segunda-feira, 31 de maio de 2021

Ervas daninhas e plantas ruderais – amor à segunda vista

Na sequência do post anterior, debruço-me mais uma vez sobre a nossa percepção do mundo-mais-do-que-humano onde estamos inseridos, em particular uma das suas componentes mais diversa e omnipresente: as plantas. Se o nosso contacto e conhecimento das outras espécies animais se tem vindo a perder, nomeadamente para os habitantes dos meios urbanos, o afastamento e desconhecimento em relação às plantas tende a ser ainda maior – apesar de quase toda gente apreciar um passeio num jardim ou num bosque – e é agravado pelo reduzido destaque que lhes é dado nos media e nas escolas. Aquele desconhecimento ou mesmo desinteresse têm vindo a ser reconhecidos e até já lhes foi dada uma designação: ‘plant blindness’, que se pode traduzir por cegueira botânica ou indiferença às plantas – ver p.ex. aqui ou aqui. Esta situação tem diversas causas, que vão desde um instinto inato em dar mais atenção aos animais por serem organismos vivos com os quais temos maior afinidade ou a desconsiderarmos as plantas por serem hierarquicamente inferiores (zoocentrismo), até a factores culturais, como a falta de contacto e conhecimento directo das plantas ou a prevalência de ideias distorcidas sobre a sua utilidade (ver p.ex. aqui). As consequências são igualmente diversas, incluindo a incapacidade de reconhecer as diferentes espécies vegetais ou de as reduzir a categorias genéricas como ‘arvoredo’, ‘mato’ ou ‘erva’, mas também a negligência mais profunda que está na base da perda de biodiversidade e da destruição de ecossistemas, em particular, a desflorestação (ver p.ex. aqui).

Embora muitas pessoas reconheçam a importância das plantas pela sua utilidade para os próprios seres humanos - como fonte de alimento, de fibras ou de fármacos, pelo seu contributo para a depuração do ar ou da água e para a criação de solos férteis, e, mais recentemente, por serem um importante veiculo de sequestração de CO2 -, alguns grupos vegetais são desconsiderados ou mesmo eliminados activamente por serem vistos como prejudiciais – em particular, as espécies invasoras (com boas razões) ou as chamadas ‘ervas daninhas’ (nem tanto). No caso destas últimas, há uma vez mais uma distorção em relação à sua relevância, pois é bem sabido que as plantas espontâneas, que surgem quer nos campos, quer nas cidades, têm papéis muito importantes na regeneração dos solos e na criação de condições adequadas para outras plantas ou de alimento para animais, em particular, os insectos. Algumas espontâneas são até comestíveis e outras têm propriedades medicinais (ver p.ex. aqui) – dou aqui apenas um exemplo, cujo nome vulgar faz juz às suas propriedades: amor-de-hortelão.
Faço notar que existem aliás diversas iniciativas para preservar ou até incentivar as plantas espontâneas, quer a nível nacional (ver p.ex. aqui ou aqui), quer internacional (p.ex. aqui). Lamentavelmente, há muitas autarquias que não aderem a estas boas práticas e continuam a dizimar as plantas dos passeios, dos baldios ou das bermas, usando roçadoras ou herbicidas. Em compensação, surgiram nos últimos anos iniciativas de botânicos ou de cidadãos entusiastas que se dedicam a identificar e assinalar nos pavimentos de vilas e cidades aquelas plantas, num movimento que se tornou viral nalgumas localidades europeias, tomando diversas designações: Sauvages de ma rue’, ‘More than weeds’, ‘Rebel botanists’ – ver aqui, aqui, aqui ou aqui.

Há um grupo particular de plantas espontâneas que surgem em ambientes urbanos ou antropizados (modificados por acção humana), cuja designação revela mais uma vez o desprezo a que são votadas – as plantas ruderais. Estas plantas são comuns, por exemplo, em terrenos abandonados designados por baldios - uma outra palavra cuja conotação negativa impede leituras mais positivas desses territórios (ver p.ex. aqul). Um dos vídeos do projecto ‘Segredos da natureza’ – um ‘microsite’ criado para a Culturgest pela historiadora portuguesa Teresa Castro – é dedicado às plantas ruderais (ver aqui). Talvez o seu visionamento faça algumas pessoas mudar de opinião sobre estas plantas pioneiras. Basta aliás um olhar mais atento e uma sensibilidade mais apurada para encontrá-las pelas ruas da cidade e quiçá tomar-lhes o gosto e apreciar o seu encanto singelo (ver p.ex. aqui ou aqui).

As imagens deste post foram respigadas durantes as deambulações e os pousios na zona oriental de Lisboa com @s fiador@s do c.e.m-centro em movimento, entre Abril e Junho de 2020 - práticas documentadas aqui.

terça-feira, 25 de maio de 2021

O que faz um ser sensível é a sensibilidade

No passado dia 22 Maio celebrou-se o Dia Internacional da Biodiversidade, uma data que nos apela a reflectir sobre a nossa relação com o mundo-mais-do-que-humano. Essa relação está claramente em crise dado o afastamento crescente entre nós (populações predominantemente urbanas) e os restantes seres vivos, promovido por uma visão eminentemente antropocêntrica, utilitarista e imediatista do mundo que nos levou a explorar, dominar e destruir os ecossistemas - dos quais fazemos parte e dos quais dependemos (ver p.ex. aqui ou aqui). Para reverter esse processo será necessário estimular um melhor conhecimento do mundo não humano, que está geralmente mais próximo do que imaginamos e sem o qual não será possível desenvolver um desejo de cuidar, defender ou regenerar – ou seja, amar – todo esse universo de outros seres cuja existência é tão vital, legítima e sagrada quanto a nossa.

