europeia proclamar sucessos em “coesão social”, o coeficiente de Gini da UE continua estacionado perto dos 30 pontos e a percepção de injustiça fiscal cresceu, abrindo espaço a forças populistas que se apresentam como “anti-sistema”. A estabilidade invocada pelos partidos tradicionais, longe de acalmar o mal-estar, tem sido vista como defesa de um status quo que bloqueia decisões políticas ousadas.
No que se refere à resposta à calamidade ecológica, a UE reduziu emissões
31% face a 1990, mas projeta-se apenas -49% até 2030 – aquém da meta dos -55% (aqui);
o Climate Action Tracker classifica o desempenho como “Insuficiente” (aqui). Em Portugal, a seca “permanente
e sistémica” no Algarve levou o governo a racionar água e anunciar um pacote de
366 M€ em obras de emergência (aqui),
revelando atraso crónico na adaptação. Isto para não falar dos planos sobre a
gestão da água com recurso a novas barragens e transvases entre bacias
hidrográficas, que são uma aberração em termos ambientais (ver p.ex. aqui
ou aqui).
A narrativa oficial celebra o European Green
Deal, mas, perante pressões de agricultores, lobbies industriais e
partidos eurocépticos, Bruxelas já suavizou regras sobre pesticidas e veículos
de combustão. O conflito entre custo de vida e transição climática expõe a
incapacidade de articular justiça social com acção ecológica.
A experiência portuguesa e europeia das últimas décadas revela assim que a estabilidade meramente contabilística
não basta. Quando a habitação se torna inalcançável, os salários estagnam e a
água escasseia, insistir em “não abanar o barco” é, paradoxalmente, afundá-lo.
O desafio político é passar de uma estabilidade defensiva para uma meta-estabilidade transformadora, capaz de combinar medidas de redistribuição
justa com medidas de verdadeira sustentabilidade ambiental. Isso exigiria
coragem institucional: mudar regras que bloqueiam medidas ousadas, quebrar a
captura dos grandes interesses e colocar a participação cidadã no centro das
decisões.
Também por cá a palavra estabilidade é recitada como um mantra. Partidos rivais juram ser o garante dessa virtude suprema (ver p.ex. aqui); comentadores repetem-na em todos os painéis; presidentes ou candidatos presidenciais invocam-na sempre que se aproxima ou se vive uma nova crise política (ver p.ex. aqui). Mas basta afastar a cortina do discurso para perceber que a “estabilidade” que nos vendem é, na melhor das hipóteses, um verniz frágil. Os dois episódios que marcaram esta Primavera — o apagão nacional de 28 de Abril e a campanha para as legislativas antecipadas de 18 de Maio — revelam o vazio de um conceito que já não protege quem mais precisa, nem prepara o país para o futuro que nos espera.
Na dia 28 de Abril, grande parte do território continental português foi atingido por um apagão energético súbito, afectando hospitais, redes de transportes, comunicações móveis e serviços digitais. Durante várias horas, não houve qualquer explicação oficial clara (ver p.ex. aqui). Só no dia seguinte o governo reconheceu “uma falha grave na coordenação da rede de distribuição elétrica” ligada a um pico de sobrecarga durante uma operação de manutenção. Este incidente, longe de ser um episódio isolado, é sintoma de uma infraestrutura envelhecida, pouco resiliente e mal preparada para a nova realidade energética (ver p.ex. aqui). Portugal, apesar de ter uma das maiores quotas de renováveis da Europa, não investiu a tempo em sistemas robustos de armazenamento, backup e gestão digital descentralizada. A dependência da rede ibérica, aliada à privatização de setores estratégicos, torna o sistema vulnerável a falhas que se propagam rapidamente (ver p.ex. aqui). O discurso oficial insiste em apresentar a transição energética como “estável” e exemplar. Mas o apagão revelou a fragilidade sistémica por detrás da imagem de modernização, e a ausência de um plano claro de resposta a crises, o que gerou desinformação, pânico localizado e acentuou a desconfiança pública. Estabilidade sem investimento público, sem planeamento de risco e sem soberania sobre infraestruturas críticas, é mera aparência. O apagão revelou ainda fragilidades sistémicas mais profundas que quase não vi afloradas – excepção feita a este artigo de opinião de Ruy Filho, do qual transcrevo alguns excertos: “Ao ficarmos