quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Windigo/Wetiko: uma outra pandemia sub-reptícia

Windigo, Norval
Morriseau (1964)

Born of our fears and our failings, Windigo is the name for that within us which cares more for its own survival than for anything else. (…) It is the Windigo way that tricks us into believing that belongings will fill our hunger, when it is belonging that we crave. Robin Wall Kimmerer

We have to remember that we are living under a spell, and this spell is destroying our worlds. It’s time to cast another spell, to call other worlds into being, to conjure other worlds within this world. Natasha Myers

If wetiko exists, it is because it exists within us. (...) once we are in the mode of seeing wetiko, we can hack the cultural systems that perpetuate its logic. Alnoor Ladha & Martin King


Windigo, Wetiko, ou qualquer uma das outras variantes desta palavra (ver aqui), designa uma entidade da mitologia de povos originários da América do Norte (região dos Grandes Lagos) da família linguística algonquina (ver p.ex. aqui ou aqui). A palavra refere-se em geral a um espírito canibal que se apodera de um indivíduo susceptível, fazendo-o sucumbir à ganância, ao excesso e ao consumo egoísta. Windigo ilude o seu hospedeiro a acreditar que canibalizar a força vital de outros (incluindo animais e outras formas de vida) é uma forma lógica e moralmente correcta de viver. A origem do mito parece estar ligada aos invernos rigorosos daquela região e ao desespero da fome que poderia levar a actos de canibalismo dentro das comunidades. As histórias das tradições orais daqueles povos descreviam Windigo como uma criatura horrenda com um apetite insaciável por carne humana; qualquer um que se cruzasse com ela corria o risco de ser devorado ou mesmo transformado em Windigo. Diziam também que um Windigo nunca entrará no mundo espiritual, mas sofrerá a dor eterna de uma fome que nunca será saciada: quanto mais um Windigo come, mais voraz ele se torna. Daqui resultaram muitas apropriações pela cultura popular, bem como comparações com outras entidades maléficas, como os vampiros ou os zombies (ver p.ex. aqui). Ao mesmo tempo que reforçavam o tabu contra o canibalismo, quando a loucura da fome e do isolamento assombrava os abrigos de inverno, as histórias sobre Windigo fortaleciam a autodisciplina nas comunidades, fomentando a resistência contra o germe insidioso de querer em demasia. Aqueles ensinamentos reconheciam que a natureza Windigo está em cada um, sendo o monstro criado nas histórias um estratagema para transmitir a premência de repudiar essa faceta gananciosa de nós mesmos.
Além da referência ao monstro canibal do folclore tradicional, alguns autores e académicos nativos americanos também entendem Windigo como conceito e metáfora. De facto, a palavra pode aplicar-se a qualquer pessoa, ideia ou movimento infectado por um impulso corrosivo de ganância auto-engrandecedora e de consumo excessivo, características que semeiam desarmonia e destruição se não forem controladas. Desequilibrados e afastados das suas comunidades, os indivíduos considerados afetados por Windigo desfazem e destroem o equilíbrio ecológico ao seu redor. Além de caracterizar pessoas individuais que exibem tendências destrutivas, Windigo também pode descrever movimentos ou eventos com efeitos negativos semelhantes. Segundo Christopher Schedler, a figura de Windigo representa "formas consumidoras de exclusão e assimilação" por meio das quais grupos dominam outros grupos. As características de Windigo incluem a ganância, a sofreguidão, a insaciabilidade, o narcisismo/egocentrismo, a cegueira/negação (auto-inconsciência), a ausência de empatia e a arrogância (hubris).


