sábado, 25 de outubro de 2025

O mundo segundo as plantas: um vasto campo de possibilidades de devir-com

A existência das plantas é por si mesma uma modificação global do meio cósmico, isto é, do mundo que elas penetram e pelo qual são penetradas. (…) Ser significa para elas fazer mundo, e, inversamente, construir (o nosso) mundo, fazer mundo não passa de um sinónimo do ser.Emanuele Coccia

A inteligência vegetal implica, ao nível mais básico, a constituição subjectiva do espaço e do tempo vividos pelas próprias plantas. (…) [O seu] modo enraizado de ser e pensar é caracterizado por uma extrema atenção ao local e ao contexto de crescimento e, portanto, por uma sensibilidade que, por vezes, excede a dos animais.Michael Marder

Se a vida vegetal é também uma vida cultural, esta pressupõe a actividade de uma mente que se exercita antes de tudo e, quase exclusivamente, na forma do próprio corpo. (…) Cada planta parece inventar e abrir um plano de existência no qual não se dá, de facto, oposição entre crescimento e fantasia.Emanuele Coccia

Este post surgiu na sequência da minha participação numa ‘conversa ecotópica’ que decorreu durante o Silvestre ’25, a convite dos seus promotores (Ordem do Ó e Daniel Tércio), e que teve por base a pergunta “Como é que o mundo aparece a uma planta?”. Acompanharam-me nesse exercício de pensar em conjunto a Fernanda Botelho, o João Beles e o Pedro Ramos (como moderador).

A minha primeira aproximação à pergunta foi a de confessar que, não sendo eu uma planta, ousar dar uma resposta poderia ser desonesto da minha parte e seria sempre um exercício especulativo. Mas isso não quer dizer que não fosse legítimo tentar fazê-lo – quer a partir da experiência directa de contacto com as plantas, quer indirectamente através do conhecimento adquirido por outros. Assumi que valia a pena arriscar, mesmo projectando a minha/nossa visão enviesada de humanos, isto é, sem conseguir evitar antropomorfizar aquele esforço. O que me pareceu mais importante foi tentar não transformar esse antropomorfismo em antropocentrismo, recusando a desvalorização ou o desprezo que projectamos sobre as plantas quando as reduzimos a recursos a ser explorados ou consumidos.

Na verdade, as plantas foram frequentemente olhadas como seres inferiores ou menos dignos de atenção por não possuírem os comportamentos activos dos animais – daí expressões com sentido pejorativo como ‘vegetar’ ou ‘vegetal’ e fenómenos como a ‘cegueira botânica’. Aquela visão hierárquica estende-se mesmo ao interior do reino vegetal, distinguindo as plantas ‘superiores’ (plantas com flor) das ‘inferiores’ (fetos e musgos), consoante o seu grau de complexidade estrutural, mas também menosprezando as plantas que não têm utilidade para o ser humano ou que competem com aquelas que são consideradas úteis – escrevi sobre isso aqui. De facto, não é difícil constatar que a nossa relação histórica e cultural com as plantas tem sido muitas vezes míope, interesseira e utilitarista, embora sempre tenha havido quem soube ouvir e sentir aquilo que as plantas nos comunicavam, inserindo-as nas suas histórias, mitos e cosmovisões – e recorrendo, muitas vezes, à antropomorfização. Na verdade, tem-se assistido nas últimas décadas a uma crítica à desvalorização da vida vegetal, que tem ajudado a desconstruir a redução do mundo vegetal a “meras paisagens objectificadas e associais, seres caracterizados por inércia e apatia, fixidez e imobilidade, ausência de consciência, sentidos e palavras” – que no português do Brasil se designa por “virada das plantas” (ver p.ex. aqui).

Ilustração de Mathilde Roussel para o livro
'The Philosopher's Plant' de Michael Marder

Comecemos então por abordar o encontro das plantas com o mundo. Nesse exercício, deparamo-nos frequentemente com comparações entre plantas e animais em termos de percepção e de consciência do seu entorno. E a comparação não é favorável às plantas: não se mexem, não vêem, não ouvem, não pensam! No entanto, sabemos bem que as plantas reconhecem os factores biofísicos dos quais dependem: a luz (e a sombra), a temperatura, a humidade, a gravidade, os nutrientes do solo, e até diversos compostos voláteis no ar – e reagem a esses estímulos (ver p.ex. aqui). A aparência de imobilidade é outra ideia distorcida que é posta em causa pelas evidências: as plantas podem estar fixas ao seu substrato, mas tanto as suas partes aéreas, como as suas raízes, estão em constante movimento, mas num ritmo geralmente muito mais lento do que nos animais – ver p.ex. aqui ou aqui. Dado o estado actual do conhecimento sobre a biologia vegetal, podemos afirmar que as plantas vêem sem olhos, cheiram sem nariz, ouvem sem ouvidos, transpiram sem pele, movem-se sem pernas e pensam sem cérebro – ver p.ex. aqui ou aqui. Acontece que nas plantas, ao contrário de muitos animais, não existem órgãos sensoriais especializados e a capacidade de percepcionar e sentir o mundo está espalhada pelas suas principais estruturas – folhas, ramos, troncos e raízes –, embora existam diferenças marcadas, em particular, entre as partes expostas e as partes subterrâneas, que respondem a diferentes estímulos. Portanto, embora não se consigam deslocar, as plantas estão profundamente imbricadas e abertas para o mundo.

Outras observações recentes mostraram ainda que as plantas lutam por território, procuram alimento, evitam predadores, fazem armadilhas para as suas presas, conseguem distinguir indivíduos da sua espécie daqueles de espécies diferentes, são capazes de detectar e de responder a sons (de água ou de insectos), e são até capazes de aprender com a experiência – ver aqui, aqui ou aqui. Logo, estão vivas no mesmo sentido que os animais e, assim como eles, exibem formas de memória e de comportamento. Há quem apelide esses comportamentos de ‘consciência’ ou ‘inteligência vegetal’ – ver adiante e aqui ou aqui. No entanto, como disse acima, muitos destes conceitos têm origem no que conhecemos da biologia animal e, ao usá-los para descrever os processos observáveis nas plantas, estamos a ‘animalizá-las’ – o que é uma projecção que pode reduzir ou anular o valor intrínseco das plantas e a sua identidade própria.


Em vez de continuar a abordar a questão de como é que as plantas percebem e reagem ao mundo, podemos voltar à pergunta inicial invocando o autor que a formulou, o filósofo Michael Marder (que já citei anteriormente noutros posts), num ensaio de 2012 (aqui), mas também no seu livro de 2013 “Plant-Thinking: A Philosophy of Vegetal Life”, onde recorre, quer ao conhecimento científico, quer ao conhecimento vernacular, sobre o mundo vegetal. Segundo Marder, o mundo aparece a uma planta não como uma colecção de objectos distintos, mas como uma rede complexa (ou um mosaico dinâmico) de nutrientes essenciais e factores espácio-temporais. As plantas experienciam o seu ambiente como um fluxo constante de estímulos, aos quais respondem com um tipo de memória ao nível celular, em vez de formarem imagens mentais conscientes. Este “pensamento vegetal” é caracterizado por uma “intencionalidade não consciente” e não totalizante, focada na aquisição de recursos e na sobrevivência no seu meio imediato, levando a uma percepção altamente reactiva (‘responsive’) e dependente do contexto envolvente. Portanto, para Marder, as plantas não são seres passivos nem inertes: para ele, o mundo aparece à planta como uma rede de interacções subtis e contínuas, onde a distinção entre actividade e passividade se dissolve.

