sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Valorizar o território, os seus habitantes e as suas actividades


Este post é sobre dois notáveis projectos nacionais criados para serem acessíveis essencialmente através da internet. São dois preciosos documentos sobre o território nacional que valorizam a sua paisagem e os seus habitantes, representando excelentes alternativas (e antídotos) às abordagens folclóricas e superficiais da divulgação turística. Trata-se de projectos independentes que investigaram, apoiados numa recolha criteriosa de material audiovisual, duas regiões do país que se sobrepõem: por um lado, o Museu da Paisagem, que teve (numa fase inicial) como objecto de estudo a bacia hidrográfica do Tejo (desde a sua entrada em Portugal, entre a Beira Baixa e o Alto Alentejo, até à sua foz na Extremadura), e, por outro, o webdoc Rodom, que se focou no concelho de Vila Velha de Ródão (Beira Baixa). O primeiro dedicou-se ao levantamento da paisagem natural e antrópica (construída ou gerida pelo ser humano), olhando o território como processo dinâmico de relação entre os seus habitantes e a natureza, tendo resultado de um projeto de investigação de uma equipa multidisciplinar de investigadores, professores e estudantes da Escola Superior de Comunicação Social do Politécnico de Lisboa, com a coordenação de João Gomes de Abreu e a curadoria de Margarida Carvalho. O Museu da Paisagem pretende, segundo os seus autores, promover a formação de uma cidadania paisagística e constituir uma plataforma participativa e geradora de conhecimento, representações e diálogos sobre a paisagem. O abundante e diversificado material disponível (incluindo conteúdos pedagógicos) pode ser explorado de diferentes formas – uma delas através de um mapa disponível aqui.
Membros da equipa do Museu da Paisagem (Portas de Ródão)
O segundo projecto teve por base uma recolha de testemunhos orais de habitantes do concelho de Vila Velha de Ródão, complementada por investigação etnográfica e antropológica daquele território, tendo como autora e realizadora Patrícia Gomes e produção da Ocidental Flimes. O documentário interactivo Rodom pode ser navegado a partir de um mapa ou de um menu disponíveis na página de entrada, que permitem aceder às histórias fascinantes das vidas e actividades da população local, ao longo dos tempos, através das vozes dos seus protagonistas (ou das dos seus descendentes ou familiares). O motivo condutor do projecto surge no final do vídeo introdutório e é uma citação de um dos entrevistados: ‘marca da separação do que foi e do que é’.
Mapa de acesso aos documentos audiovisuais do projecto Rodom
Trata-se portanto de dois projectos digitais (ou virtuais), mas que divulgam e promovem, com notável profundidade e sensibilidade, realidades paisagísticas, antropológicas e sociais, muito concretas. O convite que faço é a navegarem demoradamente qualquer dos dois sites, explorando o valioso e diversificado material audiovisual que disponibilizam. E depois, quem sabe, se sintam estimulados a viajar até a alguns daqueles lugares para explorar in loco as extraordinárias riquezas dos territórios que são ali retratados.

Museu da Paisagem: https://museudapaisagem.pt/
Notícia sobre este último projecto:

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Um presépio arrojado

Imagem respigada do site da CNN
Uma pastora metodista corajosa instalou um presépio à porta da sua igreja (Claremont United Methodist Church, Claremont, California) que é um verdadeiro manifesto político sobre o tratamento dado pelas autoridades norte-americanas aos refugiados que tentam atravessar as suas fronteiras:
Atendendo ao teor e força da instalação (as três figuras encerradas separadamente em gaiolas com arame farpado), as reacções não se fizeram esperar e muitos dos seus paroquianos ficaram incomodados. A pastora Karen Clark Ristine defendeu a essência cristã da mensagem que pretendeu transmitir, escrevendo no site da própria igreja: "In a time in our country when refugee families seek asylum at our borders and are unwillingly separated from one another, we consider the most well-known refugee family in the world - the Holy Family. (...) In the Claremont United Methodist Church nativity scene this Christmas, the Holy Family takes the place of the thousands of nameless families separated at our borders".

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

COP25, cimeiras alternativas, relatórios, avisos de cientistas: está alguém a prestar atenção?