Uma das autoras que invoca o mito de Windigo é a professora de biologia ambiental e cidadã da Nação Potawatomi, Robin Wall Kimmerer, no seu livro “Braiding Sweetgrass” (2013). ‘Windigo footprints’ e ‘Defeating Windigo’ são os títulos de dois capítulos do livro que descrevem a figura da mitologia dos povos originários, assim como as metáforas a ela associadas. Kimmerer sugere paralelismos com o pensamento ecológico e realça a importância das histórias tradicionais na transmissão de valores éticos: “Born of our fears and our failings, Windigo is the name for that within us which cares more for its own survival than for anything else. In terms of systems science, the Windigo is a case study of a positive feedback loop, in which a change in one entity promotes a similar change in another, connected part of the system. In this case, an increase in Windigo hunger causes an increase in Windigo eating, and that increased eating promotes only more rampant hunger in an eventual frenzy of uncontrolled consumption. In the natural as well as the built environment, positive feedback leads inexorably to change - sometimes to growth, sometimes to destruction. When growth is unbalanced, however, you can’t always tell the difference. Stable, balanced systems are typified by negative feedback loops, in which a change in one component incites an opposite change in another, so they balance each other out. When hunger causes increased eating, eating causes decreased hunger; satiety is possible. Negative feedback is a form of reciprocity, a coupling of forces that create balance and sustainability. Windigo stories sought to encourage negative feedback loops in the minds of listeners.” A autora estabelece também uma ponte com o sistema económico dominante, baseado na depredação e na ganância: “Maybe we’ve all been banished to lonely corners by our obsession with private property. We’ve accepted banishment even from ourselves when we spend our beautiful, utterly singular lives on making more money, to buy more things that feed but never satisfy. It is the Windigo way that tricks us into believing that belongings will fill our hunger, when it is belonging that we crave. On a grander scale, too, we seem to be living in an era of Windigo economics of fabricated demand and compulsive overconsumption. What Native peoples once sought to rein in, we are now asked to unleash in a systematic policy of sanctioned greed.”


Um autor que expande drasticamente o conceito de Windigo (Wetiko) para o de uma doença civilizacional é o poeta e ensaísta nativo americano Jack D. Forbes (professor de Estudos Nativos Americanos na Universidade da Califórnia, falecido em 2011) no seu livro “Columbus and Other Cannibals: The Wétiko Disease of Exploitation, Imperialism, and Terrorism”, publicado originalmente em 1978 - existe uma tradução portuguesa do livro publicada pela Antígona em 1998. Nele o autor, para além de uma abordagem da história colonial europeia sob o prisma das culturas nativas americanas, invoca o conceito de Wetiko para estabelecer paralelismos com processos históricos e culturais noutras partes do mundo que resultaram igualmente na destruição de modos de vida e de habitats naturais. Escreve Forbes: “Os imperialistas, violadores e espoliadores não são propriamente pessoas que se perderam por caminhos errados. São dementes e vis no exacto sentido que têm estas palavras. São pessoas enfermas do ponto de vista mental, e o que é trágico é que a forma assumida por esta patologia espiritual revela-se infecciosa e alastra.” O autor atribui várias características normalizadas nas sociedades ocidentais, como a agressão, a violência, a arrogância, a ganância, a gula, a escravidão, o terrorismo, o genocídio e o consumo da vida e das posses de outras criaturas, a uma psicose Wetiko – “doença espiritual com um vector físico” - que ele apelida de canibalismo, considerando-a “a maior epidemia conhecida pelo ser humano”. Forbes alerta para o facto de que “aqueles que ascendem [numa cultura wetiko] são, ou tornam-se, wetiko, e apenas perpetuam o sistema de corrupção ou opressão”. Forbes estabelece ainda um vínculo entre a luta pela libertação em relação àqueles que exploram a Terra e os seus povos, e as lutas pela autodeterminação e pela auto-realização. À psicose Wetiko Forbes contrapõe a ideia de parentesco, ou o que os navajos apelidam de k'é. O parentesco apela a sentimentos positivos e apego aos outros, não apenas em relação à própria família ou grupo tribal, mas também a todos os seres animados, às plantas, bem como rios e ao planeta em geral. Forbes defende que há um poder de cura na terra e um forte sentimento de enraizamento e pertencimento que vem com tais práticas de parentesco.


