“Num momento em que a discórdia instalada sobre fontes válidas de factos torna o debate impossível, o que pode reduzir a divisão? Talvez sejam as histórias: tanto histórias de ficção que convocam verdades de outra forma inacessíveis através das barreiras de ‘fact-checking’, quanto histórias pessoais que nos re-humanizem mutuamente.” (At a time when lack of agreement on a valid source of facts makes debate impossible, what can bridge the divide? Maybe here too it is stories: both fictional stories that carry truths that are otherwise inaccessible through barriers of fact control, and personal stories that rehumanize each other to each other.) Charles Eisenstein
Este post é um pretexto para partilhar uma história preciosa com a qual me cruzei há uns anos e que guardava no meu arquivo - senti ter chegado o momento certo para o fazer. “The Apocalypse of the Teacher (The Book of the Great Divide)” é da autoria de um escritor norte-americano obscuro, que escreve sob o pseudónimo J.H. Marten, tratando-se na verdade de uma história dentro de outra história. Escrevi abaixo um preâmbulo de contextualização, mas deixo desde já o acesso à minha tradução do texto para português (aqui) ou a possibilidade de aceder ao original nesta ligação.
Num ensaio recente o autor e pensador norte-americano Charles Eisenstein reflecte sobre a profunda clivagem dentro da sociedade do seu país causada por um entrincheiramento em campos ideológicos opostos e estanques que está a pôr em causa a própria noção de democracia. Trata-se de uma reflexão lúcida e profunda em que o autor expõe a brutal guerra de informação em curso, que está não só a impossibilitar o diálogo construtivo e conciliador em torno de questões relevantes para o bem-estar futuro da sociedade, como está simultaneamente a minar a confiança das pessoas umas nas outras e nas suas instituições. Eisenstein descreve o cenário de censura e de propaganda que tomou de assalto o espaço mediático e de discussão pública, dominado pelos mesmos poderes e interesses instalados das elites económicas e financeiras que controlam também os poderes políticos. O autor defende que as possibilidades de questionamento das narrativas dominantes por via do discurso e debate racionais se tornam cada vez mais difíceis e que para tal há que recorrer a estratégias alternativas que possam conduzir ao apaziguamento das divisões e à recuperação da confiança mútua. E é nesse contexto que sugere o recurso ao poder das histórias e à sua capacidade de invocar arquétipos e de convocar as dimensões emocionais e éticas do subconsciente colectivo.
Num outro ensaio de 2020, o autor britânico Dougald Hyne reflecte sobre duas visões de mundo antagónicas que informam atitudes igualmente irreconciliáveis (aparentemente) perante a ameaça existencial da crise ambiental global. Hyne remete a divisão instalada nas sociedades modernas entre os defensores da ciência e do progresso e os que invocam crenças e virtudes de um passado idealizado, para uma cisão mais antiga e profunda que pretende separar razão e emoção, cabeça e coração. O autor defende que a alienação e o ressentimento em relação à ciência dos segundos se deve em boa parte aos primeiros que agruparam a prática da ciência, a faculdade da razão e a promessa da tecnologia num sistema de crenças. A sua grande história de progresso há muito deixou de dar sentido à experiência de vida de muitas pessoas e a visão de mundo baseada numa fé tecnocientífica, que configura uma dissociação da experiência física e emocional, contribuiu para as condições em que a negação poderia prosperar. Segundo Hyne, a esperança numa época assombrada por visões de uma ‘Terra inabitável’, não está nem no triunfo da razão, nem na recuperação de um passado imaginado, mas sim no difícil trabalho de aprender a sentir e pensar juntos novamente.
Segundo nos diz a professora que conta a história dentro da história da ‘fábula moderna’ de J.H. Marten, ela é “simultaneamente sobre ciência e religião, sobre possibilidades e limites” e que “não será feliz nem triste; será sobre alegria e tristeza. E não haverá heróis, porque será uma história honesta, e uma história honesta só pode ser sobre humildade.” Creio que o legado de J.H. Marten vai de encontro, quer ao desafio de Hyne, quer ao desejo de Eisenstein de encontrar novas formas de reconciliação e re-humanização das nossas sociedades divididas e disfuncionais através do poder da narrativa: “Com a determinação de buscar histórias sobre aqueles que estão fora do nosso recanto familiar da realidade, poderemos realizar o potencial da Internet para restaurar o conhecimento partilhado. Teremos então os ingredientes para um renascimento democrático.”(With the willingness to seek stories of those outside one’s familiar corner of reality, we may fulfill the potential of the internet to restore the knowledge commons. Then we will have the ingredients of a democratic renaissance.)
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