Marder argumenta que as plantas não agem como os humanos (impondo a vontade), mas são activamente interactivas, moldando e sendo moldadas pelo ambiente. A sua percepção não é baseada nos sentidos humanos, mas numa existência exposta e aberta ao mundo, onde luz, água, solo e ar são constantemente interpretados e integrados. Para ele, o mundo vegetal é um modelo de simbiose, diversidade e adaptação, em contraste com a homogeneização e dominação humanas. Assim, Marder vê nas plantas um modo alternativo de ser-no-mundo: não através do domínio, mas da coexistência, da vulnerabilidade e da interpenetração. A planta, para ele, é um ser pensante de forma não cognitiva e não discursiva, daí usar a expressão “pensamento vegetal” que desafia a filosofia a sair do antropocentrismo e a repensar a subjetividade e a ética ecológica.

Devo clarificar que, para Marder, o “pensamento vegetal” refere-se, simultaneamente, ao modo de pensar não cognitivo, não ideacional e não imagético próprio das plantas (a que ele chama “pensar sem a cabeça”); ao pensamento humano sobre as plantas e ao modo como este é alterado pelo seu encontro com o mundo vegetal; e, finalmente, à relação simbiótica contínua entre este pensamento transfigurado e a existência das plantas – ver aqui. Estes últimos aspectos têm sido desenvolvidos pela ecóloga evolutiva, focada no comportamento das plantas, Monica Gagliano, em particular no seu livro “Thus Spoke the Plant” (2018), onde explora também os temas da sensibilidade, subjectividade e imaginação vegetais. Para não alongar demasiado este post, deixarei um mergulho mais profundo no pensamento de Gagliano para um escrito futuro.


Um outro filósofo que abordou o mundo vegetal foi o italiano Emanuele Coccia, em particular no seu livro “A vida das plantas, uma metafísica da mistura” (2016), onde oferece também ele, de certa forma, uma resposta à pergunta de Marder: o mundo não aparece meramente à planta, ele é feito por ela e através dela. Coccia inverte a perspectiva tradicional: em vez de ver a planta como um objecto passivo no mundo, ele coloca-a como o sujeito primordial da cosmogonia. A planta não contempla o mundo de fora; ela faz e refaz o mundo por dentro, através da sua existência misturada com o ar, a luz, a água e o solo: “É já no corpo da planta que tudo está em tudo: o céu está na terra, a terra é impelida para o céu, o ar se faz corpo e extensão, a extensão é um laboratório atmosférico.

Para Coccia, as plantas são forças criadoras (cosmogónicas) que transformaram a Terra num planeta habitável (para os animais) – o autor refere-se na verdade ao papel de cianobactérias primitivas na criação de uma atmosfera rica em oxigénio, na medida em que foram os primeiros seres a produzir oxigénio por fotossíntese (as algas, as plantas e as cianobactérias modernas continuam a fazê-lo), tendo conduzido ao evento conhecido por ‘Grande Oxigenação’ que se iniciou há cerca de dois mil milhões de anos. Ele acrescenta que o seu poder criador se estende à capacidade de transformar energia solar em matéria viva, funcionando como um “alambique alquímico” ao ar livre, argumentando que a vida orgânica, tal como a conhecemos, é uma consequência directa da capacidade vegetal de misturar elementos, de ligar a terra e o céu. Assim, o mundo que co-habitamos – com ar respirável, ecossistemas complexos e ciclos energéticos e matéricos – seria um produto da vida vegetal. Portanto, o mundo aparece à planta não como um cenário externo, mas como um processo contínuo de co-criação entre planta e mundo.


Faço aqui um pequeno aparte para fazer notar que, embora esteja alinhado, no essencial, com a visão de Coccia, parece-me que ele acaba por inverter o antropocentrismo em fitocentrismo e não consegue evitar algum pensamento hierárquico, ignorando o papel dos micróbios, e em particular do vasto e diverso mundo bacteriano, como (co)criadores de mundo, pelo menos em pé de igualdade com as plantas – ver aqui ou aqui.

Coccia invoca ainda mais dois aspectos fundamentais da ontologia vegetal. Por um lado, a planta, dada a sua imobilidade e total exposição ao ambiente, torna-se o “observatório mais puro” da totalidade cósmica. Em contraste com os animais, que se movem para selecionar o que percebem, a planta está sempre em contacto com múltiplos elementos ao mesmo tempo: luz, vento, chuva, gases. A planta é o observador (e mediador) cósmico por excelência, onde não há separação entre sujeito e objecto: “a sua vida é uma interminável contemplação cósmica, sem dissociar os objectos e as substâncias, ou, dizendo-o de outro modo, aceitando todas as nuances, até se fundir com o mundo, até coincidir com a sua substância”. Nesse sentido, o mundo aparece à planta como uma “mistura permanente”, uma fusão de substâncias e forças. A planta não tem um “ponto de vista” sobre o mundo, mas é um “ponto de vida” a partir do qual o cosmos se revela como um tecido vivo e interpenetrado. A planta pode assim constituir para nós próprios um “mediador do mundo”. Como afirma Coccia: “Nunca compreenderemos o que é uma planta sem termos compreendido o que é o mundo.


Por outro lado, um dos conceitos centrais de Coccia é a “metafísica da mistura”. Ele propõe que a vida é, essencialmente, um processo de mistura recíproca. Ao respirar, os animais absorvem as ‘sobras’ do metabolismo das plantas (o oxigénio). As plantas, por sua vez, absorvem o dióxido de carbono exalado pelos animais. Para Coccia, este ciclo não é apenas biológico, mas ontológico: a vida é o ritmo dessa interpenetração. Ele apelida esta interconexão e interpenetração o “sopro da vida”. O sopro é para Coccia a chave para a coincidência entre mundo e vivente, entre sentido e existência: é o que permite que o mundo seja vivido, sentido e produzido a partir de dentro. Assim, o mundo aparece à planta como um fluxo constante de trocas materiais e energéticas, onde as fronteiras se dissolvem. A planta vive num estado de mistura universal, onde o exterior e o interior, o ser e o mundo, coincidem. Neste aspecto, a tese de Coccia apresenta evidentes afinidades com a proposta da antropóloga cultural canadiana Natasha Myers (que citei em posts anteriores) de “conspirar com as plantas”, como forma de coexistência e de reciprocidade entre humanos e plantas.

O carácter co-criativo (podíamos dizer, simpoiético, na acepção da filósofa norte-americana Donna Haraway – ver p.ex. aqui) da ontologia vegetal é obviamente extensível às restantes formas de vida, incluindo os humanos. Ou seja, todos os seres vivos são sujeitos culturais – criadores de mundo. Esta visão realista e honesta do mundo vivo contrasta com a visão distorcida do excepcionalismo humano, ainda comum, herdada do Iluminismo e da Modernidade (naturalmente rejeitada por qualquer dos autores que citei). Na verdade, Marder, Coccia, Myers, Haraway e outros tantos pensadores, sugerem que temos muito a aprender com as plantas, instando-nos a adoptar formas de ver e estar no mundo em consonância com aquelas que podemos apreciar no mundo vegetal – ver adiante.


