Este post nasce da leitura dos ensaios, traduzidos recentemente para português, de dois filósofos europeus (ambos nascidos no século XX, mas de gerações diferentes): ‘Novo Iluminismo Radical’ (2017/2023) da catalã Marina Garcés e ‘Nós, Filhos de Eichmann’ (1964/2025) do alemão Günther Anders. O que mais me interessou foi o entrelaçamento das suas perspectivas (Garcés cita no seu ensaio o magnum opus de Anders: ‘A Obsolescência do Homem’) sobre como pensar e lidar com as ameaças existenciais que pairam sobre a civilização industrial e a condição humana. Cruzarei estas reflexões com a do pensador espanhol Amador Fernández-Savater no seu artigo recente intitulado ‘La rebelión frente al mal’ (2025), onde evoca Anders (e Hannah Arendt).
O momento actual é marcado por uma sensação paradoxal. Por um lado, nunca tivemos tanta consciência da precariedade do nosso mundo: a crise ambiental, o esgotamento de recursos, as desigualdades globais e as novas ameaças da guerra ou de um conflito nuclear, tornam impossível pensar o futuro sem pressentir o colapso (ver também o meu post de Julho). Por outro, a vida quotidiana parece manter-se inalterada (para alguns), como se estas ameaças não fossem reais, ou como se já não fosse possível enfrentá-las. Esta coexistência entre a consciência do desastre e a ‘normalidade’ aparente é o ponto de partida do ensaio de Marina Garcés.
Ao mesmo tempo, se olharmos para o século XX, encontramos em Günther Anders um diagnóstico igualmente inquietante: a tecnificação crescente da vida transformou-nos em peças de uma maquinaria global que excede a nossa compreensão e anula a nossa capacidade de agir eticamente. Em Nós, filhos de Eichmann (escrito sob a forma de uma carta dirigida a Klaus Eichmann, filho de Adolf Eichmann), Anders mostra como a herança do nazismo não é apenas um passado ‘monstruoso’, mas uma condição presente: a banalização do mal e a diluição da responsabilidade tornaram-se características estruturais da modernidade e do mundo tecnificado.
Garcés e Anders, embora em contextos diferentes, enfrentam o mesmo problema: como pensar a responsabilidade humana num mundo em que o poder do colectivo, do técnico e do sistémico parecem esmagar a acção individual? O que podemos fazer quando sabemos que já vivemos no “depois” (Garcés) ou quando nos descobrimos incapazes de assumir as consequências das nossas acções (Anders)?
Garcés parte, por um lado, de um diagnóstico que ela descreve assim: “O facto decisivo do nosso tempo é que, em conjunto, sabemos muito e, ao mesmo tempo, podemos muito pouco. Somos, em simultâneo, ilustrados e analfabetos.” Por outro, defende que vivemos numa condição póstuma. Esta metáfora significa que nos movemos como sobreviventes de algo que ainda não aconteceu totalmente, mas cujo resultado já sabemos (ou pressentimos). O colapso ambiental, a erosão das democracias, a precarização generalizada da vida e a lógica extrativista do capitalismo global fazem com que o presente seja experimentado como ruína antecipada. Garcés clarifica que não se trata do conceito de pós-modernidade dos anos 1980 e 1990, que anunciava o fim das grandes narrativas e celebrava a fragmentação, a ironia e a pluralidade. A condição póstuma, em contraste, não é festiva nem libertadora. É pesada, marcada pela consciência da insustentabilidade. É como viver numa casa que ameaça ruir, mas onde continuamos a cozinhar, dormir e trabalhar como se tudo fosse durar para sempre. Garcés faz ainda questão de destacar que a condição póstuma é um corolário do projecto da modernidade (ou modernização), mas não necessariamente do iluminismo, que ambicionava a real emancipação dos cidadãos contra a credulidade e o autoritarismo (político, religioso, moral). Para Garcés, o projecto histórico da modernização, deturpou o carácter emancipatório das ideias iluministas, sendo caracterizado pela dominação das elites europeias, que conduziu ao colonialismo e ao capitalismo, e promovendo a dualização da realidade em todas as suas dimensões, além da hierarquização do seu valor, que resultaram nas noções (ocidentocêntricas) de progresso e de desenvolvimento.