Um outro autor que invoca Forbes e descreve Wetiko simultaneamente como doença mental (que ele apelida de ‘malignant egophrenia’) e como doença cultural ou psicose colectiva, que conduziu ao actual estado do mundo, é Paul Levy no seu livro de 2013 “Dispelling Wetiko: Breaking the curse of evil” (ver também aqui). Influenciado pela psicologia jungiana, Levy equipara wetiko a uma doença viral que transmite as características da ganância, da voracidade e da violência, e que promove e é estimulada por uma cultura com as mesmas características. Operando dissimuladamente através dos pontos cegos da psique humana, o vírus wetiko torna as pessoas inconscientes da sua própria condição, obrigando-as a agir contra os seus próprios interesses. Também Levy amplia o conceito para englobar situações específicas do mundo - como a destruição da floresta amazónica por uma miríade de corporações multinacionais, ou a criação das chamadas ‘sementes exterminadoras’ pelas corporações agro-alimentares na sua ambição de controlar a produção de alimentos - encarando-as como encenações na vida real, tanto literal quanto simbolicamente, daquele processo interior autodestrutivo. A outra manifestação da epidemia, segundo Levy, é o sistema económico e financeiro global que ele descreve como “maleficent psycho-pathology getting down to business” e que designa por ‘wetikonomy’: “A economia global (…) exibe a lógica linear da doença wetiko baseada no medo, uma vez que reduz tudo a dólares e cêntimos. Vivemos dentro de uma estrutura económica horrível e abstrata que em si é um símbolo vivo e representação da insanidade fora de controlo do vírus wetiko. O sistema financeiro global é um dos vetores e caminhos mais rápidos através dos quais o vírus wetiko está a converter-se numa pandemia por todo o mundo.” Recorrendo ao conceito jungiano de sombra, a verdadeira cura para wetiko, na perspectiva de Levy, é uma mudança radical na autoconsciência e um discernimento de que “não há lugar para nos refugiarmos, excepto na verdadeira natureza do nosso ser”. O resultado seria um novo tipo de lógica que reconhece que a interdependência, a totalidade ilimitada e a unidade de todas as coisas constituem a estrutura de um novo paradigma que nos liberta da velha história da civilização industrial e representa o término do nosso vínculo com a psicose coletiva. Esconjurar e curar wetiko é portanto torná-lo visível, expô-lo, desconstruí-lo, promovendo a auto-consciência, a lucidez e o espírito crítico.