Com o intuito de re-activar aquela relação, apelando aos sentidos e à sensibilidade, orientei uma caminhada sensorial no Parque Florestal de Monsanto focada na escuta-olhar atento e demorado, nas sensações do corpo e nos sentidos além da visão, mas estimulando também o intelecto, numa fusão integrativa de cabeça, coração e sentidos (que, como bem sabemos, nunca estão separados). O percurso foi pontuado pela leitura de excertos de poemas ou textos de Alberto Caeiro, Manuel Zimbro e Mia Couto, aos quais junto mais dois – um de David Abram e outro de Rachel Carson – reunidos neste post.


Alberto Caeiro – O Guardador de Rebanhos
 
Poema IX
 
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
 
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
 
Poema II
 
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
 
Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
 
Poema XLVII
 
Num dia excessivamente nítido,
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
Para nele não trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas ideias.
A Natureza é partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.

 
Manuel Zimbro – História secreta da aviação
 
O que faz um ser sensível é a sensibilidade
só a sensibilidade pode cuidar e responder adequadamente à vida, à ordem,
ao mundo,
a coisas tão importantes como por exemplo a natureza,
isso que é inteligência sem causa, em equilíbrio…
(…)
a sensibilidade é doutra dimensão
é ela, o hífen, que liga as mãos-cérebro-coração no nascente acto de fazer,
ou de não-fazer.
vemos a sua presença e também vemos a sua ausência no que o homem deixa feito,
esteja ou não concluído.
aqui, para tentar vê-la na sua mais elevada expressão – no equilíbrio –
ligá-la-emos ao acto de voar.
 
(…)
quem considera olha atentamente e quem olha atentamente vê,
não de uma maneira especial, ou desta ou daquela maneira, vê simplesmente
sem pensar – que já viu, que está a ver ou que irá ver – vê em silêncio…
(…) onde o olhar que nada foca, nada fixa, nada concentra
resplandece em todas as direcções, como a luz do sol.
quando o pensamento está calado e no seu lugar adequado, não há separação entre o que
considera e o que é considerado,
vê-se a partir do vazio o vazio.
só há a visão que flui.
tal é a natureza da consideração que constantemente põe à prova e faz escoar a extraordinária energia contida naquilo que estrutura as nossas visões do mundo.
só a consideração modera as fixações.
considerar não é pois das palavras.
 
(…)
se o homem se desloca na água - nada - porque não se deslocará no ar?
por ser mais anfíbio que aéreo?
mesmo se a água está fria, ele despe-se para nadar,
porque teria, para voar, de vestir qualquer coisa, que o iria tornar ainda mais pesado?
sem imitar os peixes, é-lhe possível usar as mãos como barbatanas,
porque será que ainda não chegou a compreender o pleno uso das mãos?
ou será que por estar tão carregado de lastro (sempre com o cérebro ocupadíssimo…) já não tem mãos a medir?
O que de resto lhe propicia ‘voos’ cada vez mais requintados,
à medida que se lhe vai adormentando a sensibilidade, que é muito mais leve que o ar.
 
(…)
como para o ser humano descolar as duas solas do solo é uma coisa e
deslocá-las
enquanto as mantém descoladas outra,
passamos a distinguir os dois conceitos, voar e levantar voo…
(…) para as descolar,
tarefa relativamente arriscada,
torna-se necessário esvaziar o espírito
despir a mente de todas as espécies de roupagens, sejam atraentes ou não.
como se tratasse de despir a roupa para se lançar à água, que, uma vez encharcada,
é lastro que faz afogar.
para haver elevação tem de haver essa nudez, é ela a mente nua que
assinala a necessária
leveza - despi-la, é esse o risco.
 
(…)
para se deslocar no ar,
a operação é em si menos complicada e mais corriqueira, mas torna-se mais
complexa dado que,
tanto o sentido (horizontal) como o impulso (exterior) só são possíveis
graças à sustentação de um movimento colectivo,
da comunidade onde se insere o que se elevou.
ou seja, o homem nunca poderá voar pelos seus próprios meios, precisará sempre da
sustentação do seu semelhante.
se precisou dele para aprender a andar, para aprender a falar, etc., porque não precisaria dela
para se deslocar no ar, ainda por cima sendo mais pesado que ele?
depois de singularmente se ter elevado, voar é um trabalho de conjunto que necessita do
apoio do mundo, isento de fricções e atritos dada a fluidez do meio.
só graças à confiança mútua, ao equilíbrio, à harmonia e à conivência de toda
a colectividade,
ele poderá procurar-se a necessária energia para se mover no espaço sem apoio material.
 
(…)
foi-nos ensinado a andar, a falar, a escrever...
e, ensinaram-nos a pensar.
(…) aprendemos tudo isso, mas não foi em conjunto, foi com esforço, com imenso desperdício de energia, (…) o que aprendemos não foi, nem é, livre nem fácil,
se fosse,
se fosse de facto em conjunto, a energia, a compreensão teriam uma
amplitude tal que com pouco esforço, ou seja, imensa beleza
já teria havido espaço para até nos terem ensinado a voar.
mas as prioridades desta sociedade são de outra ordem…


Mia Couto – Os sete pecados de uma ciência pura
 
(…) Deixámos de escutar as vozes que são diferentes, os silêncios que são diversos. E deixámos de escutar não porque nos rodeasse o silêncio. Ficámos surdos pelo excesso de palavras, ficámos autistas pelo excesso de informação. A natureza converteu-se em retórica, num emblema, num anúncio de televisão. Falamos dela, não a vivemos. A natureza, ela própria, tem que voltar a nascer. E quando voltar a nascer teremos que aceitar que a nossa natureza humana é não ter natureza nenhuma. Ou que, se calhar, fomos feitos para ter todas as naturezas.
 