Garcés recorre às reflexões de outros autores, como a escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Alexievich, que recolheu vozes do quotidiano em cenários de catástrofe como Chernobyl ou a guerra do Afeganistão. Alexievich fala de uma “catástrofe do tempo”, afirmando que já não vivemos em tempos lineares, de progresso ou de memória, mas em tempos interrompidos, onde o futuro não se abre e o passado não cessa de pesar. Esta experiência temporal de viver no depois, sem horizontes claros, ressoa fortemente na noção de condição póstuma.
Face a este diagnóstico, Garcés não se resigna. Pelo contrário, reivindica um novo iluminismo radical. Trata-se de recuperar o gesto emancipador do iluminismo clássico — a renúncia da credulidade, a confiança no pensamento crítico e na emancipação coletiva — mas libertando-o das ilusões universalistas, eurocêntricas e lineares do século XVIII. Ao mesmo tempo, Alexievich defende uma “sabedoria do não-saber”. Diante do excesso de informação e da impotência face às catástrofes, trata-se de reconhecer os limites da nossa compreensão e de valorizar o testemunho, a escuta ou o silêncio como formas de resistência. Garcés vê nessa sabedoria uma chave ética: não fingir que sabemos ou controlamos tudo, mas assumir a fragilidade como parte da condição humana contemporânea: “O não-saber, a partir deste gesto soberano de se declarar fora do sentido já herdado, é o contrário do analfabetismo como condenação social. (…) Declararmo-nos insubmissos à ideologia póstuma é, para mim, a principal tarefa do pensamento crítico hoje.”
O iluminismo radical de Garcés reúne uma série de características centrais. É um pensamento situado na crise: não parte da promessa de progresso, mas da consciência do colapso; e não esconde as ruínas, encontrando nelas um ponto de partida. É também uma crítica ao ‘presentismo’: em vez de vivemos presos ao “agora”, incapazes de pensar o futuro, o iluminismo radical procura reabrir o tempo da imaginação e da possibilidade. Contra o individualismo neoliberal, Garcés aposta na inteligência coletiva: na construção de um “nós” crítico, uma comunidade de pensamento e acção que reconhece a interdependência. Mas também na responsabilidade partilhada: a emancipação não como triunfo de um sujeito autónomo, mas o assumir de responsabilidades comuns no seio de uma vida planetária. Garcés escreve: “A tempestade iluminista (…) é um combate do pensamento contra os saberes estabelecidos e as suas autoridades, um combate do pensamento ao qual se confia a convicção de que, pensando, podemos tornar-nos melhores, e de que só merece ser pensado aquilo que (…) contribui para isso. Resgatar esta convicção não é acorrer em resgate do futuro com que a modernidade sentenciou o mundo ao não-futuro. Muito pelo contrário, é começar a encontrar os indícios para alinhavar novamente um tempo do vivível.” Nesta perspetiva, a sabedoria do não-saber evocada por Alexievich não é ignorância, mas uma disposição para aprender com a fragilidade e para agir sem garantias. É o contrário da húbris tecnocientífica e do cinismo pós-moderno: é uma abertura humilde e radical à tarefa de pensar e viver em comum.
Se Garcés fala a partir da crise contemporânea, Anders escreveu no rescaldo do nazismo e da bomba atómica. O seu diagnóstico, contudo, ressoa fortemente no presente. Em Nós, filhos de Eichmann, Anders introduz uma tese perturbadora: Eichmann, o burocrata que organizou logisticamente a deportação de milhões de pessoas para campos de extermínio, não foi um monstro singular, mas o protótipo do homem moderno. A sua obediência cega, a sua incapacidade de pensar eticamente o que fazia, são sintomas de um mundo onde a técnica, a burocracia e a divisão do trabalho dissolvem a responsabilidade individual.