Windigo, Norval Morriseau

Na mesma linha de pensamento e bebendo das ideias de Forbes e Levy, Alnoor Ladha e Martin Kirk identificam, quer o colonialismo, quer o capitalismo, como formas duma mesma cultura wetiko de raíz europeia, num artigo para a revista Kosmos: “Seeing Wetiko: On Capitalism, Mind Viruses, and Antidotes for a World in Transition” (2016). Os autores começam por invocar a memética, equiparando os memes a vírus culturais com poder de replicação, assim como as ideias de diversas tradições espirituais e de cosmovisões indígenas da natureza mental da criação e das chamadas formas-pensamento (‘thought-forms’), tomando wetiko como exemplo. Ladha e Kirk alegam que esta figura da mitologia ameríndia constitui uma metáfora poderosa para compreender as raízes da actual policrise global. Citando Forbes, atribuem primeiramente o genocídio das populações ameríndias pelos colonizadores europeus a uma manifestação da sua cultura wetiko: “os seus actos hediondos foram decretados com uma certeza moral racionalizando a destruição em nome do 'progresso' e da 'civilização'. Esse enquadramento dissimula a extensão da infecção wetiko na cultura invasora. Eles estavam tão cegos pela sua convicção auto-referencial que não conseguiam ver a vida do outro como sendo tão importante quanto a sua.” Defendem também que a cultura wetiko tem raízes europeias: “a epidemiologia de wetiko deixou claros indicadores da sua linhagem. E embora não possa ser patologizada segundo linhas geográficas ou raciais, a estirpe cultural que conhecemos hoje tem certamente muitas das suas raízes mais profundas na Europa. Afinal, foram os projetos europeus – do Iluminismo à Revolução Industrial, ao colonialismo, ao imperialismo e à escravatura – que desenvolveram a tecnologia que abriu os canais que facilitaram a disseminação da cultura wetiko em todo o mundo. Desta forma, somos todos herdeiros do colonialismo wetiko.” Estendem depois esta análise ao capitalismo moderno que reúne duas facetas marcantes da cultura wetiko – a insaciabilidade e a frieza – e ao qual atribuem a designação dada por Levy de ‘wetikonomy’. Entre as caracteríticas desta 'wetikonomy', destacam: “A sua voracidade por recursos finitos; o seu desprezo pela dor dos grupos e culturas que consome; a sua crença no consumo como salvação; a sua obsessão dominante com o seu próprio crescimento material; e a sua disseminação viral pela superfície do planeta.” Os autores defendem ainda que, como qualquer sistema complexo, a cultura wetiko transmite-se e autoperpetua-se no espaço e no tempo: “as elites do poder auto-organizam os recursos para manter um elevado grau de continuidade nas distribuições de poder, garantindo que essas distribuições servem eficientemente a sua sobrevivência e crescimento. Quando essa continuidade é interrompida ou destruída, ocorrem revoluções e o sistema fica ameaçado.” Segundo os autores, o segredo para a perpetuação do capitalismo (como sistema wetiko) é a sua natureza adaptativa e a forma como dissimula a sua lógica operativa, impedindo que seja ameaçado: “primeiro, significa inserir a lógica nas regras profundas que regem o todo. Não apenas esta ou aquela economia nacional, este ou aquele governo, mas o sistema-mãe – o sistema operativo global. E segundo, significa fazer com que essas regras pareçam tão intratáveis e inevitáveis quanto possível. Então, qual é essa lógica profunda do sistema operativo global? Tem duas componentes. Primeiro, há o propósito final, que poderíamos designar por Primeira Diretriz, que é simplesmente aumentar o capital, como o termo capitalismo implica. [validado como meio para alcançar o progresso] (...) Depois, há a lógica de como nós, os componentes vivos desse sistema, devemos comportar-nos, que resumiríamos no seguinte epíteto: O egoísmo é racional e a racionalidade é tudo; portanto, o egoísmo é tudo.” Finalmente, os autores propõem (tal como Levy) que o antídoto para a infecção e cultura wetiko está inscrito na sua própria natureza: “Uma lição fundamental da teoria dos memes é que, quando estamos conscientes dos vírus meméticos, é menos provável que adiramos a eles cegamente. A percepção consciente é como a luz do sol através das frestas de uma janela. Assim, um dos pontos de partida para a cura é o simples acto de descortinar wetiko em nós mesmos, nos outros e na nossa infraestrutura cultural. E uma vez que vemos, podemos nomear, o que é crítico porque as palavras e a linguagem são um campo de batalha central.” Ladha e Kirk alertam ainda para os estratagemas de cooptação do capitalismo que desvirtuaram projectos reformistas, como a economia da partilha ou o micro-crédito, e propõem: “uma vez que estamos no modo de descortinar wetiko, podemos desconstruir os sistemas culturais que perpetuam a sua lógica. Não é difícil descobrir por onde começar. Seguir o dinheiro ['follow the money'] pode geralmente levar-nos aos pilares centrais da maquinaria wetiko.

Norval Morriseau

Tal como estes dois últimos autores, creio que o conceito de Windigo/Wetiko pode realmente ajudar-nos a desvelar aspectos importantes do actual sistema-mundo, desequilibrado e destrutivo, contribuindo ao mesmo tempo para encontrar caminhos para mitigar a profunda crise civilizacional que atravessamos. Destaco por um lado, o carácter epidémico da nefasta cultura dominante e dos valores a ela associados (típicos da infecção wetiko) e, por outro, a sua natureza dissimulada, que torna difícil a sua identificação e cura. Reconhecendo as suas características, os sintomas tornam-se mais fáceis de detectar. Entre numerosos exemplos retratados por diferentes autores, poderia citar: a natureza abusiva e violenta da civilização dominante descrita amiúde por Derrick Jensen (p.ex. aqui); a insanidade das elites globais denunciada por Douglas Rushkoff (ver aqui ou aqui); a recente epidemia de narcisismo e egocentrismo descrita por Jean Twenge (ver aqui ou aqui); a 'era da hubris' relatada por Sean van der Lee (aqui); ou a epidemia de ganância exposta por Alison Richards (aqui). Como afirmam os diversos autores que citei anteriormente neste post, a cura ou esconjuração da pandemia de Windigo/Wetiko é possível, mas vai requerer um grande investimento de auto-conhecimento e de (auto-)consciência ('awareness'), assim como uma conjugação de esforços e de vontades em processos simpoiéticos de co-criação (ver aqui). Essa é, por exemplo, a proposta da antropóloga cultural canadiana Natasha Myers no seu manifesto How to grow livable worlds” (2018), de onde retirei uma das citações que abre este post.