Uma das manifestações do carácter co-criativo da interacção das plantas com o mundo é o fenómeno de co-evolução que ocorre entre certas plantas e os insectos que as polinizam, o qual tem gerado uma diversidade morfológica extraordinária de uma das estruturas mais notáveis das plantas – as flores, ver p.ex. aqui. Numa das famílias das plantas com flor, as orquídeas, essa interacção levou a relações tão íntimas entre a planta e o seu insecto polinizador que, em certos casos, a flor mimetiza o corpo da fêmea de uma única espécie de abelha que é o seu principal polinizador (note-se que se trata de um abelha solitária, ou seja, não gregária, como as abelhas melíferas). A orquídea seduz assim os machos a tentar copular com a sua flor, convertendo o macho (enganado) em disseminador do seu pólen. Donna Haraway dá precisamente como exemplo de simpoiese (no seu livro “Staying with the trouble”) a orquídea Ophris apifera (ou erva-abelha, espécie que ocorre em Portugal) cuja abelha polinizadora se extinguiu (pelo menos numa parte da sua área geográfica natural), constituindo pois a sua flor a única imagem que temos do que seria a forma daquele insecto. Ilustrando o seu argumento com um cartoon da autoria de Randall Munroe (que reproduzi no meu post sobre simpoiese), Haraway sugere que a flor da erva-abelha pode ser vista como uma tradução vegetal (ou ilustração tridimensional) do corpo de um insecto – neste caso, a sua abelha polinizadora – no seu próprio corpo! Pode ter demorado talvez centenas de milhares de anos a ser aperfeiçoada, mas é certamente uma obra de imaginação vegetal notável. Tanto nesta, como em centenas de outras espécies em que os mesmos processos co-criativos estiveram em jogo.

Acompanhando as abordagens dos autores que citei neste post, podemos afirmar que as plantas exibem um grau de sofisticação na sua relação com o mundo, que validam o recurso a expressões como “sensibilidade vegetal” ou mesmo “inteligência vegetal” para descrever os processos complexos que estão envolvidos nessas interacções e entrelaçamentos. Ao mesmo tempo, é importante não assumir que a expressão “inteligência vegetal” significa que as plantas pensam ou sentem como os humanos, mas sim que elas possuem capacidades próprias e complexas de processamento de estímulos e de adaptação que lhes permitem sobreviver e prosperar nos ambientes onde ocorrem e onde interagem com múltiplos outros agentes. Nesta perspectiva, não-antropocêntrica, o mundo aparece a uma planta, como a qualquer outro vivente, como um campo de possibilidades de estar no mundo e de fazer mundo, em processos de devir em conjunto, naturalmente simpoiéticos e co-criativos.

Ilustração de Mathilde Roussel para o livro
'The Philosopher's Plant' de Michael Marder

Mas existem também ilações éticas e políticas a retirar destes exercícios filosóficos. Marder propõe que pensar como uma planta é sair da lógica do controlo e da totalização, e abraçar a exposição contínua ao mundo. As plantas usam energia de forma não extrativa e operam de modo descentralizado e simbiótico. Um galho pode tornar-se uma nova árvore; as raízes interligam-se em redes subterrâneas; e não há um “cérebro” que controle o todo. Marder vê nisso um modelo político alternativo não hierárquico, resiliente e adaptável, espalhando-se como rebentos em diferentes locais. Para ele, a política humana pode aprender com as plantas a ser mais flexível e colaborativa e menos autoritária ou extrativista.

Marder insiste que “ainda não é tarde demais para aprender com as plantas”. Elas são sobreviventes sagazes e capacitados, com milhões de anos de adaptação, e promovem a diversidade em vez da dominação. Diferentemente dos humanos, que frequentemente destroem ecossistemas, as plantas sustentam e ampliam a vida. Ele fala em “pedagogias vegetais”: lições de resiliência, comunicação eficiente, solidariedade e integração (simbiose). Eu acrescento ainda a desaceleração, inspirada na temporalidade própria das plantas, que estimula a contemplação e a atenção ao mundo.


Marder refere ainda que as plantas habitam uma heterotemporalidade — um tempo do outro, determinado pelos ciclos naturais como as estações, a luz solar e os ritmos diários. Para ele, as plantas não possuem um tempo próprio, pois a sua existência está profundamente entrelaçada com forças externas. Elas não lutam contra a repetição, como fazem os sujeitos humanos, mas habitam-na plenamente, crescendo e decompondo-se em sintonia com o ambiente. Essa ausência de identidade fixa torna-as radicalmente abertas ao outro, vivendo um tempo de acolhimento contínuo.

Por seu lado, Coccia enfatiza que pensar a partir das plantas é pensar um mundo onde viver juntos não é uma escolha política, mas antes uma realidade ontológica. Segundo ele, as plantas são o fundamento da existência e ensinam-nos que a vida é essencialmente mistura e comunhão com o mundo. Com elas aprendemos que a nossa própria existência é um fenómeno relacional e generativo, não individual mas colectivo. Ele afirma que as plantas vivem em perpétua contemplação do mundo, fundindo-se com os elementos — sol, água, ar — e renovando-se em ciclos incessantes de crescimento, floração e reprodução. A sua existência não está voltada para um futuro próprio, mas para a geração contínua da vida, simbolizada na flor, que é o “sexo do mundo”. Pensar (e devir) com as plantas, mais do que antropomorfizá-las, é vegetalizar o humano. E em pleno Antropoceno, é afinal também uma urgência ética e ecológica.


Termino como uma citação do texto de abertura do livro “Vozes Vegetais – Diversidade, Resistências e Histórias da Floresta” (2020), co-organizado por Joana Cabral de Oliveira e colegas da USP (Universidade de São Paulo) e que reúne ensaios e depoimentos de múltiplos autores, onde se incluem descrições de práticas quotidianas e de cosmovisões de diferentes comunidades indígenas do Brasil, informadas pelo relacionamento com as plantas do seu entorno: Ao modo das plantas, há pressa em vegetar. O que temos nós a aprender com elas? Se nelas enovelados, quem mesmo, doravante, seremos nós? Plantas são trilha e morada de outros seres. Humanos colhem e pássaros bagunçam os frutos. Abelhas fazem festa nas flores. Galhos se comunicam com o vento, raízes com as hifas, sementes pegam carona nos fluxos e asas. Vegetar é crescer em contiguidade com o mundo, coabitar lugares, aderir e fazer espaços, engajarnos com aquilo que nos circunda – ou, antes, nos atravessa. Criar raiz e lançar sementes. Desterritorializar-se. Propagar, cortar, distribuir, desmembrar-se em qualquer ponto e depois se reconectar. Polinizar, cruzar, misturar, gerar o imprevisível. Brotar na terra, crescer, florescer, frutificar e apodrecer, voltar para a terra. Transformação é o nome do jogo. Vegetar é uma estratégia.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Pode uma emancipação radical refrear o mundo tecnificado e o colapso anunciado?