Teve início esta 2ªf (2 Dez) e decorre até dia 13, em Madrid, mais uma cimeira sobre o clima promovida pela ONU (COP25). Vários sites de media nacionais e internacionais têm secções especiais dedicadas à cimeira – Público, Esquerda.net e The Guardian. Com o lema ‘Time for Action’, a cimeira deste ano tem como missão promover a concretização dos compromissos assumidos pelos países no Acordo de Paris (COP21 em 2015) para evitar o agravamento da crise climática, com ênfase nos mecanismos do chamado ‘mercado global de carbono’ para ajudar os países a reduzir as suas emissões e financiar medidas de redução nos países em desenvolvimento. No entanto, o historial das cimeiras anteriores e as críticas aos mecanismos de compensação de emissões (‘carbon offsetting’) não auguram um desfecho favorável para a COP25, apesar dos apelos do presidente do IPCC ou do secretário-geral da ONU – ver p.ex. aqui, aqui e aqui.
Em paralelo com a COP25, decorrerá também em Madrid um encontro promovido por dezenas de movimentos e organizações sociais e ambientais de diversos países (incluindo Portugal) – a Cimeira Social pelo Clima – que será precedida por uma manifestação na tarde do dia 6 Dez.
Uma outra cimeira alternativa que decorreu no estado brasileiro do Pará em Novembro - Amazônia Centro do Mundo (ver vídeo-reportagem aqui) – juntou líderes indígenas, activistas ambientais e académicos. Dessa cimeira resultou um manifesto que convida à defesa da vida e da floresta, recusando a sua depredação e destruição, e termina propondo: “Queremos amazonizar o mundo e amazonizar a nós mesmos. Liderados pelos povos da floresta, queremos refundar o que chamamos de humano e voltar a imaginar um futuro onde possamos viver.”
A procura de caminhos alternativos à falta de ambição das actuais políticas nacionais e internacionais é claramente urgente. De facto, vários relatórios e artigos recentes pintam cenários que vão do pouco animador ao catastrófico e mostram que os esforços (exíguos) de mitigação dos últimos anos não têm sortido grande efeito (o relatório da UNEP usa mesmo a expressão ‘falhanço colectivo’), tendo as emissões globais de GEE continuado a subir (em particular, o CO2 proveniente das centrais a carvão):
- Relatório da ONU – “UNEP Emissions Gap report” (ver p.ex. aqui ou aqui)
- Relatório da Organiz. Meteorológica Mundial - “WMO Greenhouse GasBulletin” (ver p.ex. aqui)
- Artigo da revista Nature “Climate tipping points – too risky to bet against” (ver p.ex. aqui)
O relatório da UNEP traça os diferentes cenários de evolução das emissões globais de CO2 até 2030 que mostra bem a escala do desafio para evitar a subida da temperatura média de 2ºC até 2100 – ver o gráfico no artigo do The Guardian ou a animação no site interactivo da UNEP.
Destaco também um outro relatório recente – “European Environment - State and Outlook 2020” (SOER report) – da Agência Europeia do Ambiente, que é produzido a cada cinco anos e faz uma análise da evolução, no espaço europeu, de vários indicadores relacionados com o clima, a poluição, a biodiversidade e o consumo de recursos naturais (ver p.ex. aqui). Mais uma vez, o panorama é desanimador, com os diferentes governos europeus a não cumprir as metas e os compromissos anunciados, já que apenas 6 dos 35 indicadores analisados mostraram uma evolução positiva. O relatório faz questão de deixar o aviso de que a insistência na promoção do crescimento económico é incompatível com a mitigação das crises ambiental e social, uma clara mensagem dirigida à nova Comissão Europeia liderada por Ursula von der Leyen.
A expressão emergência climática e ambiental parece ser adequada para descrever a situação actual, tal como defendido em mais um aviso subscrito por cerca de 11,000 cientistas mundiais, sobre o qual escrevi em Setembro mas que só foi formalmente publicado em Novembro (ver aqui, aqui ou aqui).
Dado que a resposta política a toda evidência científica sobre a dimensão e gravidade da catástrofe ambiental (mudança climática, perda de biodiversidade, destruição de ecossistemas, etc.) tem sido insuficiente ou ineficaz (ver p.ex. aqui ou aqui), serão necessárias abordagens bem mais radicais se quisermos evitar uma catástrofe ainda maior. É esse o propósito das mobilizações mundiais das greves estudantis do movimento internacional Fridays For Future (ver p.ex. aqui) ou das acções de desobediência civil do movimento Extinction Rebellion (ver p.ex. aqui). No entanto, será preciso o envolvimento de muito mais cidadãos e grupos profissionais neste processo, incluindo o dos próprios cientistas que deverão, não só abandonar a sua habitual postura conservadora e cautelosa (ver p.ex. aqui), como também envolver-se directamente nos movimentos sociais e políticos, tal como têm sugerido alguns académicos – ver p.ex. aqui ou aqui. As cartas de apoio de cientistas aos movimentos sociais são importantes (ver aqui ou aqui) mas não chegam.
A emergência que vivemos requer uma convergência dos movimentos sociais,  ambientais e indígenas com diferentes grupos profissionais e iniciativas locais de resiliência e regeneração, para conseguir exercer a pressão necessária para a mudança social como propõem os activistas Kevin Zeese e Magaret Flowers neste post.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Continuo a não apoiar o Banco Alimentar e a insurgir-me contra a postura do presidente