David Abram – Ecologia em profundidade (‘Depth ecology’)
 
(…) Ao contrário da altura de uma montanha, e da largura ou amplitude de um vale, a profundidade de uma paisagem depende inteiramente de onde nos encontramos dentro dessa paisagem. E à medida que avançamos, corporalmente, dentro dessa paisagem, a profundidade da paisagem muda à nossa volta. Em rigor, um espaço tem profundidade apenas se nos situarmos algures dentro desse espaço. (...) na verdade, apenas experimentamos o mundo real a partir da nossa perspectiva corpórea, com as duas pernas firmemente inseridas no coração das coisas. Uma vez que estamos inteiramente dentro deste mundo terreno, a natureza pode revelar-nos certos aspectos de si própria, apenas se esconder outros aspectos; nós nunca apreendemos um qualquer fenómeno terreno na sua totalidade nem de uma só vez.


Rachel Carson – Maravilhar-se (‘The sense of wonder’)
 
(…) O mundo da criança é cheio de frescura, de novidade, de beleza, povoado de maravilhas e entusiasmo. É uma pena que, para a maioria de nós, essa visão de olhar límpido, esse verdadeiro instinto que inclina ao belo e inspira temor e respeito, se esbata e mesmo se perca antes de chegarmos à idade adulta. Se eu tivesse alguma influência sobre a fada boa que se julga presidir ao batismo de todas as crianças, pediria que o seu presente para qualquer criança que viesse ao mundo fosse uma capacidade de maravilhamento tão indestrutível que duraria toda a vida, como antídoto infalível contra o aborrecimento e o desencanto da idade adulta, as preocupações estéreis com as coisas artificiais, o alheamento que nos afasta das fontes da nossa força.
Para que uma criança mantenha vivo o seu sentido inato do que é maravilhoso sem que lhe tenha sido dado tal presente pelas fadas, ela necessita da companhia de pelo menos um adulto com quem possa partilhá-lo, redescobrindo com ele a alegria, o entusiasmo e o mistério do mundo em que vivemos.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Escolas de economia e gestão: reformar ou demolir?

Ilustração de Michael Kirkham
O título deste
post foi inspirado num artigo do professor de gestão britânico Martin Parker (autor do livro ‘Shut Down the Business School: What’s Wrong with Management Education’), publicado em 2018 no The Guardian, onde propõe um destino radical para as escolas de economia e gestão – encerramento ou demolição: ‘Why we should bulldoze the business school’ (uma outra versão do mesmo artigo está disponível aqui). O autor defende que o ensino nas escolas de gestão foi dominado nas últimas décadas por uma visão de mundo e um modelo económico (capitalista, neoliberal e mercantil) apregoados como hegemónicos e que se converteram em profecias autocumpridas (‘self-fulfilling prophecies’). Para além do currículo explícito, que apresenta o sistema dominante como incontornável e onde as visões alternativas e questões como a sustentabilidade ou a justiça social são meramente acessórias, aquelas escolas professam um currículo oculto na forma como aqueles conteúdos são transmitidos, validando os comportamentos competitivos e gananciosos como os mais adequados para prosperar e aplicar no ‘mundo real’. Parker sugere ainda que apesar de haver alguma crítica interna aos conteúdos e modelos de ensino por parte por exemplo de cientistas sociais, essa crítica é minoritária e acaba por ficar nas prateleiras ou a preencher os currículos dos seus autores, não se reflectindo em mudanças práticas das próprias instituições.
Seguem-se alguns excertos (mas recomendo a leitura do artigo completo):
(…) in the business school, both the explicit and hidden curricula sing the same song. The things taught and the way that they are taught generally mean that the virtues of capitalist market managerialism are told and sold as if there were no other ways of seeing the world. If we educate our graduates in the inevitability of tooth-and-claw capitalism, it is hardly surprising that we end up with justifications for massive salary payments to people who take huge risks with other people’s money. If we teach that there is nothing else below the bottom line, then ideas about sustainability, diversity, responsibility and so on become mere decoration. The message that management research and teaching often provides is that capitalism is inevitable, and that the financial and legal techniques for running capitalism are a form of science. This combination of ideology and technocracy is what has made the business school into such an effective, and dangerous, institution.
(…) The problem is that business ethics and corporate social responsibility are subjects used as window dressing in the marketing of the business school, and as a fig leaf to cover the conscience of B-school deans – as if talking about ethics and responsibility were the same as doing something about it. They almost never systematically address the simple idea that since current social and economic relations produce the problems that ethics and corporate social responsibility courses treat as subjects to be studied, it is those social and economic relations that need to be changed.
(…) The easiest summary of all of the above, and one that would inform most people’s understandings of what goes on in the B-school, is that they are places that teach people how to get money out of the pockets of ordinary people and keep it for themselves. In some senses, that’s a description of capitalism, but there is also a sense here that business schools actually teach that “greed is good”.
(…) Having an MBA might not make a student greedy, impatient or unethical, but both the B-school’s explicit and hidden curriculums do teach lessons. Not that these lessons are acknowledged when something goes wrong, because then the business school usually denies all responsibility. That’s a tricky position, though, because, as a 2009 Economist editorial put it, “You cannot claim that your mission is to ‘educate the leaders who make a difference to the world’ and then wash your hands of your alumni when the difference they make is malign”.
(…) Most business schools exist as parts of universities, and universities are generally understood as institutions with responsibilities to the societies they serve. Why then do we assume that degree courses in business should only teach one form of organization – capitalism – as if that were the only way in which human life could be arranged? The sort of world that is being produced by the market managerialism that the business school sells is not a pleasant one. It’s a sort of utopia for the wealthy and powerful, a group that the students are encouraged to imagine themselves joining, but such privilege is bought at a very high cost, resulting in environmental catastrophe, resource wars and forced migration, inequality within and between countries, the encouragement of hyper-consumption as well as persistently anti-democratic practices at work.

Outros autores partilham da visão de Parker (p.ex.
Kean Birch da York University), mas as suas críticas às instituições universitárias estendem-se também ao ensino de economia. Dou apenas como exemplo um manifesto publicado em 2017 onde são apresentadas 33 teses que põem em causa a ideologia económica dominante (neoclássica e neoliberal) com propostas para uma visão pluralista da economia na sociedade e no ensino. Os seus promotores (Rethinking Economics e New Weather Institute) defendem uma reforma do sistema actual que fomente o pensamento crítico e a reflexão sobre as diferentes visões económicas que existem, em pé de igualdade com a ideologia e prática hegemónicas – sugiro a leitura do comentário de Margarida Chagas Lopes a este manifesto no blog Areia dos Dias.