Este post nasce da leitura dos ensaios, traduzidos recentemente para português, de dois filósofos europeus (ambos nascidos no século XX, mas de gerações diferentes): ‘Novo Iluminismo Radical’ (2017/2023) da catalã Marina Garcés e ‘Nós, Filhos de Eichmann’ (1964/2025) do alemão Günther Anders. O que mais me interessou foi o entrelaçamento das suas perspectivas (Garcés cita no seu ensaio o magnum opus de Anders: ‘A Obsolescência do Homem’) sobre como pensar e lidar com as ameaças existenciais que pairam sobre a civilização industrial e a condição humana. Cruzarei estas reflexões com a do pensador espanhol Amador Fernández-Savater no seu artigo recente intitulado ‘La rebelión frente al mal’ (2025), onde evoca Anders (e Hannah Arendt).

O momento actual é marcado por uma sensação paradoxal. Por um lado, nunca tivemos tanta consciência da precariedade do nosso mundo: a crise ambiental, o esgotamento de recursos, as desigualdades globais e as novas ameaças da guerra ou de um conflito nuclear, tornam impossível pensar o futuro sem pressentir o colapso (ver também o meu post de Julho). Por outro, a vida quotidiana parece manter-se inalterada (para alguns), como se estas ameaças não fossem reais, ou como se já não fosse possível enfrentá-las. Esta coexistência entre a consciência do desastre e a ‘normalidade’ aparente é o ponto de partida do ensaio de Marina Garcés.

Ao mesmo tempo, se olharmos para o século XX, encontramos em Günther Anders um diagnóstico igualmente inquietante: a tecnificação crescente da vida transformou-nos em peças de uma maquinaria global que excede a nossa compreensão e anula a nossa capacidade de agir eticamente. Em Nós, filhos de Eichmann (escrito sob a forma de uma carta dirigida a Klaus Eichmann, filho de Adolf Eichmann), Anders mostra como a herança do nazismo não é apenas um passado ‘monstruoso’, mas uma condição presente: a banalização do mal e a diluição da responsabilidade tornaram-se características estruturais da modernidade e do mundo tecnificado.

Garcés e Anders, embora em contextos diferentes, enfrentam o mesmo problema: como pensar a responsabilidade humana num mundo em que o poder do colectivo, do técnico e do sistémico parecem esmagar a acção individual? O que podemos fazer quando sabemos que já vivemos no “depois” (Garcés) ou quando nos descobrimos incapazes de assumir as consequências das nossas acções (Anders)?


Garcés
parte, por um lado, de um diagnóstico que ela descreve assim: “O facto decisivo do nosso tempo é que, em conjunto, sabemos muito e, ao mesmo tempo, podemos muito pouco. Somos, em simultâneo, ilustrados e analfabetos.” Por outro, defende que vivemos numa condição póstuma. Esta metáfora significa que nos movemos como sobreviventes de algo que ainda não aconteceu totalmente, mas cujo resultado já sabemos (ou pressentimos). O colapso ambiental, a erosão das democracias, a precarização generalizada da vida e a lógica extrativista do capitalismo global fazem com que o presente seja experimentado como ruína antecipada. Garcés clarifica que não se trata do conceito de pós-modernidade dos anos 1980 e 1990, que anunciava o fim das grandes narrativas e celebrava a fragmentação, a ironia e a pluralidade. A condição póstuma, em contraste, não é festiva nem libertadora. É pesada, marcada pela consciência da insustentabilidade. É como viver numa casa que ameaça ruir, mas onde continuamos a cozinhar, dormir e trabalhar como se tudo fosse durar para sempre. Garcés faz ainda questão de destacar que a condição póstuma é um corolário do projecto da modernidade (ou modernização), mas não necessariamente do iluminismo, que ambicionava a real emancipação dos cidadãos contra a credulidade e o autoritarismo (político, religioso, moral). Para Garcés, o projecto histórico da modernização, deturpou o carácter emancipatório das ideias iluministas, sendo caracterizado pela dominação das elites europeias, que conduziu ao colonialismo e ao capitalismo, e promovendo a dualização da realidade em todas as suas dimensões, além da hierarquização do seu valor, que resultaram nas noções (ocidentocêntricas) de progresso e de desenvolvimento.

Garcés recorre às reflexões de outros autores, como a escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Alexievich, que recolheu vozes do quotidiano em cenários de catástrofe como Chernobyl ou a guerra do Afeganistão. Alexievich fala de uma “catástrofe do tempo”, afirmando que já não vivemos em tempos lineares, de progresso ou de memória, mas em tempos interrompidos, onde o futuro não se abre e o passado não cessa de pesar. Esta experiência temporal de viver no depois, sem horizontes claros, ressoa fortemente na noção de condição póstuma.

Face a este diagnóstico, Garcés não se resigna. Pelo contrário, reivindica um novo iluminismo radical. Trata-se de recuperar o gesto emancipador do iluminismo clássico — a renúncia da credulidade, a confiança no pensamento crítico e na emancipação coletiva — mas libertando-o das ilusões universalistas, eurocêntricas e lineares do século XVIII. Ao mesmo tempo, Alexievich defende uma “sabedoria do não-saber”. Diante do excesso de informação e da impotência face às catástrofes, trata-se de reconhecer os limites da nossa compreensão e de valorizar o testemunho, a escuta ou o silêncio como formas de resistência. Garcés vê nessa sabedoria uma chave ética: não fingir que sabemos ou controlamos tudo, mas assumir a fragilidade como parte da condição humana contemporânea: “O não-saber, a partir deste gesto soberano de se declarar fora do sentido já herdado, é o contrário do analfabetismo como condenação social. (…) Declararmo-nos insubmissos à ideologia póstuma é, para mim, a principal tarefa do pensamento crítico hoje.

O iluminismo radical de Garcés reúne uma série de características centrais. É um pensamento situado na crise: não parte da promessa de progresso, mas da consciência do colapso; e não esconde as ruínas, encontrando nelas um ponto de partida. É também uma crítica ao ‘presentismo’: em vez de vivemos presos ao “agora”, incapazes de pensar o futuro, o iluminismo radical procura reabrir o tempo da imaginação e da possibilidade. Contra o individualismo neoliberal, Garcés aposta na inteligência coletiva: na construção de um “nós” crítico, uma comunidade de pensamento e acção que reconhece a interdependência. Mas também na responsabilidade partilhada: a emancipação não como triunfo de um sujeito autónomo, mas o assumir de responsabilidades comuns no seio de uma vida planetária. Garcés escreve: “A tempestade iluminista (…) é um combate do pensamento contra os saberes estabelecidos e as suas autoridades, um combate do pensamento ao qual se confia a convicção de que, pensando, podemos tornar-nos melhores, e de que só merece ser pensado aquilo que (…) contribui para isso. Resgatar esta convicção não é acorrer em resgate do futuro com que a modernidade sentenciou o mundo ao não-futuro. Muito pelo contrário, é começar a encontrar os indícios para alinhavar novamente um tempo do vivível.” Nesta perspetiva, a sabedoria do não-saber evocada por Alexievich não é ignorância, mas uma disposição para aprender com a fragilidade e para agir sem garantias. É o contrário da húbris tecnocientífica e do cinismo pós-moderno: é uma abertura humilde e radical à tarefa de pensar e viver em comum.


Se Garcés fala a partir da crise contemporânea, Anders escreveu no rescaldo do nazismo e da bomba atómica. O seu diagnóstico, contudo, ressoa fortemente no presente. Em Nós, filhos de Eichmann, Anders introduz uma tese perturbadora: Eichmann, o burocrata que organizou logisticamente a deportação de milhões de pessoas para campos de extermínio, não foi um monstro singular, mas o protótipo do homem moderno. A sua obediência cega, a sua incapacidade de pensar eticamente o que fazia, são sintomas de um mundo onde a técnica, a burocracia e a divisão do trabalho dissolvem a responsabilidade individual.

Segundo Anders, o problema não é apenas histórico - é estrutural. Vivemos num mundo tecnificado, imbuído do espírito do projecto da modernidade, em que a máquina excede a nossa sensibilidade e a nossa imaginação, e, consequentemente, o nosso pensamento ético. Produzimos armas capazes de destruir o planeta, mas não conseguimos conceber moralmente a magnitude do seu efeito. Este descompasso entre capacidade técnica e capacidade ética é o núcleo da sua crítica. Ele fala de maquinidade: o predomínio de sistemas técnicos que se autonomizam e reduzem o humano a peça dispensável. Nesse contexto, a perda da natureza humana é a desumanização que ocorre não apenas pela violência extrema (Auschwitz, Hiroshima), mas pela normalização de uma vida onde as pessoas deixam de ser sujeitos responsáveis e tornam-se peças de um engrenagem. No seu ensaio, Anders alerta-nos que não basta lamentar o passado. Precisamos reconhecer que somos todos “filhos de Eichmann”, isto é, herdeiros de um mundo em que a responsabilidade ética e social foi tecnicamente neutralizada - e Anders não sabia ainda o que viria a seguir, com a revolução digital e a IA.


Para Anders, os desastres do século XX foram simplesmente o resultado lógico de um processo pernicioso que já estava em curso há muitos anos, envolvendo a exclusão gradual da humanidade de todos os processos de produção – e, em última análise, do mundo criado por esses processos. A verdadeira catástrofe neste sentido, que Anders esperava tornar visível, residia na transformação da condição humana, transformação essa que se tornara tão naturalizada e imperceptível quanto destrutiva. No entanto, Anders encontra também uma chave de saída a partir do exemplo do 'piloto de Hiroshima', Claude Eatherly (ver adiante).

Apesar da distância temporal e conceptual, os pontos de contacto entre Garcés e Anders são evidentes. Garcés descreve a experiência de viver no depois, num tempo que perdeu continuidade. Anders mostra como a técnica gera esse mesmo efeito: a máquina produz consequências que nos ultrapassam, suspendendo a nossa capacidade de temporalizar o futuro. Em ambos os casos, o tempo humano é esmagado por forças que não controlamos.

A insustentabilidade de Garcés encontra eco na desumanização de Anders. Ambos mostram que a vida está ameaçada estruturalmente, seja pelo colapso vital e planetário, seja pela incapacidade de manter a consciência ética. Garcés propõem uma sabedoria que aceita limites e fragilidade. Anders, pelo contrário, mostra que já vivemos numa impotência moral que não é escolhida, mas imposta pelo mundo maquinizado. O contraste é revelador: entre uma ética da humildade activa e um diagnóstico da neutralização técnica.

No cruzamento destas reflexões, a responsabilidade aparece como desafio inadiável, embora profundamente frágil. Garcés aposta numa responsabilidade coletiva, relacional, planetária, por via de uma emancipação que ilumina caminhos do que podemos fazer. Anders alerta para a erosão da responsabilidade individual em sistemas técnicos. Alexievich acrescenta a importância de ouvir, testemunhar, reconhecer o não-saber como gesto responsável. Ouço aqui também ecos da “response-ability” proposta por Donna Haraway – ver p.ex. aqui. E é ainda por esta via que recorro ao texto de Amador Fernández-Savater, que reflecte sobre a raiz dos males que nos assolam e como interrompê-los, a partir do boicote espontâneo de um evento desportivo - a ‘Volta a Espanha’.


O autor começa por invocar as reflexões de Hannah Arendt (em ‘Eichmann em Jerusalém’ de 1963) e de Günther Anders sobre a origem e natureza do mal (ou talvez antes da maldade), ou seja, da barbárie moderna e do horror da modernidade. Para Arendt, a banalidade do mal é a incapacidade de pensar e a submissão maquinal à hierarquia; para Anders, como vimos, o mal é a incapacidade de sentir e imaginar que resulta da tecnificação da existência e da divisão do trabalho: “Incapacidade de sentir, incapacidade de pensar, incapacidade de imaginar: creio que Arendt e Anders, cada um à sua maneira, associam a disseminação da barbárie e do mal a uma crise geral de responsabilidade, da capacidade de assumir o controlo do que vivemos, de tirar consequências das nossas acções. O mal está inscrito em estruturas que tornam os sujeitos irresponsáveis, transformados em toda a parte em simples objetos que não sabem o que fazem, não sentem o que fazem, não pensam o que fazem.

Fernández-Savater relembra que o pessimismo de Anders é refreado pela sua evocação do caso de Claude Eatherly (com quem manteve correspondência - ver aqui), o piloto de um dos bombardeiros envolvidos no lançamento da bomba sobre Hiroshima, que renegou, a posteriori, o seu papel de herói nacional, entregando-se à causa dos movimentos pacifistas e anti-nucleares. Eatherly torna-se o rebelde por excelência da sociedade tecnificada para Anders, que nos propõe escolher se queremos ser ‘filhos de Eichmann’ ou ‘filhos de Eatherly’: se participamos no ‘monsturoso’ ou se nos rebelamos contra ele. Citando Fernández-Savater: “O que sustenta toda esta estrutura é a desconexão sensível e quotidiana entre as coisas, a descontinuidade entre o que sentimos, o que pensamos, o que imaginamos e o que fazemos. (…) O mal é automático, o mal é o automático. Apaga as consequências do que fazemos, cega-nos para as implicações dos modos de vida em que estamos imersos. O mal propaga-se pela não resistência ao mal.” É aqui que o autor vê o poder dos bloqueios da ‘Vuelta’ em Espanha: o poder da interrupção, que convoca precisamente a suspensão da normalidade, da maquinaria: “A interrupção como modo de ação é capaz de provocar um acontecimento (algo acontece, algo se move, onde tudo o resto estava parado) porque compromete a verdade dos sujeitos, o sentido da vida para eles. Esse é o seu poder, essa é a sua eficácia, esse é o seu único método.” Fernández-Savater convida finalmente a substituir o sentimento de culpa pelo de responsabilidade: “Os automatismos protectores caem, já não podemos simplesmente obedecer, as circunstâncias obrigam-nos a pensar, devemos tirar consequências do que acontece e responder. Assumir a responsabilidade é precisamente isso: responder. Inventar algo a que responder.


O cruzamento entre as reflexões de Anders, Garcés e Fernández-Savater abre uma tensão desafiante. Por um lado, Garcés lembra-nos que mesmo no colapso é preciso insistir na crítica, na imaginação e na responsabilidade coletiva. Por outro, Anders alerta-nos para a profundidade da nossa impotência: somos capazes de fabricar a nossa própria extinção, mas incapazes de a assumir. Fernández-Savater invoca um gesto ético que recusa tanto a desumanização tecnocrática quanto a resignação total.

Talvez o gesto político do nosso tempo seja precisamente sustentar aquela tensão. Nem ceder ao pessimismo absoluto, que nos condenaria à paralisia, nem ao optimismo ingénuo (ou o conformismo), que ignora a gravidade da situação. Por um lado, pensar no limiar: entre a denúncia da máquina que nos excede, a experiência temporal da catástrofe e a invenção de práticas emancipatórias no seio da condição póstuma. Por outro, agir com espontaneidade: a partir de uma sensibilidade e de um pensamento emancipado e crítico, encontrando formas de interromper a barbárie.

Afinal, como lembra Garcés, o iluminismo radical não é a crença num futuro garantido, mas a coragem de afirmar que ainda há algo a fazer, mesmo quando tudo parece condenado. E como lembra Anders, essa tarefa só fará sentido se encararmos de frente a herança de Eichmann, reconhecendo que a responsabilidade não é apenas individual nem abstrata, mas concreta e histórica. Alexievich sugere ainda que essa responsabilidade pode começar na escuta e na aceitação da nossa vulnerabilidade. Fernández-Savater convida-nos a exercitar a nossa responsabilidade como sujeitos políticos, não compactuando com a normalização da barbárie. Entre a consciência do desastre, o gesto ético e a invenção de novas possibilidades, talvez se jogue a nossa derradeira oportunidade de continuar a chamar “humana” (mas não antropocêntrica) à condição que partilhamos.

Leituras adicionais:

Artigo e entrevista no Público sobre o lançamento das traduções portuguesas dos ensaios de Anders e Garcés:

https://www.publico.pt/2025/09/05/culturaipsilon/noticia/gunther-anders-pensador-diante-abismo-humanidade-2145350

https://www.publico.pt/2024/02/21/culturaipsilon/entrevista/marina-garces-esquerda-nao-concentrar-apenas-travar-extremadireita-2080604


domingo, 17 de agosto de 2025

Fadiga, dessensibilização e descarte no Devastoceno

The Wasteocene (…) has been defined as the age of wasting relationships producing wasted people and ecosystems. (O Lixoceno foi definido como a era das relações desgastantes, produzindo pessoas e ecossistemas desperdiçados/desgastados) Marco Armiero

The vastness of devastation is at once vacant and full, spacious beyond measure and running out of room, barren and strewn with debris, a desert and a dump. (A vastidão da devastação é ao mesmo tempo vazia e cheia, espaçosa para além da medida e sem espaço, estéril e coberta de detritos, um deserto e uma lixeira) Michael Marder

Regra do ‘manual de instruções’ do Wasteocene: “Não te perguntes onde vão parar os restos indesejados do teu bem-estar.” (non chiederti dove vanno a finire i resti indesiderati del tuo benessere) Marco Armiero

The diminution of the sensible diminishes who we are, as opposed to what we come to possess. The squashing of the senses by the stimuli dumped onto them is the quashing of our being. (A redução do sensível diminui quem somos, por oposição ao que possuímos. O esmagamento dos sentidos pelos estímulos despejados sobre eles é a anulação do nosso ser) Michael Marder

Já tinha abordado aqui em 2023 o tema da exaustão, não apenas como sintoma dos paradigmas sociais dominantes do produtivismo, do consumismo, do excesso e do desperdício, mas também como condição que nos rouba a capacidade de atenção e cuidado. Retomo-o agora novamente a propósito de documentários recentes das cadeias internacionais France 24 e Deutsche Welle (DW) sobre o tema da fadiga mediática (media fatigue), mas também com base em textos ou livros que empregam as palavras inglesas ‘waste’ ou ‘dump’ para caracterizar as sociedades modernas, recorrendo a neologismos como Wasteocene ou Garbocracy, dos seguintes autores: Zygmunt Bauman (sociólogo e filósofo), Marco Armiero (historiador), Sayan Dey (pensador decolonial e historiador) e Michael Marder (filósofo). O lixo que produzimos e se acumula à nossa volta, mais ou menos à vista de todos, tornou-se um símbolo de uma época, mas é, ao mesmo tempo, o produto de um sistema socioeconómico que extrai, consome e descarta bens ou recursos, sejam eles materiais, naturais ou humanos. Acontece que a palavra inglesa ‘waste’ pode ter significados distintos, como lixo ou desperdício, mas também como desgaste ou devastação. É a partir desta ambiguidade de sentidos que irei desenvolver este escrito.

Um mundo exausto: da fadiga e bulimia informacionais ao Lixoceno (Wasteocene)

Vivemos num ciclo de fadiga e descarte: um mundo sobrecarregado de crises, conteúdo digital e ruído, onde a nossa resposta emocional — apatia ou alienação — torna-se tanto sintoma quanto mecanismo de reprodução das lógicas de consumo, exclusão e destruição. A exaustão e a dessensibilização parecem estados normais de existência. Notícias incessantes, crises sobrepostas, estímulos digitais constantes — tudo se acumula numa sobrecarga que não nos esvazia apenas emocionalmente, mas também politicamente. É um cansaço que prepara terreno para a indiferença - uma forma de anestesia social. Chamam-lhe “crisis fatigue”, “news fatigue”, “internet fatigue” (ver p.ex. aqui). Programas recentes da DW (ver aqui e aqui) documentam e analisam estes processos: exposição prolongada a más notícias e estímulos digitais fragmentados leva a distanciamento e dessensibilização — um tipo de habituação emocional que protege no curto prazo, mas corrói a capacidade de resposta no longo prazo. No primeiro programa, observa-se que “o organismo humano pode habituar-se a estímulos negativos... enquanto o doomscroller passivo se dessensibiliza”; e no segundo, constata-se que a internet manipula as emoções, gerando um estado de anedonia digital. Também a France 24 noticiou (aqui) um fenómeno com impactos semelhantes - a ‘fadiga noticiosa’ - e registou a tendência estrutural resultante de ‘news avoidance’ (ver também aqui), apresentando aquilo que apelidou de “jornalismo de soluções” como antídoto parcial ao sensacionalismo do “jornalismo da catástrofe”. No entanto, nestes documentários as análises não vão ao cerne dos fenómenos que descrevem: o sistema socioeconómico que está na sua origem.

De facto, o torpor da fadiga mediática não é apenas psicológico. Ele é sintoma de uma ecologia política da acumulação e do descarte: aquilo que Marco Armiero, no seu livro de 2021, apelida de Wasteocene (que pode traduzir-se por Lixoceno*) — uma época em que o planeta é reconfigurado como lixeira global, resultado de regimes de extração, barreiras fronteiriças e sacrifício territorial que empurram para longe (e para baixo) os custos da Modernidade. Com aquele termo (proposto pela primeira vez num artigo de 2017), Armiero procura desmistificar a narrativa tradicional do Antropoceno, apontando o capitalismo como a força motriz por trás da crise socioecológica e transferindo a responsabilidade da espécie humana, considerada um grupo indistinto que compartilha a mesma culpabilidade, para um sistema económico e as suas consequências nocivas. O autor enfatiza a natureza contaminadora do capitalismo e a sua persistência no tecido sociobiológico, além de revelar a acumulação de efeitos colaterais, tanto nos corpos humanos quanto no planeta. De facto, o lixo, ou melhor, o refugo, que o livro aborda não é apenas o das lixeiras ou aterros sanitários, mas também o dos seres humanos que o sistema empurra para as margens da sociedade - as comunidades vulneráveis que suportam as dificuldades evitadas por aqueles que desfrutam do bem-estar - que Armiero apelida de “lixeiras socioecológicas”. O autor escreve: “The divide between who and what is worth and who and what is worthless is the key feature of this concept that states loud and clear that we are not in this crisis together. Someone is paying the price for someone else’s well-being.(A divisão entre quem e o que vale a pena e quem e o que não vale nada é a característica fundamental deste conceito que afirma, alto e bom som, que não estamos juntos nesta crise. Alguém está a pagar o preço pelo bem-estar de outra pessoa)

Zygmunt Bauman já havia diagnosticado esta outra face daquele processo no seu livro de 2003 “Wasted Lives: Modernity and its Outcasts”. Segundo o autor, a Modernidade, na sua dinâmica de “ordem” e progresso, produz “vidas desperdiçadas” — populações redundantes para a lógica do mercado e da mobilidade global, tratadas como excedentes a gerir, deslocar ou conter. Bauman defende que esta redundância é consequência da disseminação global e do triunfo dos processos de modernização: “A produção de ‘resíduos humanos’ [human waste]… (o ‘excessivo’ e o ‘redundante’, isto é, aqueles que não puderam ou não foram desejados para serem reconhecidos ou autorizados a permanecer) é um resultado inevitável da modernização”. Estes processos podem, em grande parte, ser entendidos em termos da colonização de todos os aspectos da vida, de todos os espaços e lugares, pelas forças, práticas e processos de mercado sob regimes de acumulação de capital. À medida que os processos de modernização se tornaram verdadeiramente globalizados, à medida que “a totalidade da produção e do consumo humanos se tornou mediada pelo dinheiro e pelo mercado, e os processos de mercantilização, comercialização e monetarização dos meios de subsistência humanos penetraram em todos os cantos do globo”, então a “crise da indústria de eliminação de resíduos humanos” (ênfase no original) tornou-se mais aguda.

Num ensaio recente, Sayan Dey, que cita quer Bauman, quer Armiero, introduz o conceito adicional de “waste-ing”, que define como “a social, political, and ecological practice of consistently producing wasted bodies, identities, ideologies, and ecologies” (uma prática social, política e ecológica de produção sistemática de corpos, identidades, ideologias e ecologias descartados/devastados). Dey afirma que o desperdício, enquanto entidade física e ideológica, se realiza através da legitimação da desumanização, da exclusão e da carnificina, e da deslegitimação da humanidade, da inclusão e do cuidado. O autor reforça as teses de Bauman e Armiero, defendendo que, no Lixoceno, o mundo com humanos, plantas e animais foi convertido numa “lixeira gigantesca” que é produzida e mantida através de práticas de fortificações e fronteirizações pelas comunidades sociopolitica- e economicamente privilegiadas para garantir que os seus espaços geopolíticos estão livres da “sujidade” que eles próprios produziram: escravos, refugiados de guerra, refugiados climáticos e migrantes. Dey refere que, no entanto, a era actual não compreende apenas vitimização e opressão, mas também abrange condições de resistência. Através de uma experiência contínua de ser discriminado e violentado, o corpo descartável torna-se um corpo político, insurgindo-se através do “commoning” (ver adiante). No seu livro Garbocracy: Towards a Great Human Collapse, Sayan Dey explora como a acumulação e o descarte de lixo na Índia são impulsionados por factores diversos, incluindo aspectos sociais, culturais, políticos, económicos, comunitários, de casta ou religiosos. Ele argumenta que as experiências desagradáveis geradas pela visão e pelo cheiro do lixo não são apenas físicas, mas também psicológicas, neurológicas, estruturais, institucionais, tangíveis e intangíveis. O descarte inadequado de lixo em locais públicos gera diversos problemas de saúde e impacta negativamente o estado social, cultural, político e económico de indivíduos e comunidades. O objetivo principal do livro é revelar como os padrões e intenções sociopolíticas por trás do descarte gradualmente transformam montanhas de lixo em entidades autoritárias que governam os padrões habituais de pensamento, comportamento e acção dos seres humanos. A obra introduz o conceito de "garbocracy" para revelar como o poder e a opressão estão embutidos na organização do espaço, das comunidades e do conhecimento. O livro enfatiza a necessidade de se libertar não apenas do lixo espalhado por toda parte, mas também da lógica que organiza a divisão entre pureza e imundície, desperdício e valor.

A fadiga e o descarte alimentam-se mutuamente

Como vimos, a fadiga informacional e a dessensibilização não são apenas efeitos colaterais da tecnologia; são tecnologias sociais ao serviço de um modelo que precisa de atenção volátil, rotatividade permanente e obsolescência programada — de bens, de afectos, de narrativas e, finalmente, de vidas. No capitalismo de plataformas e da financeirização, o valor extrai-se onde houver fluxo (cliques, dados, mercadorias, pessoas). O resultado é uma gramática do descarte:

- descartamos atenção: quando tudo compete, nada importa por muito tempo e temos terreno fértil para apatia e “doomscrolling”;

- descartamos afectos: as emoções são capturadas, aceleradas e esgotadas; quando a dor e o medo são ‘conteúdos’, a compaixão e a confiança transformam-se em ruído de fundo;

- descartamos territórios e pessoas: são criadas zonas de sacrifício ambiental e cordões sanitários para ‘excedentes’ humanos – refugiados, trabalhadores descartáveis, populações racializadas –,que Bauman descreveu como gestão do excesso humano”;

- descartamos o próprio mundo: o Lixoceno de Armiero é a materialização geopolítica desse ciclo: fortificações e fronteiras mantêm ‘limpos’ os espaços dos privilegiados, enquanto exportam ‘sujidade’, risco e morte.

Assim, fadiga (subjetiva) e descarte (objetivo) são duas faces do mesmo processo. A saturação que nos anestesia é a mesma que mantém invisível a logística do extermínio lento — do lixo digital ao ar irrespirável, dos campos de detenção às costas transformadas em valas comuns do século XXI. No Lixoceno, o lixo não é apenas subproduto: é parte integrante do próprio funcionamento do sistema. Para gerar valor, é preciso simultaneamente gerar descarte.

O modelo socioeconómico-cultural dominante é o motor

Estes são alguns dos seus componentes:

- Extractivismo expandido: não só de minérios e florestas, mas de atenção e afectos. Plataformas tratam emoções como matéria-prima; a sua escassez programada sustenta o ciclo “choque-clique-cansaço-descarte”.