(Foto respigada do DN)
(texto baseado em post publicado no G+ em Dez 2018)
Como em anos anteriores, decorreu em grandes superfícies do sector alimentar mais uma campanha do Banco Alimentar contra a Fome (BACF), apoiada activamente pelo presidente Marcelo, como noticiado em quase todos os media nacionais - ver aqui, aqui ou aqui.
Numa atitude que considero lamentável, o ‘presidente dos afectos’ fez campanha pelo assistencialismo e pelas grandes superfícies; este ano escolheu o Pingo Doce mas no ano anterior tinha sido o Continente, tendo então enfatizando que dar é obrigação dos privilegiados (uma mensagem com um evidente cunho de moralismo religioso) - ver aqui ou aquiEsta afirmação, num país com níveis de desigualdade e de pobreza elevados e em que muito do rendimento gerado vai para a mão de poucos ou para fora país, é ainda mais lamentável - ver p.ex. aqui, aqui ou aqui.
Por outro lado, fazer compras numa grande superfície comercial contribui para beneficiar as grandes empresas de distribuição que têm lucros chorudos à custa dos hipermercados e dos preços baixos que pagam a funcionários e produtores, sendo pois co-responsáveis pelas desigualdades - ver p.ex. aqui, aqui ou aqui.
E, ainda por cima, parte do rendimento gerado por aquelas empresas é tributado fora do país - ver p.ex. aqui, aqui ou aqui.
Igualmente funesto é o facto destas campanhas permitirem àquelas grandes cadeias libertarem-se de excedentes, como é referido neste post que aborda ainda a relação entre o BACF e as IPSS ligadas à Igreja.
A existência de bancos alimentares pode ser justificável em situações graves de carência alimentar e como medida provisória, devendo, no entanto, ser complementada por medidas de médio-longo prazo, como políticas públicas sociais eficazes e mudanças de paradigma económico. A caridade não pode substituir a solidariedade, que, por sua vez, deve apenas colmatar desigualdades ou injustiças não evitáveis. Não é contribuindo para o Banco Alimentar que se luta contra a fome ou a pobreza, mas sim lutando contra a riqueza desmedida, as desigualdades e a hegemonia dos privilegiados - ver p.ex. aqui.
No Reino Unido, onde a austeridade tem vindo a intensificar as situações de pobreza extrema e de carência alimentar, os bancos alimentares aumentaram a sua intervenção, situação que tem sido alvo de críticas - ver aqui ou aqui.
Na vizinha Espanha também tem havido críticas aos bancos de alimentos e às suas ligações às instituições religiosas - ver aqui, aqui ou aqui.
O último artigo citado explicita as razões pelas quais os bancos alimentares são socialmente indesejáveis e injustos:
- praticam a caridade, que não é compatível com o cumprimento dos direitos humanos por parte dos Estados;
- alimentam a estratégia de lucro das grandes empresas do sector alimentar;
- limitam a liberdade de escolha das pessoas desfavorecidas;
- tornam difícil a adopção de dietas equilibradas;
- intensificam a estigmatização e os problemas de exclusão social;
- inibem a capacidade para a mobilização e a contestação social.
Em relação aos 3º e 4º pontos da lista, vale a pena destacar que o tipo de alimentos recolhidos, que está em parte relacionado com as limitações do BACF e da sua estrutura centralizada, não é compatível com uma dieta equilibrada. Sobre este tópico é interessante referir um outro projecto britânico de dimensão local mas com princípios e práticas muito diferentes das do Trussel Trust (ao qual são aliás dirigidas fortes críticas) - ver aqui
Em relação ao 5º ponto da lista acima, sugiro a leitura deste artigo de opinião do sociólogo António Pedro Dores. 
Finalmente, Marcelo referiu que o problema de fundo se resolve com mais crescimento e mais emprego – só não explicou como isso é possível quando o actual crescimento das economias é conseguido à custa do aumento das desigualdades sociais e da destruição ambiental, e quando os empregos estão a desaparecer, a ser mal pagos e sem regalias sociais, como consequência do modelo económico e financeiro globalizado - ver p.ex. aqui ou aqui.
Pela minha parte, e para não me acusarem de criticar sem oferecer alternativas, irei continuar a pugnar por uma mudança de paradigma social e económico que torne os Bancos Alimentares completamente obsoletos e desnecessários. É por isso que defendo o Decrescimento planeado, um rendimento básico incondicional e um rendimento máximo sensato e justo - ver p.ex. aqui e aqui.