Segundo Anders, o problema não é apenas histórico - é estrutural. Vivemos num mundo tecnificado, imbuído do espírito do projecto da modernidade, em que a máquina excede a nossa sensibilidade e a nossa imaginação, e, consequentemente, o nosso pensamento ético. Produzimos armas capazes de destruir o planeta, mas não conseguimos conceber moralmente a magnitude do seu efeito. Este descompasso entre capacidade técnica e capacidade ética é o núcleo da sua crítica. Ele fala de maquinidade: o predomínio de sistemas técnicos que se autonomizam e reduzem o humano a peça dispensável. Nesse contexto, a perda da natureza humana é a desumanização que ocorre não apenas pela violência extrema (Auschwitz, Hiroshima), mas pela normalização de uma vida onde as pessoas deixam de ser sujeitos responsáveis e tornam-se peças de um engrenagem. No seu ensaio, Anders alerta-nos que não basta lamentar o passado. Precisamos reconhecer que somos todos “filhos de Eichmann”, isto é, herdeiros de um mundo em que a responsabilidade ética e social foi tecnicamente neutralizada - e Anders não sabia ainda o que viria a seguir, com a revolução digital e a IA.
Para Anders, os desastres do século XX foram simplesmente o resultado lógico de um processo pernicioso que já estava em curso há muitos anos, envolvendo a exclusão gradual da humanidade de todos os processos de produção – e, em última análise, do mundo criado por esses processos. A verdadeira catástrofe neste sentido, que Anders esperava tornar visível, residia na transformação da condição humana, transformação essa que se tornara tão naturalizada e imperceptível quanto destrutiva. No entanto, Anders encontra também uma chave de saída a partir do exemplo do 'piloto de Hiroshima', Claude Eatherly (ver adiante).
Apesar da distância temporal e conceptual, os pontos de contacto entre Garcés e Anders são evidentes. Garcés descreve a experiência de viver no depois, num tempo que perdeu continuidade. Anders mostra como a técnica gera esse mesmo efeito: a máquina produz consequências que nos ultrapassam, suspendendo a nossa capacidade de temporalizar o futuro. Em ambos os casos, o tempo humano é esmagado por forças que não controlamos.
A insustentabilidade de Garcés encontra eco na desumanização de Anders. Ambos mostram que a vida está ameaçada estruturalmente, seja pelo colapso vital e planetário, seja pela incapacidade de manter a consciência ética. Garcés propõem uma sabedoria que aceita limites e fragilidade. Anders, pelo contrário, mostra que já vivemos numa impotência moral que não é escolhida, mas imposta pelo mundo maquinizado. O contraste é revelador: entre uma ética da humildade activa e um diagnóstico da neutralização técnica.
No cruzamento destas reflexões, a responsabilidade aparece como desafio inadiável, embora profundamente frágil. Garcés aposta numa responsabilidade coletiva, relacional, planetária, por via de uma emancipação que ilumina caminhos do que podemos fazer. Anders alerta para a erosão da responsabilidade individual em sistemas técnicos. Alexievich acrescenta a importância de ouvir, testemunhar, reconhecer o não-saber como gesto responsável. Ouço aqui também ecos da “response-ability” proposta por Donna Haraway – ver p.ex. aqui. E é ainda por esta via que recorro ao texto de Amador Fernández-Savater, que reflecte sobre a raiz dos males que nos assolam e como interrompê-los, a partir do boicote espontâneo de um evento desportivo - a ‘Volta a Espanha’.
O autor começa por invocar as reflexões de Hannah Arendt (em ‘Eichmann em Jerusalém’ de 1963) e de Günther Anders sobre a origem e natureza do mal (ou talvez antes da maldade), ou seja, da barbárie moderna e do horror da modernidade. Para Arendt, a banalidade do mal é a incapacidade de pensar e a submissão maquinal à hierarquia; para Anders, como vimos, o mal é a incapacidade de sentir e imaginar que resulta da tecnificação da existência e da divisão do trabalho: “Incapacidade de sentir, incapacidade de pensar, incapacidade de imaginar: creio que Arendt e Anders, cada um à sua maneira, associam a disseminação da barbárie e do mal a uma crise geral de responsabilidade, da capacidade de assumir o controlo do que vivemos, de tirar consequências das nossas acções. O mal está inscrito em estruturas que tornam os sujeitos irresponsáveis, transformados em toda a parte em simples objetos que não sabem o que fazem, não sentem o que fazem, não pensam o que fazem.”