NOVA-SBE: um caso paradigmático nacional


O artigo de Martin Parker começa com uma referência ao facto dos edifícios das escolas de gestão serem muitas vezes os mais modernos (ou os mais ostensivos!) num campus universitário, o que, segundo o autor, resultaria da capacidade de captar financiamentos em consonância com a sua missão de ensinar a lucrar no mundo dos negócios. Um bom exemplo recente no nosso país foi o ‘upgrade’ da faculdade de economia e gestão da Universidade Nova de Lisboa (mais conhecida pela designação baseada na sigla derivada do inglês, como manda o marketing), que se transferiu do velho edifício de Campolide para as novas instalações inauguradas com pompa e circunstância em 2018 (ver aqui ou aqui). A construção de um campus de estilo 'californiano' foi muito contestada e mediatizada pelo seu impacto e custo faraónico (ver aqui ou aqui). Um dos grandes atractivos da Nova SBE (e que lhe valeu a colagem à Califórnia) é a sua localização junto à praia de Carcavelos (com túnel directo e informação sobre a altura das ondas no seu website), como é destacado em notícias publicadas na altura no jornal Público – ver aqui ou aqui. Este mesmo jornal destacou ainda os impactos naquela zona, nomeadamente em termos do mercado imobiliário, que também foram alvo de contestação (ver aqui). Neste caso, a adesão ao paradigma económico dominante nunca foi camuflada, como se pode ler num artigo de Setembro de 2018 que faz uma análise crítica do modelo neoliberal da Nova SBE e da polémica campanha de angariação de fundos. De facto, embora pertencendo a uma universidade pública, a sua construção foi co-financiada por instituições ou empreendedores da ‘congregação global’ (ver aqui ou aqui).
Tratando-se de mais um templo da ‘igreja universal do economismo’, destinado a formar novos acólitos, não é de estranhar que, para além de um claustro (sic), tenha vários espaços aos quais foram atribuídos os nomes dos seus principais mecenas, como a ‘Biblioteca Teresa e Alexandre Soares dos Santos’, o ‘Santander Hall’ ou o ‘Jerónimo Martins Grand Auditorium’. Para completar o quadro, está em vista uma parceria com a ‘Singularity University’ (ver aqui), consumando a conjugação do culto ao neoliberalismo e ao trans-humanismo num só local! Como se pode ler num dos artigos citados acima, esta academia de formação das futuras elites do admirável mundo novo corporativo pode não ser Fátima, mas já fez milagres para o mercado imobiliário da região!
Mas como ‘no melhor pano cai a nódoa’, um relatório de uma comissão independente à NOVA-SBE, divulgado este ano (2021), revelou diversas situações de conflitos de interesses dos seus docentes em relação a instituições financeiras com as quais mantinham diferentes tipos de ligações (ver aqui). A notícia citada dá como exemplo o seu próprio director, Daniel Traça, que era administrador do Santander, onde auferiu 143 mil euros por essas funções durante o ano de 2019 que acumulou com o seu salário como docente, sendo aquele banco uma das empresas que financiou a construção do campus de Carcavelos. Para não pintar uma imagem demasiado negra daquela instituição, destaco a divulgação recente do relatório “Portugal: Balanço Social 2020” elaborado por Susana Peralta, Bruno P. Carvalho e Mariana Esteves, membros do ‘Economics for Policy Knowledge Center’ da Nova SBE, que traça um retrato socioeconómico das famílias portuguesas, revelando as situações de pobreza e exclusão social no país, e, em particular, alguns dos impactos sociais nefastos das medidas de mitigação da pandemia da Covid-19 (ver aqui e aqui). Uma das autoras deste estudo, Susana Peralta, que escreve artigos semanais de opinião para o Público, alguns dos quais críticos para com empresas privadas que são mecenas da Nova SBE, como o Novo Banco ou a EDP, esteve na origem de um parecer interno do Concelho de Catedráticos que aconselhava os seus docentes a não assinarem artigos de opinião com o nome da faculdade (noticiado no artigo do Público citado acima).

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Ser rio - reconciliar o sistema legal com a ecologia

Cry me a river - ilustração de Jackie Morris (2015)
Eu sou o rio e o rio sou eu. Provérbio Maori

