“Ao nível mais vasto das sociedades, ou melhor, de segmentos dessas sociedades, aquelas que lideram pela agressão a outros, culminando em guerras, estão frequentemente envolvidas na disseminação de falsidades e auto-enganos, sendo os meios de comunicação e os sistemas educativos dois canais comummente utilizados.” (“At the level of wider societies or rather wider society segments, those which lead by aggression towards others, culminating in wars, are often involved in spreading falsehoods and self-delusions, media and education systems being two commonly used channels.”) Bharat Dogra (daqui)
“Existem inúmeros mitos comuns que sustentam a guerra.
Desmascarar esses mitos e, assim, mudar as crenças fundamentais das pessoas
sobre a guerra e a paz é uma forma poderosa de eliminar o potencial para a
guerra.” (“There are numerous commonly
believed myths underpinning war. Debunking
these myths, and in so doing changing peoples’ fundamental beliefs about war
and peace is a powerful way to remove the potential for war.”)
Taylor O’Connor (daqui)
Vivemos um tempo perigoso, em que a mentira já não precisa de se esconder. Já não se mascara de meias-verdades, nem se esforça por parecer plausível. Ela ocupa agora o centro da cena, altiva, amplificada pelos media e tolerada – ou pior, legitimada – por uma cidadania entorpecida pela sobrecarga informativa e pelo descrédito acumulado das instituições governativas. Bem vindos ao Pseudoceno* – a era da mentira. Tal como o Antropoceno enfatiza o impacto humano sobre a Terra, o Pseudoceno marca a colonização da realidade pela falsidade. É uma época em que a mentira já não é desvio ou acidente, mas fundação e estratégia. Já tinha anteriormente denunciado o recurso à mentira no contexto de diversos conflitos e invasões protagonizadas pelos EUA e os seus aliados ocidentais, enfatizando o papel dos media na fabricação do consentimento para a guerra - aqui e aqui. Elogiei também quem se atreve a revelar e a denunciar as verdades que os poderosos querem escamotear ou esconder - aqui e aqui. O meu foco vira-se agora para a nova escalada militar no Médio Oriente, instigada por Israel e os EUA, com o conluio dos seus ‘Aliados’ europeus, e para as narrativas falaciosas que validam o belicismo e a geopolítica militarista em detrimento da diplomacia, da coexistência pacífica e da paz.
Mentiras descaradas, falácias e logros, desonestidade intelectual, hipocrisia – tem sido este o espectáculo diário proporcionado por muitos media, que reproduzem as sucessivas declarações dos ‘líderes’ políticos de Israel, dos EUA, da União Europeia ou de diversos países europeus, sobre os acontecimentos recentes no Médio Oriente, em particular o ataque militar não provocado de Israel ao Irão, iniciado a 13 de Junho. À parte algumas análises de comentadores ou artigos de opinião (ver p.ex. aqui, aqui ou aqui), as narrativas que surgem nos media convencionais parecem saídas de um guião onde se repetem as mesmas palavras de ordem – “conter a iminente ameaça nuclear iraniana”, “Israel tem direito à auto-defesa”, “é preciso contenção e diplomacia” – ver p.ex. aqui ou aqui. Caricaturando o Irão como o mal absoluto no contexto da ‘guerra justa’ contra a ameaça islâmica, aquelas narrativas escamoteiam a ilegalidade da agressão israelita e viram a lógica do avesso tentando legitimá-la como ataque preventivo (ver p.ex. artigos de opinião em media nacionais: aqui ou aqui). Mais gritante ainda é a hipocrisia e a duplicidade de critérios (‘double standards’) dos países ocidentais que, como se lembrarão, se apressaram a condenar veementemente a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 e o ataque do Hamas a Israel em 2023, classificando-os de agressões militares não provocadas (‘unprovoked’) e como violações do direito internacional, mas abstêm-se despudoradamente de aplicar a mesma argumentação à recente ofensiva não provocada de Israel contra um país soberano – ver p.ex. aqui. Para cúmulo, apelam agora à diplomacia e à contenção de Israel e do Irão, o que têm recusado sistematicamente em relação ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia – ver p.ex. aqui.