sem luz e muitos também sem acesso à comunicação, isolados no escuro físico e informacional, revelou-se nossa dependência profunda aos meios. Porque passamos a ter os recursos como inesgotáveis e garantidos e, a partir dessa outra qualidade de delírio, definimos, sem perceber, a condição da identidade coletiva atual. (…) Encontrarmos outras formas requer elaborarmos “ficções ativas”, ou seja, imaginarmos outro mundo: um que não seja apenas conduzido por tecnologias com ramificações globais pertencentes a impérios econômicos quase abstratos, de tão amplos e inacessíveis. É preciso pensar pela multiplicidade de saberes, de meios, de maneiras de habitar a realidade disponíveis e tão experimentadas por outras culturas. Um “pluriverso” composto pelos saberes de povos e modelos civilizacionais em consonância à natureza e perspectivas não-capitalistas e não-extrativistas. Precisamos mais uns dos outros e menos dos meios que nos dominam; precisamos desconfiar das facilidades tecnocráticas, enquanto criamos futuros múltiplos, responsáveis e comuns. (…) O apagão pode ter assustado alguns, alertado outros, divertido e até não incomodado quem nada tem para sofrer suas consequências. E pode, se assim quisermos aproveitar a experiência, direcionar nossas sensações ao incômodo por tanta dependência e o quanto essa dependência é dada pelo excesso. Não se sabe ainda agora o que ocorreu. Mas não deixa de ser um confronto entre um sistema em colapso e a natureza.”
![]() |
© Expresso |
Duas semanas depois, arrancou a campanha para as legislativas antecipadas, convocadas na sequência do caso que envolve o primeiro-ministro e que levou à queda do governo da AD. Esse desfecho foi precipitado por manobras dos dois principais partidos (com o conluio dos restantes partidos da AR), que alegaram ambos não querer empurrar o país para novas eleições antecipadas - ver aqui e aqui. No primeiro artigo, Manuel Carvalho escreve: “A crise política que determinou a queda do Governo não é, por isso, tanto consequência de um escândalo no coração de São Bento como prova de que os líderes partidários, em especial Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro, perderam toda a capacidade de diálogo e de compromisso. Não foram, nem são, capazes de estabelecer regras ou níveis mínimos de empatia para dirimir conflitos políticos graves e importantes como o actual”; e, no segundo, David Santiago escreve: “PSD e PS tentam passar a ideia de que não querem eleições, mas nenhum está disposto a algo fazer para as evitar. Pelo contrário, estão mesmo dispostos a colocar Portugal numa trajectória de miniciclos governativos só uma vez vista no período democrático”. Naturalmente, o caso que envolve o actual PM foi usado como arma de arremesso na campanha, mas as suspeitas de corrupção que envolveram membros do executivo anterior e levaram à queda do governo de António Costa em 2023, poderiam ter sido uma oportunidade para um debate profundo sobre o modelo de desenvolvimento, a crise ecológica e a crescente desigualdade. Mas não foram! Já o apagão do mês anterior foi praticamente apagado do debate. PS e PSD — ora adversários, ora gémeos siameses da responsabilidade orçamental — desfilaram promessas recicladas: aliviar IRS, baixar IVA da energia, acelerar o PRR. E repetiram os incontornáveis apelos à estabilidade governativa (ver aqui e aqui). Nenhum ousou pôr em causa as regras da zona euro que comprimem o investimento público; nenhum explicou como taxará as rendas excessivas da banca ou travará a escalada do preço das casas. Quando a conversa resvala para a crise climática, surgem chavões vazios: “crescimento verde”, “competitividade sustentável”. É a retórica das metas difusas para 2030 a servir de disfarce à falta de acção no presente.
À
esquerda, BE e Livre tentaram introduzir temas como rendimento básico, taxação
do património e justiça climática; à direita, IL e Chega 'surfaram' o
descontentamento com a carga fiscal e o sistema político. Mas o eixo gravítico
do debate manteve-se firme: quem melhor garante “estabilidade” — leia-se,
previsibilidade para os mercados, paz social, sem mexer demasiado no tabuleiro?
É a política transformada em ginástica de contorcionismo para caber nos limites
orçamentais da Comissão Europeia e nas expectativas de rating
das agências financeiras.
O panorama político revelado por esta campanha confirma uma tendência
preocupante: a estabilidade tornou-se
um fetiche discursivo que esvazia o debate democrático. Os
partidos do ‘centrão’ reclamam a capacidade de “governar sem sobressaltos”, embora
tenham precipitado as quedas de dois governos num espaço de dois anos! Mas
recusam tocar nos mecanismos que estão na raiz da instabilidade vivida pela
maioria da população: baixos salários, precariedade laboral, crise
habitacional, serviços públicos degradados e vulnerabilidade ambiental
crescente. Aquela ideia de estabilidade — enquanto “boa gestão” e
“responsabilidade fiscal” — é usada para justificar o adiamento crónico de reformas estruturantes, e, mais grave ainda,
para deslegitimar propostas
alternativas mais transformadoras, rotuladas como radicais ou
irresponsáveis. A repetição de fórmulas económicas ineficazes revela um sistema
político que, embora formalmente democrático, funciona em larga medida como gestor de um modelo económico falido,
sem capacidade real de planear o futuro. A única estabilidade que se vislumbra
parece pois reduzir-se à permanência no poder das forças políticas que se
alternam na gestão do país com as mesmas receitas requentadas; pelo menos a
julgar pelas sucessivas sondagens - que envenenam a liberdade de escolha, favorecendo
o erradamente o chamado “voto útil”, que de útil nada tem…
O conjunto de frases, de um artigo de opinião de Carlos Marques de Almeida, citado no início do post, resume alguns dos aspectos que aqui
analisei. O “exame” refere-se
não apenas a uma gestão técnica dos problemas do dia-a-dia, mas a uma prova
mais profunda de capacidade de antecipar riscos, redistribuir recursos e
construir sentido coletivo — sobretudo em tempos de crise. A política falhou
não porque não haja governos, leis ou eleições, mas porque se tornou cada vez mais gestão de curto prazo,
submetida a imperativos externos (mercados, Bruxelas, agências de rating) e a ciclos eleitorais cada vez
mais curtos e mais defensivos. Condensa também uma crítica subtil, mas
necessária, ao próprio processo democrático em contexto de despolitização. Os eleitores são
levados a votar não porque acreditem num futuro colectivo, mas para procurar algum simulacro de ordem ou sossego,
muitas vezes dentro de um leque de opções que já não representam visões
estruturantes alternativas. É um voto que tende mais a reduzir danos do
que a projetar mudanças. A estabilidade que se procura nas urnas é, muitas
vezes, uma defesa contra o medo,
não uma aposta num horizonte comum. O
problema não é a ausência de discursos sobre estabilidade, mas a sua vacuidade
estratégica. PS, PSD, IL, e até mesmo sectores à esquerda, apresentam-se
como garantias de estabilidade — seja ela fiscal, governativa ou institucional
—, mas ao recusarem repensar o modelo económico, o papel do Estado, a transição
ecológica, o lugar de Portugal na Europa ou os mecanismos de participação
democrática, contribuem activamente
para o agravamento da instabilidade real. Ao abdicar de pensar politicamente o país, isto é, de o reimaginar em
função das suas necessidades, potencialidades e limites, os partidos tornam-se meros gestores do inevitável.
E a instabilidade resulta precisamente desse vazio: os problemas acumulam-se,
os cidadãos desconfiam, o sistema endurece e, por fim, fractura. E depois vêm queixar-se
do aumento da abstenção e dos avanços da extrema-direita populista…
O apagão de Abril mostrou que bastam minutos para revelar décadas
de omissões e de gestão economicista. A campanha de Maio evidencia que os partidos do arco governativo
continuam a tratar a crise social e a emergência ecológica como notas de
rodapé. Persistir nesta rota é navegar com instrumentos desadequados: sem
bússola moral, nem mapa de longo prazo. Este estado de coisas revela uma falência da política
enquanto horizonte de transformação, que requer ousadia e coragem. E é também
um alerta: a estabilidade de fachada
é uma das formas mais perigosas de instabilidade futura, porque adia
decisões, esvazia o debate e enfraquece o contrato social. A verdadeira
estabilidade não é a ausência de perturbações, mas a construção colectiva de uma sociedade resiliente, justa e ecologicamente
viável. Sem essa visão transformadora, repetiremos eleições, escândalos
e colapsos – até que a democracia perca por completo a sua força mobilizadora. Se
os partidos se demitem de pensar, os cidadãos ficam reduzidos a escolher entre
versões quase idênticas do mesmo impasse. O desafio que temos pela frente não é
restaurar uma estabilidade perdida – é reinventar
uma ousadia transformadora, com coragem, imaginação e sentido de
justiça. E isso exigiria uma política que voltasse a ser digna desse nome.