You cannot dam a river and have it free. Suprabha Seshan

A atribuição de personalidade jurídica a elementos naturais como rios ou montanhas tem sido divulgada nos últimos anos como uma importante conquista dos movimentos ambientalistas, mas também das populações ribeirinhas (ver p.ex. aqui ou aqui), e foi acompanhada pelos movimentos mais abrangentes de reconhecimento legal dos direitos da natureza, em geral (ver p.ex. aqui ou aqui), e dos rios, em particular (Declaração Universal dos Direitos dos Rios, 2020). 
O processo teve início apenas recentemente na Nova Zelândia com a designação do parque natural Te Urewera (2014) e do rio Whanganui (2017) como sujeitos legais de direitos. Processos idênticos decorreram na Índia (rio Ganges e o seu afluente Yamuna), em comunidades locais nos EUA, na Colômbia (rio Atrato) e já este ano no Canadá (rio Muteshekau-shipu). Estas iniciativas pretendem reverter a ideia de que os bens naturais são recursos que podem ser explorados e rentabilizados ao abrigo do direito de propriedade consagrado nos sistemas legais, que valoriza aqueles bens em função da sua utilidade ou da sua relevância para os seres humanos. Dar personalidade jurídica aos bens naturais é reconhecer que têm valor intrínseco, independentemente do uso ou função, e que são recursos finitos, mas também que a espécie humana é parte – e não proprietária – dos ecossistemas.
Esta visão integrada entre humanos e natureza faz parte das cosmovisões de vários povos indígenas (consideradas, de forma redutora, como animistas), para quem as entidades naturais (florestas, rios, montanhas) são seres vivos, com a sua agência e identidade próprias. Para muitos desses povos não há dissociação da sua existência em relação à natureza (não-humana): convivem e compartilham com ela a construção dos seus modos de viver, costumes e tradições. Por conseguinte, ao adoptar esta perspectiva indígena e incorporá-la no sistema legal, reconhece-se que um rio, por exemplo, é uma entidade viva dotada de personalidade, de direitos e garantias. Pretende-se assim acautelar a proteção desse bem natural, cuja representação legal passa a ser mediada por guardiões designados para o efeito (em geral, representantes das populações que dele dependem directamente), agindo sempre no seu melhor interesse e respeitando ao mesmo tempo o seu valor intrínseco.
Rio Whanganui (Nova Zelândia)
Convém notar que aquelas iniciativas só se materializaram nos últimos anos, após décadas de acumulação de pensamento e conhecimento sobre ecologia, assim como de reivindicações e conflitos, protagonizados quer pelos movimentos ambientalistas, quer pelas comunidades indígenas. Por exemplo, a luta pela reapropriação do rio neozelandês pelos Whanganui Iwi (povo indígena Maori) durou mais de um século (iniciou-se na década de 1870)! Trata-se na verdade de um confronto entre visões de mundo radicalmente diferentes: por um lado, a do modelo socioeconómico globalizado (de matriz europeia, antropocêntrica e colonial) baseado na ideologia neoliberal e na economia de mercado, que promove o materialismo, o utilitarismo, a acumulação e a usurpação, e, por outro, a das sociedades indígenas cujas práticas quotidianas promovem o exercício colectivo de responsabilidade em proteger, conservar, prosperar e melhorar no longo prazo para assegurar o bem-estar das gerações futuras. Como realça o académico e político Maori Pita Sharples: “Ambos os modelos de sociedade buscam aumentar o valor, mas a diferença está em como cada um valoriza o recurso: pelo lucro que pode ser obtido? Ou pelo contributo em taonga (conceito Maori afim de património ou riqueza, material e imaterial) para a sobrevivência do grupo?” (citado aqui)
Rio Douro
A actual crise ecológica global poderia ser uma oportunidade para transformar os valores sociais e culturais, assim como os sistemas políticos, jurídicos e económicos das sociedades contemporâneas que não foram capazes de impedir a destruição e degradação dos bens naturais – bastaria invocar os desastres ambientais que ocorreram no Estado de Minas Gerais como resultado da rotura das barragens de Mariana (2015) e de Brumadinho (2019) que afectaram as bacias dos rios Doce e Paraopeba, respectivamente (ver p.ex. aqui e aqui).
Rio Doce (Minas Gerais)
A introdução de reformas no sistema jurídico com a incorporação dos direitos da natureza e da atribuição de personalidade jurídica aos bens naturais são passos importantes para uma reconciliação das leis humanas com as da natureza, mas são claramente insuficientes (ver também aqui). O que está em causa é também um sistema económico que é incompatível com a sustentabilidade ambiental e a manutenção dos ecossistemas, assim como uma visão dominante do mundo nascida do materialismo e racionalismo cartesiano e intensificada pela hegemonia do paradigma tecnocientífico, que dessacralizou a natureza e desvalorizou modos de vidas e cosmovisões considerados primitivos e retrógrados. Precisamos pois de reconciliar o direito, mas também a economia e a ética, com a ecologia. De recuperarmos uma visão de mundo ecocêntrica que reconheça os humanos como parte integrante de um mundo-mais-do-que-humano cujas componentes são interdependentes e têm valor intrínseco – ou seja, são sagradas. Para que os nossos modos de vida e os nossos valores se realinhem com a continuidade da vida e dos ecossistemas dos quais dependemos.
Rio Erges (afluente do Tejo)
Termino invocando um magnífico texto poético (‘Cry me a river’) da educadora ambiental Suprabha Seshan, sedeada em Kerala (Índia), onde ela tece uma elegia aos rios adoptando a voz de uma mulher junto ao rio Kabini que se dirige às mulheres ao longo do rio Chalakudy (mais a Sul) que lutam contra a construção da barragem de Athirapally. Transcrevo excertos das suas palavras inspiradas e comoventes:
“It is said that the currents in the economies are more valuable than the currents in the ecologies. All these flows (material and immaterial, invented and real), are interchangeable. It is said that cash flow is like river flow, that money equals currency equals flow equals ecology equals economy equals happiness equals food equals dynamic business deals, equals the construction industry equals upliftment of poverty.”

“It is said that the living world is an illusion, and the electrified world is real. It is said that the living world is needed to deliver us to the pinnacle of prosperity exemplified by the machine world, and that this is our glorious destiny.”

“Rivers are not alive, it is said. They are, like factories and cars, systems that can be taken apart and put together. It is said that the world’s economy needs the world’s rivers, the world’s oceans, the world’s forests, and the world’s people. That the world’s economy is infinitely more important than the world’s ecology, which is now measured at $33 trillion (only). That the currents between bank accounts flow sweeter than the waters of a river, enabling our evolution as a species, by nourishing our bellies, our minds and hearts and ever-demanding bodies. Nearly all the rivers in the world have been dammed, what’s your worry, are you not being supported by the economy?”

“Rivers are needed for progress, it is said. Communities along rivers can be sacrificed for modern culture. Historical and continuing injustices are irrelevant, it is said, for now there is progress. Resettlements, the disfigurement of ancient homes and biomes, and the shunting of land-based cultures into digital smart cities (unsmogged, unpolluted, uncrowded, uncriminal, unreliant on the earth) are necessary undertakings (…) For powering the virtual flow, delivering more goodness, happiness and wellbeing than the rivers could ever do if they were free flowing.”

“Rivers are transport systems for trade, it is said.

Rivers are beautiful, it is said.
River-front property is costly, it is said.
Rivers attract millions of tourists, it is said.
You can’t step into the same river twice, it is said.
Rivers make great metaphors, it is said.
Life is like a river, it is said.
Riverlike, we flow, it is said.
Rivers are the arteries of the planet, it is said.”

quarta-feira, 31 de março de 2021

Um ano de pandemónio

 

“A Covid-19 é mais um passo numa longa tendência de desconexão com a comunidade, com a natureza e com o lugar. A cada passo dessa desconexão, embora possamos sobreviver como seres separados, tornamo-nos cada vez menos vivos.” Charles Eisenstein

“Estamos a fechar-nos não só em relação à doença, mas também em relação a outras facetas do ser humano.” Sunetra Gupta

“(…) uma guerra contra um inimigo invisível que se pode esconder em qualquer outra pessoa é a mais absurda das guerras. É, na verdade, uma guerra civil. O inimigo não está fora, está dentro de nós.” Giorgio Agamben

Fez neste mês de Março um ano que a Organização Mundial de Saúde declarou a Covid-19 como pandemia (a 11 de Março) e que o presidente português decretou o primeiro estado de emergência, concertado com o governo e com o apoio da AR (a 18 de Março), dando lugar a uma sucessão de medidas de mitigação que incluíram vários confinamentos compulsivos de toda a população, como aconteceu em muitos outros países. Sei que existe mais vida para além da Covid (mal de nós!), mas não consigo conformar-me perante a disrupção das nossas vidas infligida pelos poderes e interesses instalados a pretexto da crise sanitária e escrever sobre isto é uma forma de exorcizar a profunda tristeza e enorme revolta que sinto. Mas em vez de tentar expressá-lo pelas minhas próprias palavras ou de tentar fazer um balanço do ano que passou (talvez ainda o venha fazer), decidi compilar algumas imagens (minhas ou respigadas da internet) e alguns excertos de textos (traduzidos por mim, quando necessário) que fui reunindo durante os últimos meses. É possível encontrar os meus ‘posts’ anteriores sobre o tema aqui.

Charles Eisenstein, The Coronation (Abr 2020): Se há algo em que a nossa civilização é competente, é em combater um inimigo. Congratulamo-nos com as oportunidades de fazer aquilo em que somos bons, o que comprova a legitimidade dos nossos sistemas, tecnologias e visão de mundo. E assim, fabricamos inimigos, apresentamos problemas como crime, terrorismo e doenças em termos de “nós versus eles”, e mobilizamos as nossas energias colectivas para as diligências que podem ser vistas dessa maneira. Assim, usamos a Covid19 como um apelo às armas, reorganizando a sociedade como se fosse para um esforço de guerra, enquanto tratamos como normal a possibilidade do apocalipse nuclear ou do colapso ecológico, ou o facto de milhões de crianças morrerem de fome.

Comuna de Arroios, A pandemia e os gestos de caridade (Abr 2020): Numa intuição talvez ainda silenciosa e privada, é já óbvio para todos que a pastoral económica que todos os dias nos é enfiada goela abaixo é um boneco animado a correr no vazio, e que o apelo consensual de que ‘vai tudo ficar bem’ é apenas um auspício sombrio da crise que vem.


Claire Fontaine, Carta contra a separação (Abr 2020): Vivemos numa economia de risco, que criou uma sociedade de risco. O risco está desigualmente distribuído, mas isto parece ser apenas mais uma experiência da vida nas democracias liberais. (…) Porque pela primeira vez os estados-nação decidiram que os seus cidadãos não podem correr riscos. Em nome do Covid-19, as nossas vidas foram-nos retiradas. (…)  É importante, mas não é fácil, evitar ficar deprimido e zangado, porque estamos a pagar o preço da austeridade: não podemos ser curados, não podemos ficar doentes, portanto não podemos viver. “Lá fora, o caixão, cá dentro, a televisão” como coloca brilhantemente Vanegeim, somos ordenados a prosseguir o trabalho remotamente num pesadelo Orwelliano que despreza completamente a situação biológica do confinamento.

Paulo Costa, Mortalidade, confinamento e síndrome de Estocolmo (Jun 2020): A mortalidade tão assimétrica para a COVID-19, cuja interpretação representa um desafio para a comunidade científica, pode residir em grande medida não na agressividade do vírus, mas na assimetria do combate ao mesmo. Pode haver muitas vítimas de “fogo amigo”. Por tão óbvia, esta explicação poderá não ser evidente. Por tão incómoda, poderá não ser reconhecida. (…)  Uma parte apreciável do excesso de mortalidade, em Portugal, não terá ficado a dever-se apenas à pandemia viral e à sua resposta, mas também à “panicodemia” que grassou em paralelo e que terá sido plausivelmente catalisada pela disrupção da normalidade social. O medo tornou-se um factor de risco.

Santana Castilho, Afinal era o postigo (Jan 2021): Governantes sensatos e cultos, independentes de qualquer ideologia militante, não poderiam ignorar que a propósito dos danos da covid-19 se ensaiam engenharias sociais, alavancadas pelos avanços fabulosos da digitalização global, que outro fito não têm senão controlar e domesticar a liberdade individual. Porque não sou negacionista, preocupa-me muito o potencial infeccioso do vírus. Mas porque não sou estúpido, preocupam-me muito mais os efeitos colaterais, destruidores, de muitas das medidas tomadas para o combater.

Bernard-Henri Lévy, The Virus in the Age of Madness (Ago 2020): Uma vida em que se aceita, com entusiasmo ou resignação, a transformação do estado de bem-estar em estado de vigilância, com a saúde a substituir a segurança, uma vida em que se aceita este rumo perigoso: já não o antigo contrato social (onde se cede um pouco da sua vontade individual em prol da vontade colectiva), mas um novo contrato de vida (onde se abdica um pouco, ou muito, das liberdades fundamentais, em troca de uma garantia de antivírus, um “passaporte de imunidade”, um “certificado de risco-zero” ou um novo tipo de salvo-conduto para desencarceramento, que permita a transferência para outra cela). Neste processo, deu-se uma ruptura profunda com o que toda a sabedoria do mundo, notavelmente, mas de forma alguma exclusivamente judaica, se esforçou por dizer: que uma vida não é uma vida se for meramente vida.

William ReesThe Earth Is Telling Us We Must Rethink Our Growth Society (Abr 2020): À medida que a pandemia se desenrola, a maioria das pessoas, liderada por governantes e decisores políticos, percebe a ameaça apenas em termos de saúde humana e o seu impacto na economia. Consistente com a visão dominante, os grandes media convocam quase exclusivamente médicos e epidemiologistas, gestores e economistas para avaliar as consequências do surto viral. (...) Quando recorrerão a ecologistas sistémicos para explicar o que realmente está a acontecer? (...) A discussão principal concentra-se obstinadamente em derrotar a COVID-19, facilitando a recuperação, restaurando o crescimento e, de alguma forma, voltando ao normal. Afinal, como escreveu Gregory Bateson: “Este é o paradigma: tratar o sintoma para tornar o mundo seguro para a patologia”. Reflictam sobre isto: o ‘normal’ é a patologia. 


Michel Rosenzweig, D’une pandemie affolante à une syndemie raisonsable (Jan 2021): Nunca houve uma “pandemia” no sentido que a ciência epidemiológica a entende, mas muito mais uma sindemia, uma reunião de vários fatores agravantes dos efeitos de um vírus que fundamentalmente não é mais perigoso do que outro vírus respiratório do tipo gripal, mas que funciona como um acelerador, um catalisador de efeitos tóxicos em certas categorias de pessoas de risco, por razões multifatoriais que devem ser consideradas seriamente em vez de acreditar na univocidade da solução vacinal e nas supostas virtudes do confinamento repetido.

Santiago Alba Rico, Capitalismo pandémico (Jan 2021): A política e a ciência deveriam lutar para libertar a humanidade e a si mesmas do capitalismo. Isso seria bom para todos. (...) Os vírus passam de animais abusados para humanos abusados numa sinergia potencialmente apocalíptica. (...) Queremos acreditar nos políticos e acontece que a política é sequestrada pelos índices bolsistas, pelos prémios de risco e pelos limites draconianos do déficit público. Queremos acreditar nos cientistas e descobrimos que a ciência é sequestrada por empresas farmacêuticas. O mercado, com efeito, é a sindemia.


Leila Mechoui & Alexander Davidson, The pandemic that changed nothing (Jan 2021): Uma consideração cuidadosa da economia política da COVID-19 revela que os confinamentos não cumpriram, de facto, a promessa de salvar vidas que foi propagandeada. Agora que a utilidade política dos confinamentos diminuiu, ficará cada vez mais claro que essas medidas representaram nada mais do que um teatro político punitivo e uma consolidação adicional do controle capitalista. (…) o confinamento é a dissolução das poucas interacções fora do mercado ainda possíveis sob o capitalismo, transformando a vida numa fusão perfeita de consumo e trabalho. Isto tornar-se-á cada vez mais claro à medida que dados adicionais forem recolhidos, até que a extensão dos danos ao nosso bem-estar físico e mental seja inegável. (…) Acreditar que o vírus sempre foi uma ameaça significativa para os trabalhadores, ou que poderia de alguma forma ser usado contra a burguesia para promover a luta de classes, foi um erro vergonhoso. Os liberais de esquerda, ao apoiar uma resposta à pandemia não testada, não comprovada e historicamente sem precedentes, apenas ajudaram a burguesia a piorar a vida das pessoas pelas quais afirmam falar.

Jeremy R. Hammond, Should you be afraid of airborne transmission of SARS-Cov2? (Dez 2020): (...) a recomendação do CDC para evitar situações em que alguém se encontra a menos de dois metros de outras pessoas por quinze minutos ou mais permanece sensata, assim como a recomendação da OMS de usar uma máscara como cortesia para com os outros em situações onde o contacto próximo é inevitável. A ideia de que devemos simplesmente deixar de viver as nossas vidas ou usar sempre uma máscara onde quer que formos, por outro lado, além de enjeitar a real ameaça duma governança autoritária, também não é sustentada pela totalidade das evidências científicas.


Giorgio Agamben, O tempo que vem (Nov 2020): Se os poderes que governam o mundo sentiram que deviam recorrer a medidas e artifícios extremos como a biossegurança e o terror sanitário, que instigaram por toda a parte e sem reservas, mas que agora ameaçam fugir ao controlo, é porque temeram, segundo toda a evidência, não ter outra escolha para sobreviver. E se as pessoas aceitaram as medidas despóticas e restrições sem precedentes às quais foram submetidas sem qualquer garantia, não é apenas por causa do medo da pandemia, mas provavelmente porque, mais ou menos inconscientemente, sabiam que esse mundo em que viveram até então não podia continuar, era muito injusto e desumano.

Charles Eisenstein, The Coronation (Abr 2020): Quanto da vida queremos sacrificar no altar da segurança? Se isso nos mantiver mais seguros, queremos viver num mundo onde os seres humanos nunca se reúnem? Queremos usar sempre máscaras em público? Queremos ser examinados clinicamente cada vez que viajarmos, se isso salvar um número de vidas por ano? Estamos dispostos a aceitar a medicalização da vida em geral, entregando a soberania final sobre os nossos corpos às autoridades médicas (conforme selecionadas pelas autoridades políticas)? Queremos que todos os eventos sejam virtuais? Quanto estamos dispostos a viver no medo? Queremos continuar a isolar-nos ainda mais uns dos outros e do mundo?

 


Termino com as palavras de Bertolt Brecht* (escritas muito antes desta pandemia, mas num contexto não menos sombrio e inquietante):
 
Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural.
Pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural.
Nada deve parecer impossível de mudar.

* Citação original (versão inglesa):
Let nothing be called natural
In an age of bloody confusion,
Ordered disorder, planned caprice,
And dehumanized humanity, lest all things
Be held unalterable!
(The Exception and the Rule, 1937, Prologue)

quarta-feira, 17 de março de 2021

Mensagens de líderes indígenas em tempos pandémicos


Partilho endereço do 'site' Rooted Messages lançado em Novembro de 2020 que reune os testemunhos preciosos de 16 líderes espirituais de povos indígenas espalhados pelo globo em resposta à pergunta 'O que é que o mundo precisa de ouvir neste momento?' 
Trailer da série aquiNão será difícil de perceber quão distantes são estas mensagens daquelas que preenchem o espaço mediático do nosso quotidiano...

Partilho também um artigo recente (Dez 2020) da revista Yes! que descreve as práticas ancestrais de vida em comunidade e de cuidado mútuo de povos indígenas norte-americanos em tempos de pandemia – ‘This is not our first pandemic’.

Precisamos de ouvir as vozes daqueles que têm conseguido resistir à voragem desenfreada e insustentável das sociedades ditas modernas, que prometem progresso e bem-estar mas oferecem violência e destruição.

quarta-feira, 10 de março de 2021

O poder da narrativa: a história da professora e da Grande Cisão

“Num momento em que a discórdia instalada sobre fontes válidas de factos torna o debate impossível, o que pode reduzir a divisão? Talvez sejam as histórias: tanto histórias de ficção que convocam verdades de outra forma inacessíveis através das barreiras de ‘fact-checking’, quanto histórias pessoais que nos re-humanizem mutuamente.” (At a time when lack of agreement on a valid source of facts makes debate impossible, what can bridge the divide? Maybe here too it is stories: both fictional stories that carry truths that are otherwise inaccessible through barriers of fact control, and personal stories that rehumanize each other to each other.) Charles Eisenstein

Este post é um pretexto para partilhar uma história preciosa com a qual me cruzei há uns anos e que guardava no meu arquivo - senti ter chegado o momento certo para o fazer. “The Apocalypse of the Teacher (The Book of the Great Divide)” é da autoria de um escritor norte-americano obscuro, que escreve sob o pseudónimo J.H. Marten, tratando-se na verdade de uma história dentro de outra história. Escrevi abaixo um preâmbulo de contextualização, mas deixo desde já o acesso à minha tradução do texto para português (aqui) ou a possibilidade de aceder ao original nesta ligação.

Num ensaio recente o autor e pensador norte-americano Charles Eisenstein reflecte sobre a profunda clivagem dentro da sociedade do seu país causada por um entrincheiramento em campos ideológicos opostos e estanques que está a pôr em causa a própria noção de democracia. Trata-se de uma reflexão lúcida e profunda em que o autor expõe a brutal guerra de informação em curso, que está não só a impossibilitar o diálogo construtivo e conciliador em torno de questões relevantes para o bem-estar futuro da sociedade, como está simultaneamente a minar a confiança das pessoas umas nas outras e nas suas instituições. Eisenstein descreve o cenário de censura e de propaganda que tomou de assalto o espaço mediático e de discussão pública, dominado pelos mesmos poderes e interesses instalados das elites económicas e financeiras que controlam também os poderes políticos. O autor defende que as possibilidades de questionamento das narrativas dominantes por via do discurso e debate racionais se tornam cada vez mais difíceis e que para tal há que recorrer a estratégias alternativas que possam conduzir ao apaziguamento das divisões e à recuperação da confiança mútua. E é nesse contexto que sugere o recurso ao poder das histórias e à sua capacidade de invocar arquétipos e de convocar as dimensões emocionais e éticas do subconsciente colectivo.

Num outro ensaio de 2020, o autor britânico Dougald Hine reflecte sobre duas visões de mundo antagónicas que informam atitudes igualmente irreconciliáveis (aparentemente) perante a ameaça existencial da crise ambiental global. Hine remete a divisão instalada nas sociedades modernas entre os defensores da ciência e do progresso e os que invocam crenças e virtudes de um passado idealizado, para uma cisão mais antiga e profunda que pretende separar razão e emoção, cabeça e coração. O autor defende que a alienação e o ressentimento em relação à ciência dos segundos se deve em boa parte aos primeiros que agruparam a prática da ciência, a faculdade da razão e a promessa da tecnologia num sistema de crenças. A sua grande história de progresso há muito deixou de dar sentido à experiência de vida de muitas pessoas e a visão de mundo baseada numa fé tecnocientífica, que configura uma dissociação da experiência física e emocional, contribuiu para as condições em que a negação poderia prosperar. Segundo Hine, a esperança numa época assombrada por visões de uma ‘Terra inabitável’, não está nem no triunfo da razão, nem na recuperação de um passado imaginado, mas sim no difícil trabalho de aprender a sentir e pensar juntos novamente.

Segundo nos diz a professora que conta a história dentro da história da ‘fábula moderna’ de J.H. Marten, ela é “simultaneamente sobre ciência e religião, sobre possibilidades e limites” e que “não será feliz nem triste; será sobre alegria e tristeza. E não haverá heróis, porque será uma história honesta, e uma história honesta só pode ser sobre humildade.” Creio que o legado de J.H. Marten vai de encontro, quer ao desafio de Hine, quer ao desejo de Eisenstein de encontrar novas formas de reconciliação e re-humanização das nossas sociedades divididas e disfuncionais através do poder da narrativa: “Com a determinação de buscar histórias sobre aqueles que estão fora do nosso recanto familiar da realidade, poderemos realizar o potencial da Internet para restaurar o conhecimento partilhado. Teremos então os ingredientes para um renascimento democrático.”(With the willingness to seek stories of those outside one’s familiar corner of reality, we may fulfill the potential of the internet to restore the knowledge commons. Then we will have the ingredients of a democratic renaissance.)