- Financeirização e obsolescência: a pressão por rendimentos de curto prazo acelera ciclos de produto e gera resíduos físicos e sociais. Bauman já via a modernidade como máquina de produção de excedentes humanos; hoje, o excedente é também de dados, conteúdos e ansiedades.

- Fronteirização: o Lixoceno não é homogéneo; é espacialmente seletivo. Barreiras, zonas francas, parques de lixo tóxico e corredores logísticos desenham um mapa onde a limpeza de uns é garantida pela sujidade de outros.

- Cultura da aceleração: o novo substitui o novo antes de significar algo. Isso esmaga memória e cuidado, corta a duração necessária para a compaixão se converter em compromisso — e converte cidadania em fadiga e exaustão.

A toxicidade ontológica

No seu ensaio “Being Dumped” (que já tinha citado anteriormente aqui), Michael Marder conduz a reflexão para a esfera ontológica e ética: nas nossas sociedades modernas não descartamos apenas coisas e pessoas; somos descartados num “dump” ontológico — uma toxicidade do existir em que matéria, significados e corpos se tornam resíduos difusos e descartáveis. O autor escreve: “Vivemos e morremos num depósito [dump] de ideias, corpos, sonhos, materiais, fragmentos de relações, trechos sonoros e memes, descontextualizados e desistoricizados, produzidos como lixo, recortados, isolados e atirados para uma enorme salganhada no que resta do que costumava ser um mundo. (…) Vivendo numa lixeira, somos movidos, produzidos e reproduzidos por ela, como por nós próprios. Em grande parte, e embora tecnicamente vivos, estamos ali a morrer, desmembrados, deitados fora, descartados, alienados da nossa alienação, passando a amá-la ou completamente indiferentes, apáticos, não mais envolvidos, anestesiados com analgésicos fabricados farmacêutica- e ideologicamente. A lixeira vive-nos, vive para nós. Assume o movimento, a produção e a reprodução da mundo-em-destruição, destruindo o próprio ser-mundo do mundo.” Para Marder, “A lixeira global é um deserto que se estende sobre a terra e nas zonas hipóxicas dos oceanos. Quanto mais há, quanto mais cresce — imitando a atividade daquilo a que os gregos chamavam physis e os latinos conheciam como natura —, menores são as oportunidades de florescimento futuro e de crescimento finito.

Marder propõe que não estamos apenas a viver entre desperdício e lixo, mas a ser descartados no próprio plano do ser – uma experiência difusa de contaminação ontológica: significados degradados, mundos comuns corroídos, tempos saturados. Ele escreve: “Num abandono generalizado do ser, o deserto cresce fora e dentro daqueles que o abrigam. Somos abandonados pelo ser na medida em que abandonamos o ser. Hoje — ou melhor: esta noite, na noite rastejante e sem limites do mundo — na noite de hoje, então, o ser está a ser descartado.” A força das palavras de Marder reside em mostrar que o lixo não é meramente resíduo: é regime – o modo como o mundo se organiza quando o valor de troca coloniza o valor de uso da vida. Para Marder não são apenas coisas ou lugares que são descartados, mas também relações, memórias e afectos. Descartar é também negar a coabitação, cortar laços de cuidado.

Fios de saída: contra-lógicas do cuidado e do comum

Se a gramática dominante é a da fadiga e do descarte, como reescrevê-la? Dei algumas pistas nos meus posts sobre preguiça, ócio e atenção (aqui) e sobre deserção (aqui). Aqui passo a acrescentar outras:

- Desaceleração informativa: reduzir o ruído e o frenesim para restituir atenção — não como fuga, mas como reabertura à lucidez e à sensatez (curadoria, jornalismo de soluções, apelos à acção concreta ao invés de pânico difuso).

- Commoning (Dey/Armiero): reconstruir os comuns socioecológicos — água, solo, ar, alimentos, dados, vizinhanças, conhecimento — como infraestruturas de resistência à lógica da mercadorização e do descarte; ver p.ex. aqui (Comuns).

- Política de responsabilização: internalizar custos (ambientais, sociais, informacionais) que foram externalizados para periferias humanas e territoriais.

- Cartografias do Lixoceno: tornar visíveis as redes de descarte (do cobalto ao lixo digital; dos campos de refugiados aos “desertos alimentares”; das “nuvens digitais” às centrais elétricas) e conectá-las às tramas financeiras e legais que as viabilizam.

Do Lixoceno ao Devastoceno

Como vimos, a fadiga não é um efeito colateral isolado, mas parte de um modelo socioeconómico e cultural que precisa do nosso cansaço para funcionar. Cansados, reagimos menos; dessensibilizados, aceitamos mais. O ciclo fecha-se: enquanto alguns acumulam valor, outros (comunidades, ecossistemas e o próprio planeta) acumulam lixo ou são descartados. O Lixoceno parece-se mais com um Devastoceno**, uma era em que a exaustão e o descarte devastam corpos, comunidades e territórios – tal como afirma Marder na segunda citação que abre este post.

No ciclo Fadiga-Dessensibilização-Descarte, a saturação informacional e emocional cria as condições para reproduzir as ‘lixeiras socioecológicas’ e a ‘toxicidade ontológica’ do Lixoceno/Devastoceno — o cansaço bloqueia a empatia politizável e mantém invisível a ‘gestão de excedentes’. A máquina moderna de produzir descartados do capitalismo global (plataformizado e financeirizado) precisa de excedentes humanos e ambientais; Bauman forneceu a chave sociológica, Armiero a chave ecológica, Marder a chave ontológica. Já para Dey, a gestão de excedentes ou descartados torna-se forma de administração institucional da vida e da morte. Mas Armiero e Dey relembram que o Lixoceno também gera linhas de fuga: práticas de comum, solidariedades e contranarrativas capazes de regenerar mundos partilhados e habitáveis – ver também aqui.

Como habitantes do Lixoceno/Devastoceno, fomos treinados para o cansaço e para aceitar o mundo como uma lixeira inevitável. Mas se a fadiga e o descarte são sintomas e instrumentos do modelo dominante, a possibilidade de transformação convida a práticas de ressensibilização: desacelerar para ver, reaprender a cuidar e construir coletivamente alternativas. Os passos críticos para reverter o Devastoceno seriam converter atenção em duração, compaixão em compromisso e indignação em comum. Nomear o Lixoceno, reconhecer as vidas desperdiçadas e admitir o ‘descarte ontológico’ não servem para soçobrar; servem para relocalizar responsabilidade e reterritorializar o cuidado. A saída não é moralista nem individualista: é política, infraestrutural e coletiva. Trata-se de deslocar a atenção do ruído e da fadiga para o que está vivo, de recusar o destino de lixo – para nós, para os outros e para o planeta – bem como a devastação do capitalismo e da modernidade.

Notas:

* Ver p.ex.: Gaboardi & Nunes (2021). Antropoceno, Capitaloceno e Lixoceno: diferentes abordagens sobre as relações sociedade-natureza. (aqui)

** Criei esta palavra a partir da raíz latina do verbo devastar – devasto, devastare – que significa arruinar ou destruir, para enfatizar que o Lixoceno provoca uma devastação de corpos e territórios.