Fernández-Savater
relembra que o pessimismo de Anders é refreado pela sua evocação do caso de Claude
Eatherly (com quem manteve correspondência - ver aqui), o piloto de um dos bombardeiros
envolvidos no lançamento da bomba sobre Hiroshima, que renegou, a posteriori, o seu papel de herói
nacional, entregando-se à causa dos movimentos pacifistas e anti-nucleares.
Eatherly torna-se o rebelde por excelência da sociedade tecnificada para
Anders, que nos propõe escolher se queremos ser ‘filhos de Eichmann’ ou ‘filhos
de Eatherly’: se participamos no ‘monsturoso’ ou se nos rebelamos contra ele. Citando
Fernández-Savater: “O que sustenta toda
esta estrutura é a desconexão sensível e quotidiana entre as coisas, a
descontinuidade entre o que sentimos, o que pensamos, o que imaginamos e o que
fazemos. (…) O mal é automático, o
mal é o automático. Apaga as consequências do que fazemos, cega-nos para as
implicações dos modos de vida em que estamos imersos. O mal propaga-se pela não
resistência ao mal.” É aqui que o autor vê o poder dos bloqueios da ‘Vuelta’
em Espanha: o poder da interrupção, que convoca precisamente a suspensão da
normalidade, da maquinaria: “A
interrupção como modo de ação é capaz de provocar um acontecimento (algo
acontece, algo se move, onde tudo o resto estava parado) porque compromete a
verdade dos sujeitos, o sentido da vida para eles. Esse é o seu poder, essa é a
sua eficácia, esse é o seu único método.” Fernández-Savater convida
finalmente a substituir o sentimento de culpa pelo de responsabilidade: “Os automatismos protectores caem, já não
podemos simplesmente obedecer, as circunstâncias obrigam-nos a pensar, devemos
tirar consequências do que acontece e responder. Assumir a responsabilidade é
precisamente isso: responder. Inventar algo a que responder.”
O cruzamento entre as reflexões de Anders, Garcés e Fernández-Savater abre uma tensão desafiante. Por um lado, Garcés lembra-nos que mesmo no colapso é preciso insistir na crítica, na imaginação e na responsabilidade coletiva. Por outro, Anders alerta-nos para a profundidade da nossa impotência: somos capazes de fabricar a nossa própria extinção, mas incapazes de a assumir. Fernández-Savater invoca um gesto ético que recusa tanto a desumanização tecnocrática quanto a resignação total.
Talvez o gesto político do nosso tempo seja precisamente sustentar aquela tensão. Nem ceder ao pessimismo absoluto, que nos condenaria à paralisia, nem ao optimismo ingénuo (ou o conformismo), que ignora a gravidade da situação. Por um lado, pensar no limiar: entre a denúncia da máquina que nos excede, a experiência temporal da catástrofe e a invenção de práticas emancipatórias no seio da condição póstuma. Por outro, agir com espontaneidade: a partir de uma sensibilidade e de um pensamento emancipado e crítico, encontrando formas de interromper a barbárie.
Afinal, como lembra Garcés, o iluminismo radical não é a crença num futuro garantido, mas a coragem de afirmar que ainda há algo a fazer, mesmo quando tudo parece condenado. E como lembra Anders, essa tarefa só fará sentido se encararmos de frente a herança de Eichmann, reconhecendo que a responsabilidade não é apenas individual nem abstrata, mas concreta e histórica. Alexievich sugere ainda que essa responsabilidade pode começar na escuta e na aceitação da nossa vulnerabilidade. Fernández-Savater convida-nos a exercitar a nossa responsabilidade como sujeitos políticos, não compactuando com a normalização da barbárie. Entre a consciência do desastre, o gesto ético e a invenção de novas possibilidades, talvez se jogue a nossa derradeira oportunidade de continuar a chamar “humana” (mas não antropocêntrica) à condição que partilhamos.
Leituras
adicionais:
Artigo e
entrevista no Público sobre o lançamento das traduções portuguesas dos ensaios
de Anders e Garcés: