“A Covid-19 é mais um passo numa longa tendência
de desconexão com a comunidade, com a natureza e com o lugar. A cada passo dessa
desconexão, embora possamos sobreviver como seres separados, tornamo-nos cada
vez menos vivos.” Charles Eisenstein
“Estamos a fechar-nos não só em relação à doença, mas também em relação
a outras facetas do ser humano.” Sunetra Gupta
“(…) uma guerra contra um inimigo invisível que se pode esconder em
qualquer outra pessoa é a mais absurda das guerras. É, na verdade, uma guerra
civil. O inimigo não está fora, está dentro de nós.” Giorgio Agamben
Fez neste mês de Março um ano que a Organização Mundial de Saúde declarou
a Covid-19 como pandemia (a 11
de Março) e que o presidente português decretou o primeiro estado de emergência,
concertado com o governo e com o apoio da AR (a 18
de Março), dando lugar a uma sucessão de medidas de mitigação que incluíram
vários confinamentos compulsivos de toda a população, como aconteceu em muitos outros
países. Sei que existe mais vida para além da Covid (mal de nós!), mas não consigo
conformar-me perante a disrupção das nossas vidas infligida pelos poderes e
interesses instalados a pretexto da crise sanitária e escrever sobre isto é uma
forma de exorcizar a profunda tristeza e
enorme revolta que sinto. Mas em vez de tentar expressá-lo pelas minhas
próprias palavras ou de tentar fazer um balanço do ano que passou (talvez
ainda o venha fazer), decidi compilar algumas imagens (minhas ou respigadas da
internet) e alguns excertos de textos (traduzidos por mim, quando necessário)
que fui reunindo durante os últimos meses. É possível encontrar os meus ‘posts’
anteriores sobre o tema aqui.
Charles Eisenstein, The Coronation
(Abr 2020): Se há algo
em que a nossa civilização é competente, é em combater um inimigo. Congratulamo-nos com
as oportunidades de fazer aquilo em que somos bons, o que comprova a
legitimidade dos nossos sistemas, tecnologias e visão de mundo. E assim,
fabricamos inimigos, apresentamos problemas como crime, terrorismo e doenças em
termos de “nós versus eles”, e mobilizamos as nossas energias colectivas para as
diligências que podem ser vistas dessa maneira. Assim, usamos a Covid19 como um
apelo às armas, reorganizando a sociedade como se fosse para um esforço de
guerra, enquanto tratamos como normal a possibilidade do apocalipse nuclear ou do
colapso ecológico, ou o facto de milhões de crianças morrerem de fome.
Comuna de Arroios, A
pandemia e os gestos de caridade (Abr 2020): Numa intuição talvez ainda silenciosa e privada, é já óbvio para todos
que a pastoral económica que todos os dias nos é enfiada goela abaixo é um
boneco animado a correr no vazio, e que o apelo consensual de que ‘vai tudo
ficar bem’ é apenas um auspício sombrio da crise que vem.