Termino transcrevendo o excerto final do artigo de Ladha e Kirk: “(…) let us give birth to, and become, living antigens, embracing the polyculture of ideas that are challenging the monoculture of wetiko capitalism. Let us be pollinators of new memetic hives built on altruism, empathy, inter-connectedness, reverence, communality, and solidarity, defying the subject-object dualities of Cartesian/Newtonian/Enlightenment logic. Let us reclaim our birth right as sovereign entities, free of deluded beliefs in market systems, invisible hands, righteous greed, chosen ones, branded paraphernalia, techno utopianism and even the self-salvation of the New Age. Let us dance with thought-forms through a deeper understanding of ethics, knowing, and being, and the intimate awareness that our individual minds and bodies are a part of the collective battleground for the soul of humanity, and indeed, life on this planet. And let us re-embrace the ancient futures of our Indigenous ancestors that represent the only continuous line of living in symbiosis with Mother Nature. The dissolution of wetiko will be as much about remembering as it will be about creation.” 

P.S. Este post foi actualizado em 2023 pela adição da referência à tradução portuguesa do livro de Jack D. Forbes (Colombo e outros canibais).

domingo, 18 de dezembro de 2022

A apropriação mercantil da natureza e o extermínio da biodiversidade

Ao longo de toda a história humana, a natureza tem sido ‘O Comum’ de toda a sociedade que nos providencia os recursos culturais e naturais, incluindo processos físicos como o ar e a água. Mas agora, investidores privados pretendem subtrair esses bens, com alegações de estarem a agir em nome da ‘conservação e sustentabilidade’ de 30% do que apelidamos ‘áreas protegidas’ dos nossos preciosos bens naturais globais. Robert Hunziker

À medida que milhões de espécies são extintas, a biodiversidade que sustenta o ecossistema planetário, tal como o conhecíamos, está em perigo. Esta catástrofe não pode ser contida – muito menos revertida – dentro da atual cultura capitalista. Enfrentamos uma escolha clara: transformação política radical ou aprofundamento da extinção em massa. Ashley Dawson

É provável que não saibam, mas está a decorrer em Montreal desde o dia 7 de Dezembro a conferência da ONU para a biodiversidade (COP15) – ver p.ex. aqui. De facto, pouco se ouviu falar dela quando se compara com a cobertura mediática dada à outra conferência das Nações Unidas sobre o clima (COP27) que decorreu em Novembro no Egipto (ver meu post anterior). As conferências dedicadas à biodiversidade têm uma periodicidade bienal (daí a numeração distinta) e esta era suposto ter decorrido em 2020 na China, mas foi adiada devido à pandemia, mantendo a designação ‘2020 UN Biodiversity Conference’. As comparações entre os dois tipos de conferências não se ficam por aqui; na agenda da COP15 está um acordo ambicioso, o Quadro Global da Biodiversidade pós-2020, que almeja travar a perda de biodiversidade até 2030 e promover a regeneração dos ecossistemas até 2050, e que tem sido equiparado ao Acordo de Paris para o clima - ver p.ex. aqui ou aqui. Tal como na COP27, o secretário geral da ONU, António Guterres, fez um discurso na abertura desta COP15 recheado de frases chamativas e dramáticas - ver aqui ou aqui: “Nature is humanity’s best friend. Without nature, we have nothing. Without nature, we are nothing. (…) Multinational corporations are filling their bank accounts while emptying our world of its natural gifts. Ecosystems have become playthings of profit. With our bottomless appetite for unchecked and unequal economic growth, humanity has become a weapon of mass extinction. We are treating nature like a toilet. And ultimately, we are committing suicide by proxy.” (como nota à margem, o Público traduziu literalmente a penúltima frase de forma, no mínimo, caricata: “Estamos a tratar a natureza como uma casa de banho”!).