A ofensiva militar de Israel contra o Irão, agora secundada abertamente pelos Estados Unidos, é apenas o mais recente episódio de uma política internacional que se divorciou da verdade factual e nos empurra para um conflito mais alargado e para a barbárie, onde a diplomacia foi eclipsada por um belicismo sem freios. As justificações apresentadas pelos dirigentes israelitas e americanos para esta acção – sustentadas em alegações de “defesa legítima”, “prevenção estratégica” ou “resposta proporcional” – constituem um exercício de manipulação retórica que desafia frontalmente a lógica, o direito internacional e a ética. Estas falácias foram devidamente denunciadas e desmontadas por outros – ver aqui, aqui ou aqui e ainda dossier do esquerda.net.
Resumidamente, o ataque ocorreu dois dias antes da ronda final de negociações
diplomáticas entre os EUA e o Irão, constituindo uma tentativa clara de sabotar a via diplomática; nenhum
relatório da AIEA (Agência Internacional de Energia Atómica) confirmou a
existência de um plano iraniano para fabricar armas nucleares a curto prazo; Netanyahu utiliza o argumento do “perigo
nuclear iminente” há mais de uma década,
em particular no célebre discurso na ONU em 2012, já então sem apresentar
provas concretas; um ataque preventivo sem existir uma ameaça iminente é ilegal
à luz do direito internacional. Mais grave ainda é o facto, frequentemente
escamoteado, de que Israel é, muito
provavelmente, uma potência nuclear. Possuirá um arsenal estimado entre
80 e 200 ogivas, mantém uma política de “ambiguidade deliberada” e nunca assinou o Tratado de Não Proliferação
de Armas Nucleares (TNP). O Irão, por outro lado, é signatário do TNP e
sujeito a inspecções regulares. Esta assimetria brutal é sistematicamente
omitida do debate público.
Uma questão central é que a mentira e as narrativas falsas ou parciais são também uma forma de ocultar a verdade – neste caso, as reais intenções ou interesses geoestratégicos do envolvimento dos EUA na ofensiva contra o Irão, cujo objectivo (não explicitado ou dissimulado) é afinal manter a todo o custo a sua hegemonia mundial – ver aqui ou aqui.
Igualmente inquietante, porém, não é apenas a agressividade das acções ou a duplicidade das palavras. É o facto das narrativas falaciosas serem imediatamente recicladas por grande parte dos meios de comunicação ocidentais como verdades operacionais – ver p.ex. aqui. As manchetes não interrogam; reproduzem. Os comentadores não contextualizam; repetem. A opinião pública, exausta e desorientada, assiste a esta encenação com uma mistura de cepticismo e impotência (ver p.ex. este Bartoon). E a verdade permanece oculta.
Estamos a assistir à normalização da desinformação como instrumento de governação e de geopolítica, feita pelos mesmos que afirmam opor-se à desinformação – mas apenas quando é usada pelos seus adversários. Quando um líder afirma sem pudor que um ataque preventivo é “um acto de paz”, ou que o apoio militar a um bombardeamento em larga escala é “um compromisso com a estabilidade regional”, já não estamos apenas diante de uma divergência política (ver aqui). Estamos perante a corrosão deliberada da linguagem e da consciência coletiva – como uma Novilíngua orwelliana.
Este fenómeno não é novo (ver p.ex. aqui), mas o que mudou é o grau de aceitação. A mentira institucionalizada passou a ser tolerada como parte do jogo geopolítico – bastaria lembrar as alegadas ‘armas de destruição massiça’ que serviram de pretexto à invasão do Iraque em 2003 (ver p.ex. aqui) ou a ‘Guerra ao Terror’ como justificação para a invasão do Afeganistão em 2001, então apelidada de ‘Guerra Justa’ (ver p.ex. aqui). O que é ainda pior é que a mentira é celebrada por alguns como demonstração de “realismo” ou “coragem estratégica”. Como se o cinismo fosse a única bússola possível num mundo em declínio.
Mas a minha revolta não se dirige apenas a Washington
ou Telavive. Ela dirige-se também a Bruxelas,
Berlim, Paris, Lisboa — aos dirigentes da UE e governos europeus que, em
vez de questionarem a escalada, se limitaram a alinhar o seu discurso com as
justificações falaciosas de Israel e dos EUA, prolongando assim a sua
cumplicidade com a violência e destruição promovidas pelo governo
fundamentalista e criminoso de Netanyahu, incluindo o genocídio em Gaza – ver
p.ex. aqui
ou aqui.
É igualmente chocante constatar como os dirigentes europeus se alinham
mecanicamente com os ditames da máquina militar e discursiva da Aliança Atlântica,
como aconteceu na recente cimeira da NATO em Haia – ver p.ex. aqui
ou aqui.
Aderiram cobardemente às chantagens do presidente americano – que ainda há
poucos meses apelidavam de ameaça para a democracia! – cedendo ao aumento de
gastos militares, que irá beneficiar a indústria de armamento do outro lado do
Atlântico. O tom de submissão e bajulação perante Trump foi vergonhosamente
notório numa mensagem pessoal que o actual SG da NATO, Mark Rutte, lhe enviou na
véspera da cimeira em Haia, onde afirmou (ver p.ex. aqui):
“Felicitações e agradecimentos pela sua
acção decisiva no Irão, foi algo verdadeiramente extraordinário e algo que
ninguém jamais ousaria fazer. Fez com que estejamos todos mais seguros.” Perante
garantias de comprometimento com gastos militares equivalentes a 5% do PIB,
Rutte acrescentou: “Conseguirá o que
NENHUM outro presidente conseguiu fazer em décadas. A Europa vai pagar-lhe em
GRANDE, como deve, e essa será a sua vitória”. É o nível mais baixo da vassalagem
ao poder imperial americano por parte de um dirigente europeu. É caso para
perguntar onde está a dignidade das elites políticas europeias? Onde estão afinal
os valores humanistas da Europa? Onde ficou a memória histórica que deveria
vacinar-nos contra o belicismo e a repetição dos erros do século XX? Onde estão
os estadistas capazes de dizer “não” perante a chantagem política e económica e
que recusam o caminho para o abismo da guerra?
Inesperadamente, uma outra verdade sórdida acabou por
sair da boca do novo chanceler alemão, Friedrich Merz, que admitiu, sem rodeios, que “Israel
está a fazer o nosso ‘trabalho sujo’” (ver aqui). Uma admissão que, apesar da sua
crueza, acaba por revelar uma intenção
não assumida: os governos ocidentais, incapazes de conter a alegada
ameaça do fundamentalismo islâmico personificada pelo Irão, preferem externalizar a agressão, garantindo
que os seus interesses são protegidos sem envolvimento militar directo. É uma
confissão involuntária — mas reveladora — de um cálculo moral arrepiantemente
frio. Não se trata de defesa, nem de segurança internacional. Trata-se de
manter a hegemonia a qualquer custo, desde que o sangue derramado não seja
“nosso”.
Como português e europeu, inserido numa cultura que promove alegadamente os ideais da concórdia, da justiça, do primado da paz e do direito internacional, recuso-me a aceitar esta adesão tácita ao discurso bélico como se fosse inevitável. Se o caminho escolhido pelos ‘líderes’ for o da guerra, que o digam com clareza — mas saibam que não será em meu nome. E que assumam também o custo ético e humano de cada decisão que tomam em surdina, mascaradas de necessidade ou realismo.
Só que esta nova era do Pseudoceno não é apenas um
fenómeno discursivo. As consequências são concretas e devastadoras. Milhões de vidas estão em risco,
comunidades inteiras são condenadas ao exílio ou à destruição, o tecido social
global é corroído pela desinformação e pela polarização. E, sobretudo, estamos
à beira de um retrocesso civilizacional sem precedentes: o colapso da
ideia de que o diálogo, a diplomacia e o direito podem prevalecer sobre a força
bruta e a destruição.
A retórica belicista encoraja novas mortes, destruição
cultural, inúmeros famintos e deslocados. Um mundo que se vangloriava de
caminhar para a diplomacia e os direitos humanos, arrisca-se hoje a retroceder
para a barbárie global, onde os interesses geopolíticos e da luta pela
hegemonia se sobrepõem ao bem estar das populações e ao bem comum.
A par do sofrimento humano e da destruição ambiental e cultural, o que está em risco é o próprio legado de um projecto civilizacional em declínio: o direito internacional, a diplomacia multilateral, a ética da responsabilidade. Aquilo que o mundo ocidental dizia defender — e que agora abandona, de forma cobarde ou calculada. Para que não prevaleça o primado da mentira, tenhamos a coragem e o discernimento de “desconstruir as mentiras que justificam a guerra para nos ajudar a passar da mentira de uma guerra justa para a criação de uma paz justa”, como defende Taylor O’Connor neste artigo cuja leitura recomendo.
* Termo que criei a partir do grego pseudos (mentira, falsidade) e o sufixo -ceno (novo, recente), tal como é usado na terminologia da geologia como Holoceno ou Antropoceno.
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