Claire Fontaine, Carta
contra a separação (Abr 2020): Vivemos numa economia de risco, que criou uma sociedade de risco. O
risco está desigualmente distribuído, mas isto parece ser apenas mais uma
experiência da vida nas democracias liberais. (…) Porque pela primeira vez os
estados-nação decidiram que os seus cidadãos não podem correr riscos. Em nome
do Covid-19, as nossas vidas foram-nos retiradas. (…) É importante, mas não é fácil, evitar ficar
deprimido e zangado, porque estamos a pagar o preço da austeridade: não podemos
ser curados, não podemos ficar doentes, portanto não podemos viver. “Lá fora, o
caixão, cá dentro, a televisão” como coloca brilhantemente Vanegeim, somos
ordenados a prosseguir o trabalho remotamente num pesadelo Orwelliano que
despreza completamente a situação biológica do confinamento.
Paulo Costa, Mortalidade,
confinamento e síndrome de Estocolmo (Jun 2020): A mortalidade tão assimétrica para a COVID-19, cuja interpretação
representa um desafio para a comunidade científica, pode residir em grande
medida não na agressividade do vírus, mas na assimetria do combate ao mesmo.
Pode haver muitas vítimas de “fogo amigo”. Por tão óbvia, esta explicação
poderá não ser evidente. Por tão incómoda, poderá não ser reconhecida. (…) Uma parte apreciável do excesso de
mortalidade, em Portugal, não terá ficado a dever-se apenas à pandemia viral e
à sua resposta, mas também à “panicodemia” que grassou em paralelo e que terá
sido plausivelmente catalisada pela disrupção da normalidade social. O medo
tornou-se um factor de risco.
Santana Castilho, Afinal
era o postigo (Jan 2021): Governantes sensatos e cultos,
independentes de qualquer ideologia militante, não poderiam ignorar que a
propósito dos danos da covid-19 se ensaiam engenharias sociais, alavancadas
pelos avanços fabulosos da digitalização global, que outro fito não têm senão
controlar e domesticar a liberdade individual. Porque não sou negacionista, preocupa-me
muito o potencial infeccioso do vírus. Mas porque não sou estúpido, preocupam-me
muito mais os efeitos colaterais, destruidores, de muitas das medidas tomadas
para o combater.

Bernard-Henri Lévy, The
Virus in the Age of Madness (Ago 2020): Uma vida em que se aceita, com entusiasmo ou resignação, a
transformação do estado de bem-estar em estado de vigilância, com a saúde a
substituir a segurança, uma vida em que se aceita este rumo perigoso: já não o
antigo contrato social (onde se cede um pouco da sua vontade individual em prol
da vontade colectiva), mas um novo contrato de vida (onde se abdica um pouco,
ou muito, das liberdades fundamentais, em troca de uma garantia de antivírus,
um “passaporte de imunidade”, um “certificado de risco-zero” ou um novo tipo de
salvo-conduto para desencarceramento, que permita a transferência para outra
cela). Neste processo, deu-se uma ruptura profunda com o que toda a sabedoria
do mundo, notavelmente, mas de forma alguma exclusivamente judaica, se esforçou
por dizer: que uma vida não é uma vida se for meramente vida.
William Rees, The Earth Is Telling Us We Must Rethink Our Growth Society (Abr 2020): À medida que a pandemia se desenrola, a maioria das pessoas, liderada por governantes e decisores políticos, percebe a ameaça apenas em termos de saúde humana e o seu impacto na economia. Consistente com a visão dominante, os grandes media convocam quase exclusivamente médicos e epidemiologistas, gestores e economistas para avaliar as consequências do surto viral. (...) Quando recorrerão a ecologistas sistémicos para explicar o que realmente está a acontecer? (...) A discussão principal concentra-se obstinadamente em derrotar a COVID-19, facilitando a recuperação, restaurando o crescimento e, de alguma forma, voltando ao normal. Afinal, como escreveu Gregory Bateson: “Este é o paradigma: tratar o sintoma para tornar o mundo seguro para a patologia”. Reflictam sobre isto: o ‘normal’ é a patologia.

Michel
Rosenzweig, D’une
pandemie affolante à une syndemie raisonsable (Jan 2021): Nunca houve uma “pandemia” no sentido que a ciência epidemiológica a
entende, mas muito mais uma sindemia, uma reunião de vários fatores agravantes
dos efeitos de um vírus que fundamentalmente não é mais perigoso do que outro
vírus respiratório do tipo gripal, mas que funciona como um acelerador, um
catalisador de efeitos tóxicos em certas categorias de pessoas de risco, por
razões multifatoriais que devem ser consideradas seriamente em vez de acreditar
na univocidade da solução vacinal e nas supostas virtudes do confinamento
repetido.
Santiago Alba Rico, Capitalismo
pandémico (Jan 2021): A política e a ciência deveriam lutar para libertar a humanidade e a si
mesmas do capitalismo. Isso seria bom para todos. (...) Os vírus passam de
animais abusados para humanos abusados numa sinergia potencialmente
apocalíptica. (...) Queremos acreditar nos políticos e acontece que a política é
sequestrada pelos índices bolsistas, pelos prémios de risco e pelos limites
draconianos do déficit público. Queremos acreditar nos cientistas e descobrimos
que a ciência é sequestrada por empresas farmacêuticas. O mercado, com efeito,
é a sindemia.

Leila
Mechoui & Alexander Davidson, The pandemic
that changed nothing (Jan 2021): Uma consideração cuidadosa da economia política da COVID-19 revela que
os confinamentos não cumpriram, de facto, a promessa de salvar vidas que foi
propagandeada. Agora que a utilidade política dos confinamentos diminuiu,
ficará cada vez mais claro que essas medidas representaram nada mais do que um
teatro político punitivo e uma consolidação adicional do controle capitalista.
(…) o confinamento é a dissolução das poucas interacções fora do mercado ainda
possíveis sob o capitalismo, transformando a vida numa fusão perfeita de consumo
e trabalho. Isto tornar-se-á cada vez mais claro à medida que dados adicionais
forem recolhidos, até que a extensão dos danos ao nosso bem-estar físico e
mental seja inegável. (…) Acreditar que o vírus sempre foi uma ameaça
significativa para os trabalhadores, ou que poderia de alguma forma ser usado
contra a burguesia para promover a luta de classes, foi um erro vergonhoso. Os
liberais de esquerda, ao apoiar uma resposta à pandemia não testada, não
comprovada e historicamente sem precedentes, apenas ajudaram a burguesia a
piorar a vida das pessoas pelas quais afirmam falar.
Jeremy R. Hammond, Should
you be afraid of airborne transmission of SARS-Cov2? (Dez 2020): (...) a recomendação do CDC para evitar situações em que alguém se encontra
a menos de dois metros de outras pessoas por quinze minutos ou mais permanece
sensata, assim como a recomendação da OMS de usar uma máscara como cortesia
para com os outros em situações onde o contacto próximo é inevitável. A ideia de
que devemos simplesmente deixar de viver as nossas vidas ou usar sempre uma
máscara onde quer que formos, por outro lado, além de enjeitar a real ameaça
duma governança autoritária, também não é sustentada pela totalidade das
evidências científicas.

Giorgio Agamben, O tempo que
vem (Nov 2020): Se os poderes que governam o mundo sentiram que deviam recorrer a
medidas e artifícios extremos como a biossegurança e o terror sanitário, que
instigaram por toda a parte e sem reservas, mas que agora ameaçam fugir ao
controlo, é porque temeram, segundo toda a evidência, não ter outra escolha
para sobreviver. E se as pessoas aceitaram as medidas despóticas e restrições
sem precedentes às quais foram submetidas sem qualquer garantia, não é apenas
por causa do medo da pandemia, mas provavelmente porque, mais ou menos
inconscientemente, sabiam que esse mundo em que viveram até então não podia
continuar, era muito injusto e desumano.
Charles Eisenstein, The Coronation
(Abr 2020): Quanto da vida queremos sacrificar no altar da segurança? Se isso nos
mantiver mais seguros, queremos viver num mundo onde os seres humanos nunca se
reúnem? Queremos usar sempre máscaras em público? Queremos ser examinados
clinicamente cada vez que viajarmos, se isso salvar um número de vidas por ano?
Estamos dispostos a aceitar a medicalização da vida em geral, entregando a
soberania final sobre os nossos corpos às autoridades médicas (conforme
selecionadas pelas autoridades políticas)? Queremos que todos os eventos sejam
virtuais? Quanto estamos dispostos a viver no medo? Queremos continuar a isolar-nos ainda mais uns dos outros e do mundo?

Termino com as palavras de Bertolt Brecht* (escritas muito antes desta pandemia, mas num contexto não menos sombrio e inquietante):
Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural.
Pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural.
Nada deve parecer impossível de mudar.
* Citação original (versão inglesa):
Let nothing be called natural
In an age of bloody confusion,
Ordered disorder, planned caprice,
And dehumanized humanity, lest all things
Be held unalterable!
(The Exception and the Rule, 1937, Prologue)