Lamentavelmente, tal como nas suas congéneres dedicadas ao clima, os resultados práticos das negociações das COP da biodiversidade têm ficado muito aquém do que seria necessário atendendo à dimensão e gravidade da crise de perda de biodiversidade, já sobejamente diagnosticada – ver p.ex. meus posts anteriores, aqui e aqui. De facto, na COP10 no Japão, em 2010, os governos tinham-se comprometido a cumprir os 20 Objetivos da Biodiversidade de Aichi até 2020, incluindo a redução da perda de habitats naturais para metade e a implementação de planos para o consumo e a produção sustentáveis. De acordo com um relatório de 2020, nenhuma dessas metas foi totalmente atingida (ver p.ex. aqui). Nesta reunião em Montreal, os 196 países participantes que ratificaram a Convenção sobre Diversidade Biológica, tencionam negociar um Quadro Global da Biodiversidade (QGB) que empurra algumas daquelas metas para 2030 ou 2050. Não é pois de estranhar que, apesar das palavras pungentes de António Guterres, muitos ambientalistas estejam pessimistas em relação às metas em cima da mesa de negociações, que incluem a redução do risco de extinção que ameaça mais de um milhão de espécies, a proteção de 30% dos ecossistemas terrestres e marinhos ou a eliminação dos subsídios governamentais prejudiciais ao meio ambiente – ver p.ex. aqui ou aqui. Tal como na COP27, um dos tópicos que dificilmente gerará consenso na actual COP15 é o estabelecimento de um fundo de apoio financeiro aos países do Sul global para a implementação dos objectivos do QGB. Além disso, parece-me manifestamente insuficiente e até ilusório querer resolver a questão da justiça ambiental global atirando milhões de dólares (ou euros) aos problemas.

De facto e do mesmo modo que as mudanças climáticas, também a perda de biodiversidade tem uma génese sistémica que não será possível mitigar apenas através de medidas técnicas ou financeiras. Tal como defendem muitos pensadores, investigadores e activistas que citei em posts anteriores (p.ex. aqui e aqui), os impactos ambientais destrutivos das actividades humanas - que incluem, quer a perda de biodiversidade, quer as alterações climáticas - resultam sobretudo dos padrões insustentáveis de produção e de consumo de uma parte privilegiada das populações humanas, em particular nos países do Norte global. Por sua vez, aqueles padrões têm a sua raiz no sistema económico globalizado baseado num modelo capitalista neoliberal dependente do crescimento desenfreado, do extrativismo depredador e da expansão da mercantilização, que se estende agora também aos bens comuns naturais. Seria portanto necessário abandonar este sistema económico ecocida, mas essa possibilidade não é sequer contemplada pelos delegados que se reúnem em Montreal.

Como referi acima, uma das medidas a ser discutida durante esta COP15 é a proteção de 30% das áreas naturais. Acontece que algumas das propostas de implementação desta medida avançadas nos últimos anos e englobadas nas chamadas ‘nature-based solutions’ (soluções de base natural, ver aqui ou aqui) – onde se incluem a abordagem designada por ‘New Deal for Nature’ ou as ‘Natural Asset Companies’ (empresas de activos naturais), muito acarinhadas pelo sector corporativo – têm encontrado forte oposição por parte de alguns ambientalistas mais radicais, que as têm denunciado como meros estratagemas, não só para manter o ‘business as usual’ do produtivismo e do mercantilismo capitalista global, como também para a apropriação dos bens comuns naturais pelas corporações financeiras internacionais – ver p.ex. artigos de opinião de Stephen Corry (Survival International), de Riccardo Petrella (Ágora de los habitantes de la Tierra) ou de Robert Hunziker. É evidente também aqui um claro paralelismo com as abordagens de mitigação da crise climática, nomeadamente as que se inserem no chamado ‘capitalismo verde’ – ver p.ex. aqui ou aqui.

Também Justin McBrien (aqui), que propôs mudar a designação de ‘Sexta extinção’, frequentemente atribuída à actual crise de perda de biodiversidade (ver p.ex. aqui), por ‘Primeiro extermínio em massa’, atribui este evento aos efeitos colaterais do capitalismo global. Essa tese havia sido defendida anteriormente por Ashley Dawson no seu livro ‘Extinction: A Radical History’ publicado em 2016 (ver p.ex. aqui ou aqui). Nele Dawson começa por reconhecer que the extinction crisis is at once an environmental issue and a social justice issue, one that is linked to long histories of capitalist domination over specific people, animals, and plants.” O autor defende que a constante necessidade de expansão do sistema capitalista global para evitar a sua própria extinção levou-o a estender a sua empreitada de apropriação aos bens comuns naturais: “Nature, the wonderfully abundant and diverse wild life of the world, is essentially a free pool of goods and labor that capital can draw on.Dawson relembra que: “As critics such as Michael Hardt and Antonio Negri have argued, aggressive policies of trade liberalization in recent decades have been predicated on privatizing the commons — transforming ideas, information, species of plants and animals, and even DNA into private property.” O autor conclui: “The destruction of global biodiversity needs to be framed, in other words, as a great, and perhaps ultimate, attack on the planet’s common wealth. Indeed, extinction needs to be seen, along with climate change, as the leading edge of contemporary capitalism’s contradictions. (…) There are at present no effective institutions to deal with the ‘cancerous degradation’ of the global environment that David Harvey argues is brought about by capital’s need for continuous exponential growth. And yet capital of course depends on continuous commodification of this environment to sustain its growth.Segundo o autor, as únicas soluções viáveis passam por uma transformação política radical recorrendo a abordagens pós-capitalistas de conservação fundadas na justiça social e ambiental.

De notar que a crítica à apropriação mercantil dos bens naturais e à sua valorização exclusivamente em termos económicos foi feita pelo próprio IPBES (Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services), órgão da ONU equivalente ao IPCC, no seu relatório sobre a valorização dos bens naturais ‘Assessment Report on the Diverse Values and Valuation of Nature’, publicado este ano. Nele os autores concluem pela necessidade, não só de abandonar o foco dominante nos lucros de curto prazo e no crescimento económico, como também de considerar múltiplas formas de valorização dos bens naturais nas decisões políticas sobre a sua gestão.

Como antídotos e alternativas às abordagens economicistas e mercantis, têm surgido recentemente diversas propostas baseadas na justiça económica e no envolvimento dos povos indígenas e das comunidades locais na gestão da biodiversidade, como o “Marseille Manifesto: a people’s manifesto for the future of conservation”, elaborado por membros da plataforma ‘Survival International’ no congresso ‘Our Land, Our Future’ em 2021, ou o conceito de ‘Convivial conservation’, elaborado por Bram Büscher and Robert Fletcher em 2019. Tenciono desenvolver este tema num próximo post.


Recursos audiovisuais adicionais:

Extinction: A Radical History (OR Books, 2016): https://youtu.be/CPXShU9Zp2c (2’30)

The Big Green Lie (Survival International, 2021): https://youtu.be/xRc7Ez8uY7A (3’)

The Case for Convivial conservation (Bord&Stift, 2019): https://youtu.be/AIHRdJmURdc (3’23)


P.S. Acaba de ser publicado um artigo no site do projecto 'Navdanya International', fundado e liderado por Vandana Shiva, que traça um historial da Convenção para a Diversidade Biológica e das conferências das NU para a biodiversidade, denunciando a implantação progressiva nos últimos anos de uma agenda que prioriza a mercantilização e a financeirização na definição de estratégias de mitigação da crise ambiental global, cuja leitura recomendo.